UFSC
19/12/2022

Latas, garrafas, baterias velhas conheça os polvos que moram no lixo no fundo mar
Polvo encontrado usando de lata de refrigerante como abrigo/Foto: Projeto Cephalopoda

A latinha de refrigerante no fundo do mar parecia vazia, mas um movimento repentino mostrou que não era bem assim. Havia uma pequena espécie de polvo vivendo ali. Tatiana Silva Leite, oceanógrafa e bióloga na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em seus estudos descobriu que os polvos estão se abrigando em latas, vidros e outros tipos de rejeitos humanos. Cada vez mais numeroso no oceano, o lixo que produzimos tornou-se o abrigo mais fácil para algumas espécies de polvos que ocupavam conchas e buracos em ambientes recifais como seus abrigos naturais.

Segundo um estudo realizado pelo Pacto Global da Organização das Nações Unidas, divulgado em junho de 2022, só o Brasil descarta 3,44 milhões toneladas de plástico por ano. Desse total, pelo menos 67% (cerca de 2,3 milhões de toneladas) se concentram em bacias hidrográficas, com risco de chegar ao oceano. Isso significa que por ano, cada brasileiro descarta em média 16 quilos de lixo com potencial de escape para o mar. São sacolas plásticas, garrafas PET, canudos, embalagens, vidros, entre outros.

Instigada por essa situação, Tatiana iniciou uma linha de pesquisa no Projeto Cephalopoda (projeto que estuda polvos e lulas há mais de 20 anos), para estudar o fenômeno dos polvos que vivem abrigados no lixo no fundo do mar. A pesquisa é a primeira no mundo a tratar dessa temática, ganhando repercussão e destaque em vários países. Além disso, o estudo tem uma abordagem de ciência cidadã, que visa incluir e aproximar a sociedade do trabalho realizado por pesquisadores. 

O polvo-pigmeu é a menor espécie de polvo da América Latina, sendo recentemente batizado como Paroctopuscthulu n.sp., foi encontrado primeiramente vivendo em latas, garrafas, baterias velhas e até em um vaso sanitário no litoral do Rio de Janeiro. “O pessoal achava que esse polvo pequenininho era filhote do grande, e ninguém nunca olhou para ele. Aí quando souberam que eu estava aqui, mandaram uma foto e percebi que ele não era filhote, era o seu tamanho”, conta Tatiana, que também já encontrou essa e outras espécies no lixo marinho catarinense.

Após a descoberta, a equipe de pesquisa realizou uma campanha para coletar imagens subaquáticas do mundo todo para analisá-las a fim de entender como os polvos se relacionam com o lixo. Foram utilizados fotos e vídeos de banco de imagens, de cientistas e também da própria comunidade através das redes sociais. Como resultado, foram descobertas 24 espécies de polvos utilizando lixo como abrigo e proteção contra predadores no oceano. “Os polvos são muito inteligentes, têm um ciclo de vida curto e se adaptam muito rápido, então entender essas mudanças em seu habitat ajuda a entender os impactos do lixo no ambiente marinho”, explica a pesquisadora, cujo estudo ganhou repercussão na mídia internacional, com divulgação na National Geographic Francesa, Smithsonian e o jornal The Guardian

Curiosidades sobre os polvos

O nome dessa enigmática criatura dos mares deriva do grego e significa oito pés. São moluscos pertencentes à classe dos Cefalópodes, animais inteligentes capazes de distinguir entre formas e padrões, além de diversas habilidades de aprendizado observacional. Este ser marinho possui um senso de visão bem desenvolvido, não tem ossos e não possui coluna vertebral, portanto, são seres invertebrados muito flexíveis. Habitam as águas salgadas de vários oceanos e, para se protegerem dos predadores, passam a maior parte da vida entre rochas, conchas, fendas entre outros esconderijos naturais.

Ganharam atenção ainda maior com o documentário vencedor do Oscar 2020, My Octopus Teacher, em português, Professor Polvo, que mostra uma amizade fora do comum entre um polvo e um mergulhador. A pesquisadora Tatiana Leite teve participação especial no documentário, que mostrou um dos seus artigos como fonte de pesquisa. Com o sucesso da produção, os animais despertaram o carinho especial do público, principalmente ao mostrar que polvos têm emoções, sentimentos e inteligência superior a outros animais, além de gerar empatia nas pessoas quando confrontadas às situações adversas às quais são expostos, como por exemplo, o grande volume de objetos descartados do mar. 

O pequeno cefalópode brasileiro 

A pesquisa coordenada por Tatiana já observou que o polvo-pigmeu no Brasil costuma se abrigar em latas de cerveja e/ou refrigerante jogadas com frequência no mar, geralmente por pessoas a bordo de embarcações turísticas. Com a permissão da pesquisadora, mostramos aqui algumas imagens coletadas do fundo do mar e do trabalho em campo. 

Várias frentes de pesquisa são necessárias, a começar pela coleta de imagens aquáticas dos polvos para analisar como os objetos descartados no mar estão sendo utilizados como toca. Etapa que requer atuação coletiva com organizações não governamentais (ONGs) e instituições que retiram lixo do mar. O propósito é levantar dados sobre os locais onde os polvos são encontrados frequentemente. 

A próxima etapa é realizar um experimento de campo para estudar os motivos da escolha dos polvos em utilizar objetos descartados no mar como abrigo e assim descobrir se os polvos selecionam o lixo como toca devido a sua grande abundância no mar ou se esses resíduos possuem alguma característica mais vantajosa para os polvos do que as tocas naturais. Os resultados deste teste são de grande relevância para entender a interação entre polvos e lixo, visto que a presença dos rejeitos no mar traz diversos problemas ao ecossistema.

Tatiana espera que, após essa etapa de testagem, seja possível fazer uma campanha para que as pessoas devolvam para o mar as conchas que costumam ser retiradas por curiosidade, para souvenir e peças artesanais. Com isso, espera-se que os polvos voltem a utilizá-las como abrigo. “O mar está pobre de conchas, as pessoas tiraram tantas conchas e mataram tantos bichos que eles não encontram mais lugar natural para morar, resta o lixo. Então, para retirarmos o lixo do mar, precisamos devolver o lugar natural do polvo morar”, explica a pesquisadora.

De muitas maneiras a manutenção da saúde e bem-estar de polvos e outros animais marinhos dependem de financiamento 

O Projeto Cephalopoda, embora tenha chamado atenção da mídia do mundo inteiro, não possui o financiamento necessário para entregar à sociedade um resultado conclusivo sobre a temática do impacto do lixo do mar. Os pesquisadores estão escrevendo projetos, submetendo-os a editais e tentando conseguir parcerias com empresas que produzem lixo marinho com interesse em minimizar o seu impacto no meio ambiente. Segundo Tatiana, os estudos preliminares mostram que garrafas, latas e vidros são os tipos de lixo mais encontrados no mar, então as empresas que trabalham com esses objetos são a prioridade.

“Estamos esperando conseguir algum financiamento, por enquanto nossa ideia é: primeiro entrar em contato com todas as principais ONGs do Brasil que fazem retirada de lixo do mar, para sabermos onde é que essa espécie está e se realmente ela só está vivendo no lixo. Depois vamos fazer o teste para verificar se, à medida que o lixo for retirado, o polvo retorna ao seu ambiente natural. Se ele voltar, vamos passar para a terceira fase que é a campanha para devolução das conchas para o mar”, explica a oceanógrafa.

É necessário a aquisição de equipamentos básicos de segurança, cilindros de mergulho, passagens aéreas para realizar visitas em locais onde os polvos são encontrados vivendo no lixo, além de todo material de testagem dessa interação com os rejeitos. Além dessa parte estrutural da pesquisa, o projeto precisa de financiamento para fazer a campanha de conscientização e incentivo para devolução das conchas ao mar, uma etapa importante e que requer treinamento das equipes para a retirada do lixo do mar de maneira correta.

Por que incentivar o Projeto Cephalopoda?

Estudar a interação dos polvos com o lixo e os impactos no ecossistema marinho requer pesquisa e engajamento social. Segundo Tatiana, a proteção das espécies depende do quanto as pessoas estão envolvidas com a causa e as questões ambientais. “O maior impacto dessa pesquisa é o entendimento de como o lixo no mar pode afetar outras espécies que a gente ainda desconhece”, diz a oceanógrafa.

Além disso, estudar um animal carismático como o polvo é uma estratégia de gerar empatia para conscientizar as pessoas sobre a poluição nos oceanos. “Temos o polvo como uma espécie símbolo de inteligência. Então nós estudamos como é que ele se adaptou a isso, como a nossa interferência tanto no descarte do lixo no mar, como na retirada de material natural que a gente acha que não serve para nada – como as conchas que a gente usa como enfeite – está afetando esses animais que dependem delas para viver” prossegue Tatiana.

A complexidade dos impactos do lixo para os animais marinhos é tão grande que ainda não se conhece todos os efeitos para cada espécie. Mas já se sabe que os componentes tóxicos do lixo se acumulam nos organismos ao longo da cadeia alimentar, com efeitos nos seres humanos. “É muito triste, é como se a gente estivesse vendo no mar pessoas que vivem no lixão. É a mesma coisa. A gente sabe que pessoas que vivem no lixão têm diversos problemas de contaminação e a gente está diante de bichos que vivem no mar na mesma situação. O maior impacto do projeto é a mudança de percepção do ser humano sobre as consequências de seus comportamentos”, enfatiza Tatiana.

O futuro da pesquisa oceânica no Brasil 

Um projeto como o Cephalopoda sobretudo chama a atenção da comunidade em geral paras as questões da poluição dos oceanos e proteção das espécies marinhas. “A gente está na Década do Oceano e a ideia é que esse tipo de informação tenha impacto no pensamento da pessoa, tanto sobre jogar qualquer coisa no mar como de retirar coisas naturais do mar”, conta a pesquisadora. 

A Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, ou Década do Oceano, é uma ação de integração entre ciência e política declarada em 2017 pelas Nações Unidas e realizada entre 2021 e 2030. Surge da necessidade de incentivar que a ciência atue em conjunto com os órgãos governamentais para garantir a saúde dos oceanos e a melhor gestão para cumprir as metas da agenda 2030.

Os dados falam por si. Os recursos dedicados aos estudos do oceano no Brasil correspondem a apenas 0,03% dos gastos totais em pesquisa no país, conforme relatório da Unesco divulgado em 2022. Além disso, o relatório analisou o baixo número de pesquisadores focados em ciência oceânica no Brasil, com indicadores muito abaixo do esperado: há menos de 10 cientistas dedicados à temática a cada 1 milhão de habitantes no país. Lideram a lista Portugal, Noruega e Suécia, com 300 pesquisadores a cada milhão de habitantes. 

O financiamento da ciência dos oceanos para a ação climática foi inclusive uma das pautas abordadas na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – COP 27, em novembro deste ano, no Egito. Os países reconhecem a importância dos oceanos e a necessidade de preservação desse ecossistema. O cenário atual evidencia a urgência de apoio e captação de investimentos dos setores privado e filantrópico para estudos como o projeto Cephalopoda da UFSC, uma boa maneira de contribuir para a evolução da pesquisa sobre o oceano no Brasil. [1]

[1] Texto de Maria Magnabosco (Estagiária de jornalismo / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica / UFSC) e Rafaela Souza ( Estagiária de design / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica / UFSC).

Como citar este texto: UFSC. Latas, garrafas, baterias velhas conheça os polvos que moram no lixo no fundo mar. Texto de Maria Magnabosco e Rafaela Souza. Saense. https://saense.com.br/2022/12/latas-garrafas-baterias-velhas-conheca-os-polvos-que-moram-no-lixo-no-fundo-mar/. Publicado em 19 de dezembro (2022).

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