Jornal da USP
23/08/2023

Testamento vital “a voz do paciente quando ele não tiver mais voz”
Vontade do paciente sobre tratamentos a que deseja ou não ser submetido pode ser manifestada em documento – Foto: Freepik

Na nossa cultura, morte e finitude da vida ainda são assuntos que suscitam desconforto. Mas fugir do tema está longe de ser uma boa alternativa: algumas das angústias de quem passa pelos momentos finais inclusive poderiam ser minimizadas se, enquanto em plena consciência e capacidade de tomar decisões, essas pessoas tivessem registrado suas vontades em um “testamento vital”. O documento indica a manifestação da vontade do paciente – seja de aceitação ou de recusa – quanto aos procedimentos, cuidados e tratamentos de saúde a que ele deseja ser submetido caso esteja com uma doença terminal.

Uma pesquisa da USP aborda a questão do ponto de vista dos profissionais de enfermagem que lidam no dia a dia com pacientes terminais. O estudo traz as percepções deles com relação ao testamento vital, às divergências familiares no leito de morte e de quando se deparam com o autoritarismo médico em encaminhamentos que levam ao prolongamento artificial da vida.

“O testamento vital representa a autonomia e o direito do paciente a um tratamento digno em seus últimos dias de vida. É a garantia de que ele não será mantido vivo [contra sua vontade] com a ajuda de aparelhos e nem será submetido a procedimentos médicos invasivos ou dolorosos”, descreve ao Jornal da USP a enfermeira do Instituto do Coração (Incor) da USP, Fabiana Remédio. Ela, que também é especialista em cardiologia e administração hospitalar e bacharel em Direito, é autora da pesquisa de mestrado defendida na Escola de Enfermagem (EE) da USP.

O documento pode ser registrado em cartório ou escrito de forma particular; seja de próprio punho ou redigido no computador e depois impresso e assinado. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) também prevê que, no hospital, quando o paciente verbalizar sua vontade quanto aos procedimentos a que ele deseja ser submetido, o médico deve registrar essa decisão em seu prontuário, explica, ao Jornal da USP, a advogada e bioeticista Luciana Dadalto.

Independentemente de como ele é elaborado, o testamento vital precisa ser levado ao conhecimento da família e dos profissionais de saúde, de forma a embasar tomadas de decisões com relação ao desejo do paciente sobre como quer ser tratado ao final de seus dias, observa Fabiana Remédio.

Mesmas angústias

A pesquisadora entrevistou 15 enfermeiros com especialização em cardiologia – a maioria com longa experiência profissional na área (entre seis e 15 anos) – que trabalhavam em um hospital público de São Paulo, em 2017. Trabalhando na mesma instituição há 20 anos, Fabiana Remédio queria saber se os colegas compartilhavam suas angústias ao presenciar debates calorosos de familiares quanto ao encaminhamento do tratamento de pacientes em terminalidade. Principalmente quando eles, em algum momento no decorrer da internação, já haviam manifestado verbalmente o desejo de serem poupados de sofrimentos advindos de tratamentos dolorosos e indignos.

As análises das respostas foram baseadas no “Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)”, uma técnica científica de tabulação de dados qualitativos pela qual se conhece o pensamento, as representações, as crenças e os valores de uma coletividade sobre um determinado tema. Separando aspectos mais significativos com expressões-chaves e ideias centrais, identificou-se três discursos manifestados pelos profissionais de saúde.

No primeiro, “O enfermeiro frente às diretivas antecipadas de vontade”, os enfermeiros demonstraram compreender o conteúdo e a importância do testamento vital; que o desejo do paciente manifestado no documento deveria ser respeitado pelos profissionais de saúde; e que, se existisse o testamento vital e eles não pudessem cumprir a vontade do paciente, eles se sentiriam muito frustrados.

Cada pessoa é um mundo diferente, tem convicções diferentes, crenças diferentes e cultura diferente; a gente tem que aprender a trabalhar com o outro e com essas diferenças – trecho do discurso coletivo.

No segundo discurso, “O enfermeiro frente à família do paciente em terminalidade”, os enfermeiros relataram a importância de explicar o prognóstico do paciente à família; de fazer a comunicação da existência de um testamento vital expressando a vontade do paciente; e de promover o diálogo entre familiares, paciente e profissionais de saúde quanto à condição do paciente e os caminhos que deveriam ser seguidos em relação aos cuidados paliativos.

Segundo a mais recente definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2017, cuidados paliativos são uma “abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e suas famílias que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Considerando valores e a biografia dos pacientes, o procedimento, que envolve equipe multidisciplinar, previne e alivia o sofrimento, através da identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais ou espirituais”.

Eu vejo que a grande maioria dos pacientes não conversa com a família sobre isso. Normalmente é a equipe médica ou a equipe de enfermagem que começa a conversar, entre si, para poder chegar na família, introduzir esse assunto e apresentar, enquanto o paciente está lúcido, o testamento vital, para ser tudo acordado – trecho do discurso coletivo

No terceiro discurso, “O enfermeiro frente ao médico do paciente em terminalidade”, os profissionais mencionaram os casos de autoritarismo médico como impedimento para conduzir os cuidados paliativos com os pacientes em terminalidade; e o sentimento de frustração por não atender à vontade do paciente, mesmo fazendo parte da equipe médica.

 (…) vou tentar conversar, explicar que esse não é o desejo do paciente, falar que o paciente tem o direito. Pediria para família também conversar com o médico. É sempre isso que a gente faz, tenta conversar, mas eles que mandam. Eu não poderia ir contra” – trecho do discurso coletivo.

Baseando-se nessas manifestações, o que estudo indica, em síntese, é que o testamento vital representa, na perspectiva dos enfermeiros, a autonomia e o direito do paciente sobre as decisões nas situações de terminalidade. E que este documento deve ser compartilhado com familiares e profissionais de saúde.

De casa ao ambiente hospitalar

Segundo o trabalho, ao longo da história o momento da morte foi sendo retirado do ambiente familiar e doméstico e transferido para ambientes hospitalares, onde existe aparato tecnológico e pessoas capazes de prolongar a vida humana. Porém, este mesmo ambiente, capaz de proporcionar cura e vida, pode ser desumano para pacientes em terminalidade, que podem perder a consciência e a capacidade de decisão sobre como desejam viver seus últimos dias.

Um estudo citado na pesquisa, feito com 458 indivíduos em um hospital geral nos Estados Unidos, buscou saber como eles desejariam passar os últimos dias quando estivessem perto de morrer. Foi constatado que a maior parte desejava morrer em casa (75%). Mesmo assim, a maioria veio a falecer em alguma instituição de saúde (66%). Essa realidade talvez fosse outra se as pessoas pudessem escolher como morrer e deixassem essa vontade explícita e registrada, relata Fabiana Remédio.

Por outro lado, a formação de profissionais de saúde não contempla o assunto na grade curricular da graduação, como sugere uma pesquisa realizada com alunos de enfermagem na cidade de São Paulo. Nesse estudo, apenas 25% dos graduandos responderam adequadamente quanto à definição do testamento vital; 44% responderam de forma parcialmente adequada; 25% responderam não ter conhecimento; e 56% afirmaram não ter discutido o tema até aquele momento, o que reforça a necessidade de inclui-lo na graduação.

Morte: um tabu social

A pesquisadora recomenda que as pessoas falem em seu dia a dia sobre finitude da vida e morte, um processo natural pelo qual todo ser vivo irá passar. “É preciso quebrar os tabus culturais porque somos mortais”, diz a enfermeira.

Segundo ela, existem programas governamentais multiprofissionais que dão assistência às famílias e aos pacientes terminais em domicílio. No SUS, há o Melhor em Casa, e o próprio Saúde da Família, entre outros. No sistema particular, estão disponíveis algumas alternativas de home care. Mesmo com esses serviços, porém, o medo e a insegurança ainda prevalecem em pacientes e familiares – o que reforça a necessidade de se falar mais em terminalidade. É fundamental saber que podemos cuidar de nossos entes queridos em casa, provendo conforto, qualidade de vida e alívio do sofrimento através da prevenção de situações dolorosas.

A advogada Luciana Dadalto considera o assunto abordado pela pesquisa importantíssimo e diz que, embora o testamento vital traga repercussões na rotina de toda a equipe de saúde e precise ser feito com o auxílio de um médico, o documento é do paciente. Ela lembra que, no Brasil, a introdução do tema se deu de forma diferente ao que ocorreu em outros países, onde o assunto começou a ser discutido via movimentos sociais. O tema foi introduzido no País com a resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina, em 2012, o que fez com que muitas pessoas – tanto da sociedade quanto da gestão das instituições da saúde – olhassem para o testamento vital como documento médico.

Embora não haja legislação específica sobre o assunto, a validade do testamento vital é fundamentada na Constituição Federal de 1988: artigo 1º, III, que trata do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, artigo 5º, que trata do Princípio da Autonomia Privada e no artigo 5º, III, que trata da proibição constitucional de tratamento desumano, informa a pesquisadora.

Aspectos éticos

A contribuição da pesquisa também está no fato de ter lançado luz em situações normalmente escamoteadas, como a dificuldade de cumprimento da vontade dos pacientes e os dilemas gerados em família, diz Luciana Dadalto.

Para a advogada, é preciso efetivamente reconhecer como valor ético o cumprimento das manifestações de vontades dos pacientes. Segundo ela, vivemos em uma sociedade que, por ter dificuldade em lidar com a finitude da vida, confunde o cuidado com o prolongamento artificial do processo de morrer. Assim, há uma falsa ideia de que a morte de um paciente é um fracasso dos profissionais de saúde e que o prolongamento da vida deva acontecer indefinidamente.

Em sua opinião, o principal aspecto ético do testamento vital é o deslocamento do interesse social de negar a morte para o interesse individual do paciente, dele decidir e delimitar o que vale a pena ser vivido – uma vida “biográfica” ou apenas “biológica”. “O testamento vital é a voz do paciente quando ele não tiver mais voz”, conclui.

A pesquisa de mestrado Representação Social das Diretivas Antecipadas de Vontade teve orientação do professor Marcelo José dos Santos, da EE. O assunto também foi tratado em artigo na Revista Eletrônica de Enfermagem em junho de 2023.

Mais informações: e-mail fabiana.remedio@incor.usp.br, com Fabiana Remédio, e e-mail luciana@lucianadadalto.com.br, com a advogada e bioeticista Luciana Dadalto [1], [2]

[1] Texto de Ivanir Ferreira.

[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/testamento-vital-a-voz-do-paciente-quando-ele-nao-tiver-mais-voz/.

Como citar este texto: Jornal da USP. Testamento vital: “a voz do paciente quando ele não tiver mais voz”.  Texto de Ivanir Ferreira. Saense. _https://saense.com.br/2023/08/testamento-vital-a-voz-do-paciente-quando-ele-nao-tiver-mais-voz/ Publicado em 23 de agosto (2023).

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