UnB
18/06/2021
Trabalhos científicos podem oferecer inúmeros desafios e muitos deles podem parecer intransponíveis. No entanto, as dificuldades também abrem chances para explorar alternativas. Um bom exemplo disso foi a experiência de pesquisadores do Laboratório de Comportamento Animal da Universidade de Brasília ao desenvolverem projeto para entender o comportamento reprodutivo do tiziu (Volatinia jacarina), ave típica do Cerrado, e sua relação com o ambiente em que vive.
“Nesta pesquisa, nosso objetivo inicial foi entender a relação entre o display sexual (exibição de cortejo) do tiziu e os aspectos da vegetação de seu nicho (densidade, abundância de sementes, nível de sombreamento local)”, explica Edvaldo Silva, mestrando em Ecologia e, à época do estudo, discente de Ciências Biológicas. O Laboratório de Comportamento Animal é coordenado pela professora Regina Macedo, responsável pelo desenvolvimento de vários trabalhos de comportamento animal com aves e outras classes, com o envolvimento de discentes de graduação da iniciação científica e de pós-graduação.
Observações em campo foram conduzidas durante dois anos (2018 e 2019) em duas áreas no campus Darcy Ribeiro: no Centro Olímpico e no Arboreto, espaço verde próximo ao Hospital-Escola Veterinário, entre a L3 e a L4 Norte. Durante o processo, a equipe do projeto foi surpreendida por um incêndio no Arboreto, área onde os tizius se reproduziam, que varreu parte da vegetação local.
No incidente, 14 ninhos da ave que estavam em análise foram perdidos, além de ovos e filhotes que foram queimados vivos. “Fiquei horrorizado e, ao mesmo tempo, pensei que havíamos perdido um ano de coleta de dados na área. Ainda havia o Centro Olímpico, mas a primeira área já era. Foi como se uma parte da área de estudo simplesmente tivesse sido descartada”, relata Carlos Biagolini, egresso do doutorado em Ecologia, que esteve à frente da pesquisa de campo para um capítulo de sua tese.
“Além de lamentarmos a morte das aves, quanto à pesquisa em si, achamos que isso limitaria nossa coleta de dados a princípio, porque teríamos que desconsiderar quaisquer observações que viessem desse local, afinal, os animais seriam afetados pelo distúrbio”, acrescenta Edvaldo.
Apesar da situação, os pesquisadores viram uma oportunidade para ampliar os horizontes do estudo. Depois de refletirem sobre o que fazer, tendo em mente os possíveis impactos do fogo sobre o comportamento reprodutivo da ave, uma nova pergunta foi adicionada ao projeto: “os distúrbios antrópicos influenciam o display dos tizius?”.
Com isso, o trabalho alcançou resultados mais robusto, fator que contribuiu para a publicação na revista Behavioral Ecology and Sociobiology, avaliada no nível A1, mais alta classificação que um periódico pode receber.
“Pensando mais sobre o assunto, concluímos que essa questão de ter havido um evento trágico de fogo poderia fornecer um material para comparar com uma área que não tenha sofrido incêndio ou outro tipo de impacto antrópico”, aponta Carlos.
HÁBITOS REPRODUTIVOS – Os animais agem de diferentes maneiras para atrair parceiros e “repelir” potenciais rivais. Entre as aves, é possível observar espécies que exibem comportamentos vocais, como cantos e sinais mecânicos – “estalos” feitos com as asas, por exemplo –, assim como exibições visuais, que incluem danças e saltos. No caso do tiziu, que costuma se reproduzir no período chuvoso, uma das perfomances consideradas mais intrigantes são os saltos exibidos pelos machos, que também emitem canto que soa como “ti-ziu”.
Essa exibição, portanto, é caracterizada por aspectos visuais e vocais, chamados de displays multimodais, tendo como importante função a atração de parceiros. O hábito rendeu à espécie o nome de “saltador” em certos locais do país.
Ao analisar o comportamento do tiziu, a expectativa dos pesquisadores era a de que machos em territórios com maior complexidade de vegetação – seja devido à maior densidade ou à presença espécies de plantas –, e, portanto, maior disponibilidade de alimento e sombreamento, apresentariam exibições sexuais mais vigorosas e conspícuas (saltos mais altos e/ou maior taxa de saltos por unidade de tempo). Especialmente porque gastariam menos energia e tempo em busca de comida e, por conseguinte, estariam mais disponíveis para reprodução e exibições sexuais.
Adicionalmente, esses tizius poderiam se esconder mais prontamente na presença de um predador, pois a vegetação poderia servir para essa finalidade e o maior nível de sombreamento dificultaria a detecção da ave durante sua fuga.
Outra hipótese levantada seria o oposto, considerando o fato de que a realização dos displays em um ambiente mais fechado dificultaria os esforços do tiziu em chamar a atenção de potenciais parceiras, e que essas exibições em ambientes abertos teriam mais êxito. Tal perspectiva foi baseada em um estudo anterior feito por uma ex-aluna da Universidade, que concluiu que o comportamento reprodutivo da ave varia de acordo com o clima, com mais displays realizados em dias com sol em relação aos nublados.
DESCOBERTAS – Após o incêndio no Arboreto, ao início do segundo ano de coleta de dados, o tiziu não ocupou a área de estudo por algumas semanas. Além disso, cerca de um mês depois do fogo, quando a vegetação já estava em recuperação, um trator cortou a grama que havia crescido no local. Diante da necessidade de uma nova perspectiva de estudo, os pesquisadores passaram a investigar como tais distúrbios afetam o display sexual do tiziu.
Para isso, a área afetada foi delimitada com uso de GPS – para saber o local alterado após a recuperação da vegetação. Também foram coletados dados da exibição de cortejo do tiziu tanto nessa área quanto na que não teve impacto direto do fogo e da roçagem.
Os resultados do estudo confirmam que há uma relação entre o display sexual do tiziu, os aspectos da vegetação onde essa ave ocorre e as interferências antrópicas. Foi observado que indivíduos que ocupam territórios com maior número de sementes e maior nível de sombreamento apresentam saltos mais duradouros e, portanto, mais altos. Outra questão avaliada é que os indivíduos que ocupam uma área após um evento de fogo apresentam displays menos vigorosos, nesse caso, com uma menor taxa de saltos por unidade de tempo.
Edvaldo Silva explica como os entraves encontrados pelos pesquisadores colaboraram para o resultado final: “No geral, os desafios com os quais nos deparamos, como terem ateado fogo na nossa área de estudo, nos permitiram desenvolver novas perguntas sobre comunicação animal que não havíamos considerado previamente e que acrescentaram uma questão interessante e importante ao nosso trabalho, isto é, como sinais visuais podem ser afetados por distúrbios antrópicos”.
Ele considera que ainda se dá pouca atenção, em pesquisas, para como distúrbios antrópicos – como atear fogo em locais urbanos e naturais – podem afetar sinais visuais utilizados na comunicação entre indivíduos de uma espécie.
“Portanto, nossa pesquisa fornece conhecimento sobre esse assunto, além de servir de base/modelo para pesquisas futuras. Ademais, nossos resultados também corroboram ideias e hipóteses propostas previamente, por exemplo, como sinais visuais podem indicar a qualidade do território ocupado por um potencial parceiro sexual. As fêmeas, por exemplo, podem avaliar as exibições de cortejo dos machos de tiziu e, baseadas em parâmetros do salto, podem escolher qual seria o melhor território para criar seus filhotes”, descreve.
Carlos Biagolini afirma que, quando se comenta sobre a influência do ambiente para os animais, é incorreto supor que as modificações causadas pelo homem, como queimadas ou desmatamentos, serão capazes de alterar drasticamente a vida na Terra. Isso ainda que muitas espécies possam vir a ser extintas e que outras tenham que modificar o seu comportamento para lidar com o novo cenário.
“Elas terão que passar por mudanças e seleções que vão fazer com que as espécies desempenhem um comportamento diferente ou que sejam selecionados indivíduos diferentes, que serão capazes de lidar com esse novo mundo sendo produzido na era pós-alteração antrópica”, argumenta.
Segundo o pesquisador, ainda que o tiziu não seja uma espécie relevante em termos de representatividade em várias regiões do mundo, esse estudo e suas ramificações podem trazer ideias do que pode acontecer com outras espécies de aves, tornando-se um estudo de caso especialmente em ambientes tropicais, onde há um menor volume de dados sobre o assunto.
Edvaldo Silva acredita que o sucesso do projeto e do artigo podem ser um fator motivacional para pesquisadores que tenham passado dificuldades ou que interromperam seus projetos científicos nos últimos meses, especialmente no contexto da covid-19. “Acreditamos que essa história é interessante, pois destaca como um evento inesperado, potencialmente capaz de prejudicar nossa coleta de dados, pôde alavancar nosso projeto. Isso também pode ser inspirador para outros estudantes, já que enfrentar dificuldades durante o desenvolvimento de um projeto é extremamente comum na área acadêmica, especialmente quando se coleta dados em atividades de campo”, afirma.
[1] Foto: Edvaldo Silva/Arquivo pessoal.
Como citar este texto: UnB. Pesquisadores da UnB investigam a relação entre vegetação, fogo no Cerrado e as atividades reprodutivas do tiziu. Saense. https://saense.com.br/2021/06/pesquisadores-da-unb-investigam-a-relacao-entre-vegetacao-fogo-no-cerrado-e-as-atividades-reprodutivas-do-tiziu/. Publicado em 18 de junho (2021).