Jornal da USP
15/10/2021

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Hoje – com a pandemia ainda crescente provocada pelas múltiplas mutações do vírus da covid-19, a falta de vacinas e a descentralização de ações governamentais salvacionistas em prol da preservação da vida – a promoção de uma cultura de tolerância torna-se emergencial. Se por um lado as pessoas não dialogam e não buscam por justiça social, por outro os negacionistas da ciência valem-se das redes sociais para instigar o linchamento virtual daqueles cidadãos que clamam pelo direito à vida.

Neste Brasil multirracial – que há séculos convive com o racismo (histórico e estrutural) e a discriminação contra negros, judeus, indígenas, ciganos e dissidentes políticos – fica difícil falarmos em uma política de intolerância zero, pois este “outro e velho” vírus tem raízes seculares. Por questões de gênero, etnia, religião ou classe social, milhares de cidadãos e cidadãs brasileiros, de qualquer faixa etária, são impedidos de viver com um mínimo de dignidade. Milhares sequer dispõem de água potável para beber e internet para conseguir estudar, enquanto outros clamam por oxigênio para respirar artificialmente, item imprescindível para sobreviver nas UTIs – Unidades de Tratamento Intensivo.

A situação de desequilíbrio estende-se para além da área da saúde adentrando o campo da cultura e da ciência, cujos conhecimentos são sufocados, negligenciados, negados. Hoje, além dos ataques virais provocados pelo vírus mutante Delta, somos também atropelados por discursos intolerantes disseminados por uma legião de racistas e negacionistas que sustentam a polarização que, por si só, corrói a democracia.

Em situações de crise – como esta que o Brasil vive, abalado pela ausência de diálogo e ações salvacionistas – constatamos que o excesso de polarização compromete a vida e negligencia a morte. A história tem demonstrado – principalmente no século XX, definido por Eric Hobsbawn como o “século das catástrofes e das incertezas” – que os governos totalitários e autoritários, muitos dos quais genocidas, se alimentaram das visões discordantes para implementar a violência e políticas de exclusão idealizadas para acuar, perseguir, isolar e, até mesmo, exterminar aqueles que não se encaixam no modelo idealizado como “normal”.

Sob este prisma – da intolerância – pergunto:
• como conhecer e legislar sobre a complexidade das relações humanas em situações de conflito?
• como transformar a polarização em ingrediente positivo, de respeito às distintas visões de mundo como pregam os regimes democráticos?
• como impedir que o povo e a democracia morram sufocados pela falta de oxigênio e pela ignorância dos nossos governantes?

Promover a cultura da tolerância exige muito mais que uma iniciativa individual ou de uma única instituição. Diz respeito à preservação de um bem coletivo: a liberdade de “ser” e de “estar-no-mundo”. Daí a importância da educação em Direitos Humanos, que, segundo Maria Victória Benevides, é de “natureza permanente, continuada e global, voltada para a mudança e visando à inculcação de valores… não deve ser apenas instrução, meramente transmissora de conhecimentos”. A meu ver, deve formar seres mais humanos. Portanto, precisamos investir nas mudanças de mentalidade, que – tanto no Brasil e outros tantos países da Europa e Américas – se faz delineada por preconceitos seculares decorrentes de fatores históricos.

É nesta direção, por exemplo, que os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto e das ditaduras (militares ou civis, que ainda abalam este século XXI) podem contribuir para o bem-estar da humanidade pois exigem uma compreensão histórica de direitos humanos, que, por sua vez, nos remete ao reconhecimento do direito à vida. Nestes tempos sombrios de pandemia, novos cenários históricos se estabelecem, novos fantasmas ou inimigos-objetivos (como muito bem definiu Hannah Arendt) emergem, novos embates e desafios surgem. Novas gerações nascem e as lições do passado recaem também sobre elas exigindo um exercício permanente de memória, não necessariamente de via única quanto a suas interpretações. Haverá bifurcações e encruzilhadas, e a educação, nesse sentido, é um instrumento de transformação.

Estes tempos de isolamento social forçado pela pandemia nos instigam a retomar o conceito de tolerância que, ainda que dúbio, deve ser interpretado como uma virtude. Conceito que, se não for bem compreendido no contexto das relações humanas, pode ser acionado a um des(serviço) da sociedade que pretende salvar vidas e alcançar a democracia plena, ainda que essa plenitude seja utópica. O fato de a democracia liberal prever a liberdade de escolha não quer dizer que temos total conhecimento da verdade e anulação das práticas intolerantes. Ao contrário, abre espaço para as novas formulações racistas e para o uso sistemático de fake news que distorcem a realidade valendo-se de falsas imagens e falsas palavras. Não devemos confundir liberdade de expressão (um dos fundamentos da democracia) com liberdade de agressão ao Outro. Aliás, esta é “a diferença entre a vida selvagem e a vida civilizada”, como enfatizou o advogado Celso Mori.

Ao defender o direito à liberdade de expressão sem limites, os movimentos racistas entram pelas fissuras da democracia fragilizada e proliferam seus discursos de ódio, assim como problematizou Pierre-André Taguieff (1987) em sua obra La Force du PréjugéEssai sur le Racisme et ses Doubles. Com isso, quero dizer que racistas fanáticos não são personagens exclusivos dos estados totalitários e nem de um passado tão longínquo. Ódio e violência sem limites funcionam como impulsos para a ação de indivíduos que ignoram o diálogo, a ética e o significado da dignidade humana. Revisitando o nosso passado e avaliando a atual crise humanitária vivenciada pelo povo brasileiro, pergunto: “aonde esse ser humano irresponsável pode chegar?”.

Avaliando a retórico dos discursos totalitários e populistas endossados tanto por grupos de direita como de esquerda, e principalmente após os anos de 1980, percebemos que houve um deslocamento do eixo de argumentação: de raça para etnia/cultura, da ideia de desigualdade para o apelo ao direito à diferença. Enfim, as metáforas biológicas e zoológicas foram substituídas por vocábulos da cultura, religião, tradição e imaginários conjugados. Assim, para melhor compreendermos como se processam certas mudanças mentais ou como se dá a construção do fanatismo, precisamos estar atentos às persistências e ambiguidades dos discursos.

Infelizmente não conseguimos adentrar no século XXI ilesos de fobias construídas pelos inimigos da democracia e negacionistas da ciência. Valendo-se de falsas ideias e levando à configuração de perigos e mundos imaginários, os novos racistas investem na visão falseada da realidade que ainda se alimenta de mitos: o mito da conspiração judaico-comunista, o mito da democracia racial, o mito do perigo estrangeiro, o mito do indígena indolente e do negro inferior por sua “raça”. Lembro aqui que tais afirmativas se faziam fundamentadas em uma pseudociência que ganhou seguidores a partir da segunda metade do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial. Nada mais do que um de pseudocientistas que sustentaram a teoria das raças superiores versus inferiores, apresentando-se como especialistas com alto padrão de conhecimento, apesar de não disporem da aplicação de métodos científicos confiáveis. Parece-me que hoje eles voltaram sob novas roupagens.

Favorecidos pelos novos meios de comunicação e, ao mesmo tempo, pela ignorância que persiste sobre o nosso passado histórico, os hackers invasores (racistas, xenófobos e os pseudocientistas) ganham, cada vez mais, espaço no mundo globalizado. Uns agem por conta própria; outros, induzidos por um movimento e/ou partido político; outros falam em “nome da fé” ou de um “gabinete do ódio”.

Fundamentados na “doutrina da salvação nacional” [sic] e alimentados por distintos mitos políticos, os populistas, os racistas e os pseudocientistas têm como referência a sociedade do “caos e da desordem”, a serem combatidos “por eles”, salvadores da pátria. Ao criticarem a realidade em que vivem, a definem como imperfeita, (re)desenhando “novas paisagens” para um mundo novo que não precisa do diálogo, nem da ciência, nem da cultura. A superposição destes argumentos gera situações de conflitos e dificulta as possibilidades de convivência pacífica e de tolerância. E, em todas as situações, o racismo, a xenofobia, o nacionalismo exacerbado e a pseudociência se prestam como instrumento de poder e coação. O fato é que, neste século XXI, a intolerância retornou com novas roupagens e fortalecida pelas mesmas mentiras, com a diferença de que, agora, elas circulam pela internet e pelos nossos celulares. Daí a importância de investirmos no campo da educação em prol de uma cultura da tolerância (como uma virtude), postura geradora do diálogo, da convivência e do respeito à diversidade. [2]

[1] Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.

[2] Texto de Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Por uma cultura da tolerância: a tolerância como virtude.  Texto de Maria Luiza Tucci Carneiro. Saense. https://saense.com.br/2021/10/por-uma-cultura-da-tolerancia-a-tolerancia-como-virtude/. Publicado em 15 de outubro (2021).

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