Jornal da USP
10/11/2021
A pesquisadora Mônica Ulysséa, pós-doutoranda no Museu de Zoologia da USP, descreveu 14 novas espécies de formigas do gênero Hylomyrma, grupo de insetos da família Formicidae. Os nomes dados às novas espécies são homenagens à mirmecologia (ciência que estuda as formigas), aos povos indígenas e, principalmente, às mulheres. A iniciativa busca chamar atenção à desigualdade de gênero na sociedade, que também é uma realidade dentro dos laboratórios, e “exaltar e reconhecer a vida e obra de mulheres incríveis”, como afirma a pesquisadora ao Jornal da USP.
Ao todo, onze mulheres são homenageadas, entre elas estão: Dandara dos Palmares, um dos principais nomes da luta negra no Brasil; Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assinada; Miraildes Maciel Mota, jogadora de futebol conhecida pelo apelido “Formiga”, e Mítia Heusi Silveira, bióloga, amiga de Mônica e vítima de violência doméstica. Abaixo, confira a lista completa das espécies e suas homenagens.
O artigo foi publicado na revista Zootaxa, em outubro deste ano, em colaboração com Carlos Roberto Ferreira Brandão e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O grupo do gênero Hylomyrma, que antes abrigava apenas 16 espécies, agora compõe 30 formigas que vivem na região chamada de Neotropical, do Sul do México ao Norte da Argentina e ao Sul do Brasil. Apesar de pequenas, as formigas representam uma importante peça no conhecimento acerca da biodiversidade do planeta por desempenharem papel em diversos processos ecossistêmicos. “Dar nomes a esses bichos é também reconhecer a diversidade que existe em determinado espaço. Sabendo isso, dá pra dizer se a espécie é endêmica de uma região, por exemplo”, afirma Mônica.
Esse é o caso da formiga Hylomyrma wachiperi, que recebeu esse nome em referência à etnia indígena Wachiperi, uma vez que a espécie só foi até hoje registrada na região onde vive esse povo. “Mas a homenagem é a todos os povos indígenas, que são os guardiões das nossas florestas e da sua biodiversidade ao manter relações mais harmônicas com o lugar onde vivem.”
Pesquisas como essas também contribuem como conhecimento para outros trabalhos ecológicos, que vão procurar entender as relações e interações de cada ser em determinado ambiente. Como conta a pesquisadora, a taxonomia é uma ciência de base, que dá fundamento para os demais estudos, mas não recebe a atenção adequada e os investimentos necessários – principalmente em meio aos atuais cortes orçamentários da ciência nacional.
Como se cataloga uma nova espécie?
De tempos em tempos, os taxonomistas, cientistas responsáveis pela classificação da vida, reavaliam os grupos de diferentes animais, vegetais, plantas, fungos e todo e qualquer ser. É um trabalho meticuloso que, diferentemente do que a maioria imagina, pouco tem a ver com desbravar uma floresta à procura de uma ave rara – mas, isso não significa que conhecer organismos em seus habitats não seja necessário. Cientistas coletam amostras de indivíduos em todo canto do planeta e cedem esse material para diversas instituições e laboratórios. A pesquisadora Mônica já pesquisava formigas, mas se dedicou ao gênero Hylomyrma porque o grupo não recebia uma nova atenção da taxonomia desde 1973.
Desse período até hoje, novos exemplares do gênero foram coletados e depositados em diversas instituições de pesquisa; peças que não haviam sido estudadas até então – e aqui o papel da revisão taxonômica. A cientista entrou em contato com os mais diversos museus e laboratórios no mundo (10 nacionais e 23 estrangeiros) para chegar a esse material. Após reunir mais de 3.200 mil exemplares cedidos por diversas instituições, chega a hora de pegar uma lupa e, com muita atenção e muitas horas, identificar as características específicas de cada uma das formigas para categorizá-las. Nesse processo, foram descobertas 14 formigas que ainda não haviam sido descritas, isto é, possuíam características diferentes das demais, que as tornavam únicas, e não estavam presentes na literatura científica. A etapa seguinte foi a nomeação das espécies.
Hylomyrma adelae
Espécie em homenagem a educadora, feminista, ensaísta e poeta Adela Zamudio (1854–1928), nascida em Cochabamba, Bolívia, que – não à toa – é o local de registro desta espécie. Adela nasceu em 11 de outubro, dia em que hoje comemora-se o Dia da Mulher Boliviana, pelo pioneirismo dela na luta contra a discriminação às mulheres na América Latina; contra o racismo e também devido às suas criticas ao ensino religioso.
– “¡Oh, mortal privilegiado, que de perfecto y cabal gozas seguro renombre! En todo caso, para esto, te ha bastado nacer hombre”
Hylomyrma dandarae
Espécie em homenagem a Dandara dos Palmares (?–1694), que atuou na resistência contra escravidão praticada no Brasil Colônia. Dandara fez parte do “Quilombo dos Palmares”, o maior quilombo que existiu na América Latina, reunindo cerca de 20 mil habitantes, e um dos grandes símbolos da resistência dos escravizados. A guerreira foi casada com Zumbi dos Palmares, com quem teve três filhos, antes de se suicidar para não retornar a condição de escravizada.
Hylomyrma jeronimae
Espécie em homenagem a Jerônima Mesquita (1880–1972), mineira, enfermeira e líder feminista brasileira. Nasceu em 30 de abril, data em que é comemorado o Dia Nacional da Mulher, devido sua importância na luta contra a desigualdade de gênero no Brasil. Atuou ao lado da bióloga Bertha Lutz (1894–1976) e de Stella Guerra Duval (1879–1971) na luta pelo direito ao voto feminino, participando ativamente do movimento sufragista de 1932. As três fundaram a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e o Conselho Nacional das Mulheres, que consolidou suas atuações na luta pela igualdade de direitos e de oportunidade para as mulheres.
Hylomyrma lispectorae
Espécie em homenagem a Clarice Lispector (1920–1977), ucraniana naturalizada brasileira, jornalista, escritora e um dos principais nomes da literatura brasileira do século 20. Além do reconhecimento a obra de Clarice, a escolha se dá pela preferência da pesquisadora Mônica por poesia.
– “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”
Hylomyrma macielae
Espécie em homenagem a Miraildes Maciel Mota, baiana, jogadora de futebol, mais conhecida por seu apelido: Formiga. Formiga é a única futebolista a ter participado de sete edições dos Jogos Olímpicos e de todas as edições da Copa de futebol feminino. Sua trajetória até se tornar rainha é de superação de preconceitos – por ser uma mulher, negra, nordestina e integrante da comunidade LGBTQIA+ e também de luta pela valorização, reconhecimento, desenvolvimento e profissionalização do futebol feminino.
Hylomyrma margaridae
Espécie em homenagem a Margarida Maria Alves (1933–1983), paraibana, defensora dos direitos humanos e dos direitos das trabalhadoras rurais. Foi a primeira sindicalista mulher do País. Em 12 de agosto de 1983, Margarida foi assassinada por sua luta. Sua luta e trajetória, desde o ano 2000, inspira a “Marcha das Margaridas” – uma marcha que reúne milhares de mulheres de todas as partes do Brasil pelo reconhecimento social e político e cidadania plena às trabalhadoras rurais.
– “Da luta eu não fujo. É melhor morrer na luta do que morrer de fome”.
Hylomyrma mariae
Espécie em homenagem a Maria do Espírito Santo da Silva (1956–2011), paraense, extrativista, ambientalista e sindicalista, reconhecida por sua luta em prol da preservação da floresta Amazônica, do extrativismo sustentável, e em defesa da reforma agrária. Maria e seu companheiro, José Cláudio Ribeiro da Silva (1957–2011), foram assassinados por seu ativismo e pela omissão do Estado brasileiro, que recusou a proteção solicitada por ambos. Postumamente, Maria e José foram laureados pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o Prêmio Heróis da Floresta.
Hylomyrma marielleae
Espécie em homenagem a Marielle Francisco da Silva (1979–2018), mais conhecida como Marielle Franco, carioca, socióloga e política filiada ao PSOL. Marielle defendia o feminismo, os direitos humanos, a população LGBTQIA+ e os moradores de comunidades carentes. A política era crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro, assim como criticava e denunciava constantemente abusos policiais e violações aos direitos humanos. Como vereadora, em pouco mais de um ano, elaborou 16 projetos de lei, dois dos quais foram aprovados: regulamentação do serviço de mototáxi e a Lei das Casas de Parto. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros junto de seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes. Um crime até hoje impune. “Marielle, presente!”, afirma Mônica.
Hylomyrma mitiae
Espécie em homenagem a Mítia Heusi Silveira (1984–2010), amiga pessoal de Mônica, “uma mulher incrível e inspiradora”, que, na graduação em biologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), desenvolveu projetos com fungos e besouros. Mítia trabalhou também na Fundação Nacional do Índio (Funai).
Mítia foi vítima do feminicídio, assim como 13 brasileiras o são todos os dias. “Essas coisas parecem que nunca acontecem perto de nós, mas estão mais perto do que imaginamos”, conta a pesquisadora e lembra o aumento dos números de violência doméstica na pandemia.
Hylomyrma primavesi
Espécie em homenagem a Ana Maria Primavesi (1920–2020), engenheira agrônoma austríaca radicada no Brasil. Primavesi foi pioneira no estudos dos solos em florestas tropicais, particularmente sobre o manejo ecológico dos solos. Revolucionou a visão sobre a agricultura ao considerar o solo enquanto um organismo vivo, lançando assim as bases para a agroecologia e agricultura orgânica.
Hylomyrma virginiae
Espécie em homenagem a Virginia Leone Bicudo (1910–2003), paulistana, socióloga. Virginia buscou na ciência defesas para lidar com o racismo e foi pioneira no Brasil ao tratar do estudo das relações raciais na sua dissertação, em 1945. Da sociologia adentrou na psicologia à procura de respostas para as causas do sofrimento, sendo a primeira não médica a ser reconhecida como psicanalista.
Hylomyrma wachiperi
Esta espécie ocorre na floresta amazônica peruana, numa região em que vive o povo indígena da etnia Wachiperi. “Esta é nossa homenagem para eles e para todos os povos indígenas, por sua resistência, por sua defesa da floresta, por sua proteção à biodiversidade e manutenção de variedades e sementes criolas”, afirma a cientista.
Hylomyrma lopesi
Espécie em homenagem ao professor Benedito Cortês Lopes, que lecionou no Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), além de orientar inúmeras pesquisas no âmbito da graduação e da pós-graduação. “Benê”, como era chamado, foi quem apresentou para Mônica “o mundo encantador das formigas e da ciência”.
Hylomyrma peetersi
Espécie em homenagem ao pesquisador belga Christian Paul Peeters (1956–2020). Fez graduação e doutorado na África do Sul e pós-doutorados na Austrália, no Japão e na Alemanha. A partir de 1993, fixou-se em Paris, França, onde continuou a desenvolver suas pesquisas na Universidade Pierre e Marie Curie. Christian contribuiu para o conhecimento acerca da biologia e morfologia das formigas. Em especial, no doutorado da Mônica Ulysséa, colaborou no entendimento das intercastas.
Mais informações: e-mail monicaulyssea@gmail.com, com a pesquisadora Mônica Ulysséa. [2]
[1] Arte de Lívia Magalhães com imagens de FlatIcon, Wikimedia Commons e Reprodução.
[2] Texto de Guilherme Gama.
Como citar este texto: Jornal da USP. Pequenas e gigantes: novas espécies de formigas recebem nomes em homenagem a grandes mulheres. Texto de Guilherme Gama. Saense. https://saense.com.br/2021/11/pequenas-e-gigantes-novas-especies-de-formigas-recebem-nomes-em-homenagem-a-grandes-mulheres/. Publicado em 10 de novembro (2021).