Jornal UFG
08/04/2022
Güinewer Inaê*
“O pesar não tem distância. O pesar vem em ondas, paroxismais, apreensões repentinas que enfraquecem os joelhos e cegam os olhos e obliteram o cotidiano da vida.” (Joan Didion, The Year of Magical Thinking).
Dizer que um século foi marcado por tragédias é trabalho dos historiadores, daqueles que passam suas vidas recordando e analisando o passado. Contudo, o trabalho de um jornalista é realçar o que vivemos para que a história seja contada no futuro, e a tragédia é, de forma indubitável, o que brilha mais entre as linhas do século 21. Tamanha é essa tragédia que muitos nem mesmo possuem tempo de processar o luto, de sentir a dor da perda e o arder da saudade. Seja através de uma morte súbita, através da doença, da violência ou da catástrofe, ou uma morte esperada e temida, a perda se tornou algo cotidiano. Vemos morte por todos os lados, tantas que já passam de números em uma tela, linhas em um gráfico, nomes em uma lista. Empurramos os pensamentos e as dores para longe até que elas batam em nossa porta, e anestesiados em relação ao sofrimento dos outros, levamos tempo para sentir o nosso próprio pesar.
Em contrapartida da dor que se arrasta e leva tempo para ser sentida, há aquela que vem para ficar e não parece ter data de se aliviar. O Transtorno de Luto Prolongado, doença recentemente adicionada ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), é notado atualmente em sobreviventes/familiares de vítimas da pandemia e em refugiados. No último caso, há pesquisas – como uma feita por pesquisadores da Universidade de Zurich, na Suíça – que indicam que não só a morte de familiares e o trauma de presenciar a violência tão grave em seus países, como também as dificuldades enfrentadas em novo território somam a esse problema. Portanto, na só o trauma da perda, como também o da doença, do deslocamento e do conflito se agravam e se tornam parte do dia a dia dessas pessoas em forma de luto e não tem previsão para ir embora.
Muitas pesquisas apontam as diferenças entre esse transtorno e doenças já conhecidas como a depressão, algo já observado pela pesquisa da psiquiatra epidemiologista Holly G. Prigerson nos anos 90. O novo status de doença para o luto é evidência clara de seu impacto em nossa sociedade, mas também é prova de um descuido contínuo de algo tão impactante em nossas vidas. Esse pesar vai além da perda de um ente querido, ele alcança as diversas formas em que nossas vidas são impactadas pela tragédia ao nosso redor.
A massiva exposição da mídia auxilia em ambos os exemplos, no processo de agravamento do luto daqueles que já estão sentindo essa dor. E no processo de anestesia, em que não há exatamente apatia ou indiferença, mas em que a dor e o sofrimento alheio se tornam parte do dia a dia e se acumulam no peito dos que presenciam até o momento em que transborda. É preciso haver uma revisão na forma como falamos de morte, de qualquer tipo, nos meios de comunicação em massa e nas redes sociais, a mesma sensibilidade que usamos para falar de casos de suicídio deveria ser usada em qualquer outro caso. São vidas sendo perdidas, não apenas números, e são vidas sendo impactadas por essas perdas. A forma como lidamos com o luto, o nosso próprio e o dos outros, deve ser discutida de forma mais aberta. Em tempos como os atuais, o pesar se torna uma epidemia como qualquer outra e a única forma de superarmos um problema como esse é em conjunto. Em tempos de tragédia, a comunidade é mais forte que o indivíduo.
*Güinewer Inaê é estudante de Jornalismo da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG e membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello UFG
[1] Foto: jarmoluk / Pixabay
Como citar este texto: Jornal UFG. A Pandemia do luto e como a dor é contagiosa. Texto de Güinewer Inaê. Saense. https://saense.com.br/2022/04/a-pandemia-do-luto-e-como-a-dor-e-contagiosa/. Publicado em 08 de abril (2022).