UFSC
10/01/2022

Pesquisa utilizou dados de jogadores, seleções e clubes em competições mundiais profissionais e de base [1]

Entender como o processo de globalização e os fluxos de migração de atletas se relacionam com a acentuação da desigualdade no futebol e as especificidades do mercado do futebol praticado por mulheres foram os objetivos da pesquisa conduzida por Juliano Pizarro durante seu doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Utilizando fontes bibliográficas e documentais, a tese Globalização e o sistema-mundo moderno do futebol: modernidade e (de)colonialidade na circulação de atletas a partir dos mundiais FIFA se valeu de dados de 25.921 jogadores, 1.240 equipes e 76 competições mundiais de categorias de base, seleções e clubes.

Juliano conta que a motivação para o projeto partiu de uma inquietação que vem desde a infância: “Sou natural da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, uma cidade que respira futebol. Desde pequeno fui a estádios, sou torcedor do Pelotas. Muita gente torcia para Grêmio e Inter, né, e eu torcia sempre para o Pelotas. Eu via jogos do Pelotas contra a dupla Grenal, e sempre era muito difícil de ganhar. Então, eu pequeno já queria entender porque é tão difícil um time do interior ganhar de um time da capital. Ficava mais assustado ainda quando me diziam que a folha salarial de um jogador de Grêmio ou Inter pagava toda a folha salarial do Pelotas. Aquela diferença, aquele abismo, já desde pequeno me assustava e me indignava”. As desigualdades financeira e competitiva no mercado do futebol impactam tanto localmente quanto em nível mundial. O processo de globalização, salienta o pesquisador, é um elemento fundamental para entender esse fenômeno.

Falando, inicialmente, da modalidade masculina, historicamente temos duas grandes potências continentais: Europa e América do Sul. Dos 21 mundiais já disputados, há 12 títulos de seleções europeias e 9 de sul-americanas. Já na Copa do Mundo de Clubes da FIFA, foram 26 conquistas de times sul-americanos contra 32 de clubes europeus. Essa lógica, contudo, vem se alterando em função da cada vez maior concentração de renda.

Globalização, Lei Bosman e aumento da desigualdade

Fatores como os conglomerados esportivos, a transnacionalização e a empresarização de clubes, o investimento de capital estrangeiro, a cobertura televisiva, a publicidade e o marketing têm um papel-chave nesse processo. A maior mudança recente, no entanto, ocorreu no âmbito das transferências de atletas e de suas relações contratuais com os clubes a partir da Lei Bosman, que transformou o mercado de circulação de futebolistas ao permitir uma maior liberdade na negociação e na movimentação de atletas em clubes europeus, acabando com as cláusulas restritivas nas relações entre times e jogadores.

Até 1995 vigorava na Europa o chamado passe: os jogadores somente poderiam ser transferidos de um clube para outro com o consentimento das duas equipes, e o passe consistia no valor a ser pago pelo time comprador ao detentor dos direitos sobre o atleta. Além disso, as equipes europeias podiam escalar, no máximo, três jogadores estrangeiros em uma mesma partida. 

Tudo isso mudou no ano seguinte, após o jogador belga Jean-Marc Bosman, do RFC Liège, acertar sua transferência para o Dunkerque, da segunda divisão francesa. A transferência, entretanto, foi impedida pelo Liège em virtude da impossibilidade de o clube francês pagar a quantia pedida pelo passe do jogador. O atleta, então, entrou na justiça, alegando que, como cidadão da União Europeia, possuía o direito à liberdade de movimento para trabalhar. O jogador ganhou a causa e pôde se transferir para a nova equipe.

A cobrança de taxas para a transferência de atletas dentro da União Europeia passou a ser considerada ilegal. Ao término do contrato, portanto, os jogadores podem se transferir livremente, sem ônus para o novo clube ou o atleta. Mesmo em caso de transferência durante a vigência do contrato, o pagamento se limita à multa rescisória, não havendo mais a negociação de um valor de passe, como anteriormente. Outra consequência relevante do caso Bosman foi o fim da limitação para escalação de estrangeiros.

Com isso, reduziu-se significativamente as receitas de clubes menores, e aumentou a disparidade entre as equipes. No futebol do Sul global, as mudanças ampliaram a diferença de nível de competitividade contra os europeus, uma vez que segurar jovens talentos se tornou praticamente impossível. Com a saída dos principais jogadores das ligas do Sul global, ocorre um natural enfraquecimento da qualidade das competições.

“A Lei Bosman acabou aumentando essa desigualdade econômica e competitiva porque acabou dando mais liberdade aos jogadores, maior liberdade econômica e também à livre circulação do capital no futebol. A livre circulação de atletas e a livre circulação do capital, que é um termo que uso muito na tese, no capítulo em que trato especificamente da Lei Bosman: essas questões acentuaram a globalização dentro do mercado futebolístico”, relata Juliano.

A ampliação da desigualdade se evidencia na comparação entre os desempenhos de equipes sul-americanas e europeias ao longo do tempo. Até 1995, a América do Sul tinha 20 títulos do Mundial de Clubes, a Europa, 14. Após aquele ano, os sul-americanos conquistaram apenas seis títulos, contra 20 dos europeus. Também nas seleções se observam mudanças: antes de 1989, a América do Sul venceu sete Copas do Mundo, contra seis da Europa. Desde então, países sul-americanos conquistaram apenas dois títulos, enquanto os europeus obtiveram seis. Segundo o pesquisador, mais estudos são necessários para entender porque isso ocorre também nas seleções, mas uma das possibilidades é a crescente naturalização de atletas para jogarem por seleções europeias.

Fluxos migratórios, emergência de novos mercados e soft power

De modo geral, o levantamento de dados referente ao futebol masculino confirmou o alto número de circulação de jogadores do Sul para o Norte global e um inexpressivo fluxo Norte-Sul. Nota-se que a aceleração do processo de globalização aumentou a transferência de atletas desde as categorias de base. O Brasil, por exemplo, possuía dez jogadores que atuavam no país na seleção da Copa do Mundo de 1990. No mundial de 2018, esse número caiu para apenas três. 

A disparidade financeira entre os times de cada hemisfério explica apenas parte dessa questão. “Grandes clubes do Brasil, da Argentina, enfim, têm grandes salários. Poderiam trazer jogadores de, pelo menos, médio nível europeus, mas não trazem. Então, porque não trazem? A gente tentou identificar, é um pouco difícil conseguir entender, porque não é uma questão salarial, é uma questão cultural mesmo”, comenta Juliano. Para ele, isso pode vir a mudar com a crescente vinda de treinadores europeus para a América do Sul – os portugueses Jorge Jesus e Abel Ferreira, campeões da Copa Libertadores da América com o Flamengo e o Palmeiras, respectivamente, são exemplos de técnicos europeus que tiveram sucesso no Brasil.

Os dados revelam, também, uma tendência de crescimento da transferência de atletas do Sul global a novos mercados, como o mundo árabe e a China, mas nada que se compare ainda ao fluxo Sul-Norte. Algo importante de se destacar aqui é que bilionários, conglomerados e governos desses novos mercados têm investido não só no futebol local, mas também nos clubes europeus, em uma estratégia de soft power, termo que descreve o poder de influenciar comportamentos ou interesses por meios culturais ou ideológicos, em contraposição ao hard power exercido por recursos econômicos e bélicos.   

O patrocínio do Atlético de Madrid pelo governo do Azerbaijão, entre 2012 e 2014, por exemplo, teve a intenção de promover a imagem do país junto ao público internacional. O caso do Qatar, que sediará a Copa do Mundo de 2022, é semelhante. A estatal Qatar Airways patrocinou o Barcelona, e, em 2011, a Autoridade de Investimento do Qatar comprou o Paris Saint-Germain (PSG). A contratação de Neymar pelo PSG ocorreu em um período que o Qatar sofreu corte das relações diplomáticas dos vizinhos Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Bahrein, assim como a contratação de Lionel Messi veio em um momento em que organizações acusavam o país de práticas contra os direitos humanos.

Já na China, o governo lançou o ambicioso “Plano de desenvolvimento do futebol a médio e longo prazo (2016-2050)”, com o objetivo de transformar o país asiático na futura potência do futebol mundial. Paralelamente, conglomerados como Alibaba, Dalian Wanda Group, Jiangsu Suning e Fosun investem no futebol local e no europeu. “Por mais que os novos mercados estejam agindo, muitos acabam investindo em clubes europeus e aumentando ainda mais a diferença [entre times do Sul e do Norte global], porque, em vez de levarem para os seus países, acabam investindo na Europa e aumentando ainda mais o fluxo [de atletas] para a Europa”, reforça Juliano.

Vale ressaltar que não é só a imagem externa de países que é influenciada por resultados de jogos de futebol. Por mais que muita vezes o esporte reproduza o colonialismo sob diversas perspectivas – como no fluxo de migração de atletas dos países periféricos para os centrais e na prática de ações racistas, xenofóbicas e violentas, entre outras –, também se pode enxergar o futebol como uma ferramenta com potencial decolonial. A força de seleções e clubes sul-americanos em âmbito mundial, por exemplo, despertam esse sentimento decolonial e impactam a própria autoestima dos povos. 

“Trabalho um pouco com a questão da decolonialidade. O futebol, em alguns aspectos, tem um mecanismo decolonial, principalmente em relação à decolonialidade do ser (a gente tem a decolonialidade do ser, do saber e do poder). O futebol acaba trabalhando um pouco essa deconialidade do ser, no sentido de que muitas vezes a gente consegue vencer, ao longo da história, os europeus naquilo que eles mais amam. Então, quebra um pouco essa lógica colonial. O futebol tem esse mecanismo”,  explica o pesquisador.

Futebol praticado por mulheres

Por mais que o esporte seja o mesmo, o futebol feminino e o masculino apresentam realidades completamente distintas. “É muito difícil fazer comparações diretas porque todo o processo foi muito diferente. Por mais que lá no início todo mundo jogasse, o processo de desenvolvimento, por questões sociais, de preconceito, econômicas, enfim, acabou sendo muito diferente”, afirma Juliano. “Sempre tentei ter o cuidado, na tese, de não fazer comparações diretas. Procurei analisar cada mercado com suas especialidades, e não comparar um com o outro, para não gerar nenhum tipo de atrito”, complementa.

Por décadas, mulheres foram proibidas de jogar futebol em diversos países – com anuência da FIFA. No Brasil, essa proibição vigorou por 38 anos, de 1941 a 1979, e apenas em 1983 a modalidade foi regulamentada. O decreto de proibição estabelecia que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Conforme Juliano traz em seu trabalho, o que estava em jogo era a inserção das mulheres no espaço público, lutando contra estereotipizações sociais que existiam sobre seus corpos e suas sexualidades. “Isso mostra o quanto o esporte pode ser também alvo desses interesses políticos, sociais e culturais da época”, comenta o pesquisador. 

A primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino ocorreu apenas em 1991, e a modalidade entrou nos Jogos Olímpicos em 1996, em ambos os casos, já no ápice da globalização. Como não poderia deixar de ser, tudo isso moldou o desenvolvimento do esporte e influencia diretamente os fluxos de migração de atletas. Com o domínio de equipes norte-americanas e europeias, observa-se um alto fluxo de atletas do Sul ao Norte global. E, enquanto no futebol masculino o fluxo Norte-Sul é inexpressivo, no feminino, ele é inexistente. 

Chama atenção, também, o número de atletas que disputaram mundiais e Olimpíadas sem estarem filiadas a nenhum time. Das 184 equipes masculinas analisadas participantes de Copas do Mundo, apenas seis possuíam atletas sem vínculos com clubes (3,26%). Já das 108 equipes femininas, 19 estavam nessa situação (17,59% do total). Brasil e Argentina, duas das maiores potências do futebol masculino, são os países que mais possuem jogadoras que disputaram mundiais sem vínculo com clubes.

Isso evidencia o círculo vicioso que existe na modalidade, especialmente na América do Sul. Equipes não recebem investimentos adequados, portanto não alcançam bons resultados, o que, consequentemente, leva ao aumento do preconceito e à diminuição de verbas. “O preconceito, que já existe, acaba sendo maior ainda porque a modalidade não atinge os resultados daquelas expectativas geradas pelas equipes masculinas do Sul global”, analisa Juliano, ressaltando que, no futebol feminino, não se observam os mecanismos decoloniais existentes na modalidade masculina.

“O Brasil acabou sendo competitivo nos últimos anos no futebol feminino por talentos individuais. A gente tem a Marta, a Cristiane, a Formiga, enfim, foi por talentos individuais, não por um processo de desenvolvimento da modalidade, com equipes fortes, com organização. Elas levaram a seleção até onde deu com o talento individual delas. Se tivesse maior estrutura, mais atletas, competições mais fortes no país, mais organizadas, daria maior sustentação para elas, para as atletas de altíssimo nível trazerem títulos mundiais para o Brasil com a seleção”, acrescenta o pesquisador.

O Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, nos moldes como é disputado hoje, só surgiu em 2013, e, desde 2019, todos os clubes masculinos da série A do Campeonato Brasileiro são obrigados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a terem uma equipe feminina adulta e uma de base. A modalidade tem se fortalecido no Brasil e no mundo, apesar de as mulheres ainda estarem excluídas dos principais centros de poder do futebol e seguirem lutando por apoios financeiros básicos. “Essa estruturação do futebol feminino nesses países do Sul global, principalmente na América do Sul, pode dar esperanças, mas ainda acho que há um caminho muito longo a percorrer”, aponta Juliano.

Olhar das Ciências Humanas e novas possibilidades de pesquisa

O grande volume de dados coletados permite diversas novas análises, sob variadas perspectivas. “Foi observada principalmente a questão dos eixos Norte e Sul global, mas há possibilidade de expandir, para, por exemplo, a circulação de atletas periféricos para países semiperiféricos”, comenta Juliano. “Essa pesquisa de levantamento de dados quantitativos traz uma margem para outras pesquisas de cunho qualitativo de diversas áreas das Ciências Humanas”, adiciona.

O futebol movimenta um mercado gigantesco – para se ter uma ideia, a FIFA, com 211 federações filiadas, tem mais membros que a ONU –, e, como tal, o esporte é objeto de estudo em diversos campos do conhecimento. “Acredito que a contribuição da tese é exatamente esta: com esse levantamento de dados, conseguir entender esses fenômenos de circulação para conseguir entender alguns outros aspectos, sob outros pontos de vista teóricos, e, principalmente, para continuar estudando, fazendo levantamentos, conseguindo avançar, entendendo fenômenos quantitativos sob o ponto de vista qualitativo, com visões  da Antropologia, da Sociologia, da Ciência Política, das Ciências Humanas como um todo”, destaca Juliano.

“Tem um ex-atleta do Flamengo [Wallace Reis da Silva] que dizia que o futebol não está preparado para certos questionamentos. Eu concordo, coloquei inclusive a frase lá no início da tese, porque acho muito interessante essa fala dele. O futebol traz questões com que as pessoas não estão acostumadas, estão na zona de conforto, de privilégio, e acabam não tocando. Ultimamente, é muito interessante que questões como racismo, machismo, homofobia, xenofobia estejam ganhando cada vez mais espaço na mídia e nas redes sociais. Tenho certeza de que as Ciências Humanas têm uma grande importância nesse debate. O futebol é um fenômeno cultural e acaba trazendo holofote para essas questões. Então, isso ser debatido dentro do futebol, acho muito importante. É um dever das Ciências Humanas trazer essas questões para evoluir o esporte e, consequentemente, também evoluir a sociedade”, enfatiza Juliano, salientando a importância de trazer à tona “problematizações que o futebol, muitas vezes, não está preparado para receber”. [2]

[1] Foto: Danilo Borges/copa2014.gov.br/CC BY 3.0.

[2] Texto de Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC.

Como citar este texto: UFSC. Pesquisa analisa o processo de globalização e a acentuação da desigualdade no futebol. Texto de Camila Raposo. Saense. https://saense.com.br/2022/01/pesquisa-analisa-o-processo-de-globalizacao-e-a-acentuacao-da-desigualdade-no-futebol/. Publicado em 10 de janeiro (2022).

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