UFPR
01/09/2023
Os javalis, porcos selvagens que podem chegar a pesar até 250 quilos, foram listados entre as cem espécies mais invasoras do mundo, de acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Os animais já causam impacto em todos os continentes, com exceção da Antártica. No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a espécie está presente nos seis biomas e em 2010 munícipios, os quais registram invasões de áreas naturais e agrícolas por parte dos animais.
Além de causar consequências na saúde animal nativa e pecuária, na biodiversidade, na saúde ambiental e na agricultura, os javalis ainda são considerados hospedeiros e reservatórios de várias doenças zoonóticas, como toxoplasmose, salmonelose, leptospirose, tuberculose, hepatite E, influenza A e febre maculosa.
Em artigo recém-publicado no periódico One Health, da Science Direct, pesquisadores do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em colaboração com integrantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, sugerem que a caça ao javali como medida de controle falhou, principalmente devido a grupos privados que visam, sobretudo, machos, deixando, intencionalmente, fêmeas e leitões vivos para possibilitar a continuidade da prática, o que faz com que as populações de javalis sejam disseminadas em todo o país.
Mas por que a caça aos javalis foi permitida no Brasil? Os javalis foram a primeira espécie animal liberada para caça na história do país, isso porque não existem predadores naturais para ela na região. E, como é uma espécie invasora, ou seja, fora de sua área de distribuição natural, ameaça habitats, serviços ecossistêmicos e a diversidade biológica, causando impactos em ambientes naturais.
No artigo, os autores avaliam que a espécie exótica precisa ser controlada, mas a “caça ocasional” não deveria ficar acima de políticas públicas direcionadas.
O estudo revela que, além de as ações governamentais iniciais relacionadas à legalização da caça de javalis no Brasil terem sido desastrosas e causado ameaças diretas a espécies nativas, elas ainda provocaram problemas de crueldade contra os cães de caça. Por isso, em agosto deste ano, o governo federal, por meio do Ibama, suspendeu preventivamente as novas autorizações de manejo em vida livre nas modalidades de caça ativa, ceva ou espera, no Brasil, até que a norma seja adequada ao Decreto nº 11.615, publicado em 21 de julho de 2023.
Para os cientistas, a problemática do javali exige uma abordagem de saúde única que avalie não só o impacto, mas o planejamento e o monitoramento dos procedimentos. Esse conceito trata da integração entre saúde animal, humana e ambiental que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde de pessoas, animais e ecossistemas.
Caça tem ajudado a transmissão de doenças presentes nas populações de javali
As zoonoses são doenças naturalmente transmissíveis entre os animais e o homem. Elas são causadas por bactérias, parasitas, vírus e fungos que entram em contato com seres humanos a partir de hospedeiros intermediários ou definitivos, como gatos, cachorros, carrapatos, morcegos, aves e bovinos. No entanto, esses animais são tão ou mais vítimas dos micro-organismos do que nós.
Entre as zoonoses mais conhecidas estão a raiva (transmitida por animais infectados por um vírus quase 100% fatal), a leptospirose (causada por uma bactéria e cuja transmissão acontece pelo contato com a urina de animais contaminados, principalmente ratos), a leishmaniose (que tem como agente infeccioso um protozoário e pode infectar animais domésticos, selvagens e seres humanos por meio da picada de mosquito), a toxoplasmose (transmitida principalmente por meio de carne crua e verduras mal lavadas) e a febre maculosa (doença altamente fatal transmitida por carrapatos e predominante nas regiões sul e sudeste do Brasil).
Os javalis se encontram no ciclo de disseminação de muitas dessas enfermidades. É o caso, por exemplo, da febre maculosa. Apesar de não serem responsáveis por transmitir a doença, que é causada por bactérias do gênero Rickettsia e transmitida por diferentes espécies de carrapatos, os mamíferos podem participar do ciclo da doença à medida que mantêm e carreiam grandes populações de carrapatos em diferentes estágios de desenvolvimento, os quais podem estar infectados.
A pesquisadora e primeira autora do artigo da One Health, Louise Bach Kmetiuk, percebeu essa relação no desenvolvimento de sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular (PGBiocel) da UFPR. No trabalho, ela pesquisou a infecção pela bactéria Rickettsia spp. em javalis, cães de caça e seres humanos caçadores de javalis no bioma Mata Atlântica, na região dos campos gerais do Paraná.
Conforme a espécie de carrapato, diferentes animais como bois, cavalos, cães, aves domésticas, roedores e, especialmente, capivaras podem ser seus hospedeiros intermediários ou definitivos. Os javalis também entram nessa lista, já que são considerados banquetes para esses parasitas.
Como o controle desses porcos selvagens é feito pela caça, seja por lazer (proibida no Brasil) ou como forma de controle populacional, pessoas adentram matas para capturá-los e levam consigo cães de caça para auxiliar nesse processo. Foi acompanhando essa prática que a pesquisadora desenvolveu sua tese e realizou algumas observações importantes do ponto de vista das zoonoses.
“O estudo realizou análises sorológicas e moleculares para a bactéria transmissora da febre maculosa em carrapatos, javalis, cães de caça e seres humanos nas regiões sul e centro-oeste do país. Os resultados deram conta que atividades humanas como a de controle populacional de javalis podem aumentar o risco de exposição a carrapatos e, consequentemente, a ocorrência de doenças transmitidas por eles”, explica Louise.
Segundo a pesquisadora, suspeita-se que javalis possam transportar e disseminar os mesmos carrapatos presentes nas capivaras de seus habitats originais para outros ecossistemas. Além de os animais carrearem carrapatos infectados para áreas não endêmicas, o hábito de caça pode ocasionar o aumento da exposição à febre maculosa, já que a prática eleva o risco de infecção por parte de seres humanos e cães, que ainda podem levar esses parasitas para ambientes domiciliares.
Além da febre maculosa, toxoplasmose e raiva preocupam pesquisadores
A toxoplasmose, apesar de ser uma das zoonoses mais comuns no mundo, não apresenta sintomas na maioria das pessoas infectadas. O grande problema da patologia é quando afeta mulheres grávidas, durante a gestação, podendo ocasionar aborto e nascimento de natimorto ou de crianças com icterícia, macrocefalia, microcefalia e crises convulsivas. Indivíduos com o sistema imunológico enfraquecido podem manifestar toxoplasmose ocular ou cerebral.
Ao contrário da crença popular, os gatos, ainda que apresentem o protozoário responsável pela disseminação da doença nas fezes, não a transmitem. A transmissão se dá pela ingestão de água ou de alimentos contaminados pelos protozoários.
“Se as fezes contaminadas forem ingeridas, diluídas ou não, por animais e seres humanos, podem ocasionar a doença. É possível contrair toxoplasmose a partir da ingestão de carne mal passada de animais de produção sem inspeção sanitária”, esclarece o professor do PGBIOCEL Alexander Welker Biondo.
Como hospedeiros intermediários, os javalis podem, assim como outros animais de produção, apresentar cistos do protozoário em sua musculatura e servir como fonte de infecção da toxoplasmose caso haja consumo da sua carne. Nesse caso, o estudo de Louise mostrou que as criações clandestinas de fundo de quintal são as mais suscetíveis.
O gato só elimina o protozoário causador da toxoplasmose por um período médio de 15 dias ao longo de toda sua vida. A chance de contaminação pelo próprio gato é quase zero e exige falta de higiene.
Já a raiva é a zoonose mais ameaçadora que os javalis são capazes de espalhar. Uma das doenças mais mortais em todo o mundo, a raiva afeta o sistema nervoso central e tem uma taxa de letalidade de quase 100%. Estudo recente apontou que mais de 11% dos animais desta espécie no Brasil foram expostos à raiva, provavelmente devido ao contato com saliva contaminada de morcegos hematófagos – que se alimentam de sangue – ou pelo consumo de carcaça infectada.
“Os javalis expostos à doença podem desempenhar um papel importante no ciclo da raiva silvestre, fornecendo, indiretamente, um suprimento de sangue para morcegos hematófagos, juntamente com a transmissão direta do vírus da raiva para caçadores e cães de caça”, pontua Biondo.
A abundância de javalis como espécie de caça com altas taxas de reprodução em todo o mundo contribuiu para um grande e generalizado abastecimento de carne não convencional, alertando recentemente a União Europeia sobre o risco de propagação de doenças transmissíveis aos suínos domésticos. Tal risco direto e indireto de patógenos transmitidos por alimentos pode comprometer a segurança e a proteção alimentar, uma vez que javalis podem abrigar e transmitir agentes zoonóticos por alimentos para humanos, exigindo inspeção específica de carne de caça.
Liberação da caça de javalis estimulou caça ilegal de animais nativos
A normativa de 2013 do Ibama que liberou a caça de javalis determinava que os caçadores fossem cadastrados e proibia o transporte de animais vivos e o comércio de carne de javali, couro e outros produtos derivados. Entretanto, esse movimento causou frenesi em grupos de caça, ocasionando a disparada da caça ilegal nos últimos anos. Esses caçadores também têm como alvos as queixadas nativas, as capivaras, os gatos selvagens e até onças.
Organizações não-governamentais de bem-estar e proteção animal de todo o país passaram a questionar o uso de cães de caça para farejar e apreender javalis. Elas argumentaram que os cães de caça sofrem continuamente crueldades devido ao transporte estressante, em gaiolas sem água, comida ou espaço para descanso; à falta de higiene; à luta contra feridas; à morte potencial; e à exposição às zoonoses. Como cães de caça também são fauna exótica no Brasil, essas atividades podem levar à predação de fauna nativa, a exemplo de pássaros e pequenos roedores, contribuindo para mais danos à biodiversidade.
A abordagem contemporânea de biossegurança contra espécies animais exóticas tem levado a um modo militar de pensar “homem versus javali”, estimulando a compra individual de armas e a caça para controle. “A ganância humana e as atividades comerciais guiadas pela caça culminaram na soltura do javali, na fuga intencional e na disseminação em todos os seis biomas brasileiros, incluindo unidades de preservação nacionais e estaduais, terras agrícolas e pastagens de gado, com ampla disseminação”, revela o artigo. [1], [2]
[1] Texto de Jéssica Tokarski.
[2] Publicação original: https://ciencia.ufpr.br/portal/o-dilema-dos-javalis-da-transmissao-de-doencas-ao-estimulo-da-caca-ilegal/.
Como citar este texto: UFPR. O dilema dos javalis: da transmissão de doenças ao estímulo da caça ilegal. Texto de Jéssica Tokarski. Saense. https://saense.com.br/2023/09/o-dilema-dos-javalis-da-transmissao-de-doencas-ao-estimulo-da-caca-ilegal/. Publicado em 01 de setembro (2023).