Josué Modesto dos Passos Subrinho
01/11/2023
De 23 de outubro a 10 de novembro deste ano, em todo o País, escolas públicas e uma amostra de escolas privadas aplicarão provas para avaliar o nível de conhecimento atingido por estudantes do 5º. e 9º. anos do Ensino Fundamental e da 3ª. série do Ensino Médio. Será a segunda aplicação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) após a pandemia da COVID 19 e da reformulação do FUNDEB. A primeira nessas condições, realizada em 2021, ficou sujeita a controvérsias e dúvidas acerca da representatividade, visto que a participação dos estudantes foi menor que a obtida em edições anteriores. A influência de vieses derivados de uma participação maior dos estudantes que tiveram melhores condições de aprendizagem, nas condições geradas pela pandemia, e da aprovação automática, adotada por boa parte das escolas no mesmo período, também foi objeto de impugnação.
Além de ter recebido a mesma denominação do seu antecessor, o atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) reteve muitas características do antigo e incorporou novos atributos e exigências. Não nos alongaremos na descrição das permanências e mudanças, entre as quais estão a exigência de implantação pelos estados de critérios de distribuição de parte da quota municipal dos ICMS com base no desempenho dos municípios nas etapas educacionais sob sua responsabilidade e da transferência pelo Governo Federal de uma nova parcela, Valor Aluno Ano Total (VAAT), que em 2026 corresponderá a 10,5% do valor total dos Fundos das 27 unidades da Federação, contemplando redes municipais com valores per capta abaixo de um mínimo nacional, mesmo que localizados em Estados cujos valores médios estejam acima de um mínimo fixado em outro critério. O nosso foco estará na parcela Valor Aluno Ano por Resultado (VAAR) que é a mais complexa quanto à imposição de condicionalidades e à mensuração dos resultados almejados, cuja implantação começou no ano de 2023 e está pendente de regulamentação definitiva.
A parcela VAAR foi uma solução de compromisso construída durante os debates visando a prorrogação e consolidação do FUNDEB a partir de duas posições opostas, delineadas com muita simplificação: a primeira de que o modelo de financiamento da Educação Básica no Brasil, consolidado com o FUNDEB, já alcançara montante financeiro suficiente para a universalização e elevação da qualidade de ensino. O principal problema a ser enfrentado, seria, portanto, a eficiência da gestão, visto que o incremento significativo de recursos aplicados na Educação Básica não teria resultado em elevação equivalente nos índices que medem a qualidade de ensino. Os adeptos dessa tendência apresentam os exemplos de municípios com elevados valores per capta aplicados na educação e sem correspondentes resultados em qualidade de ensino. [1]
A segunda posição partia da heterogeneidade do País e de suas diferenças nos níveis de financiamento da educação básica, não obstante o papel redistributivo que tivera o FUNDEB. Os exemplos preferidos eram os municípios com valores per capta muito baixo, especialmente os localizados nas regiões Norte e Nordeste, e a comparação dos valores médios dispendidos na Educação Básica do Brasil com os países desenvolvidos. Segundo esta posição, o principal problema seria a insuficiência de recursos destinados à Educação Básica, sugerindo-se, portanto, que o aumento na disponibilidade de recursos geraria quase automaticamente melhores resultados.
Atacado o problema da crônica insuficiência de recursos dos municípios mais pobres com a transferência de recursos do Governo Federal através da parcela VAAT, restava criar instrumentos que incentivassem, com recursos adicionais, a adoção de boas práticas de gestão e a busca por resultados em termos de qualidade e equidade educacional, o que seria viabilizado com outra parcela do FUNDEB, a VAAR.
A parcela VAAR do FUNDEB é a que possui menores recursos (2,5% do total dos fundos a ser alcançado em 2026), mas teve a vantagem de trazer recursos extras para a Educação Básica, com o acréscimo paulatino do aporte de recursos do Governo Federal.
A solução de compromisso entre as visões distintas acerca da vinculação de recursos para o financiamento da Educação Básica foi facilitada pela ampliação da participação do Governo Federal de 10% para 23% do total dos fundos FUNDEB, não obstante a posição contrária do Governo Federal de então à continuidade da vinculação e, mais ainda, da ampliação dos encargos. Os governadores dos estados e prefeitos, por sua vez, desejavam uma expansão da contribuição do Governo Federal para 40% do valor total dos fundos. O Congresso Nacional, por ampla maioria, através da Emenda Constitucional N. 108/2020 impôs a solução acima descrita. Algumas acomodações já se fazem sentir partindo de setores que julgam que a Educação Básica está recebendo recursos relativamente abundantes com o novo marco legal e com a transição demográfica. Por exemplo, o governo do estado de São Paulo anunciou uma proposta de ajuste da vinculação da receita do Estado à educação, atualmente de 30%, para o mínimo fixado na Constituição Federal para os estados, 25%. Outros estados possuem vinculações acima do mínimo fixado na Constituição Federal. A proposta do governo de São Paulo terá seguidores?
A distribuição da parcela VAAR, para o ano de 2024, foi regulamentada pela Resolução N. 1 de 28 de julho de 2023, que trata do atendimento das condicionalidades e medidas de desempenho para o acesso pelas redes de ensino aos recursos dessa parcela.
Quanto à condicionalidade I (critérios para a seleção de diretores escolares) estabeleceu que seria atendida da seguinte maneira:
“…as redes que possuírem legislação local normatizando o provimento do cargo de gestor escolar por meio de critérios técnicos de mérito e desempenho ou a partir de escolha realizada com a participação da comunidade escolar dentre candidatos aprovados previamente em avaliação de mérito e desempenho e que comprovarem ter, no mínimo, iniciado processo de seleção para provimento de cargos de gestores escolares, por meio da publicação de edital ou documento equivalente, que configure processo seletivo, até a data limite estabelecida no art. 6º desta Resolução.”
Trata-se de uma mudança fundamental: a profissionalização da gestão escolar e a valorização de um dos aspectos da carreira do professor, a gestão. A prática de longa duração de usar os cargos de gestão escolar e de redes escolares como moeda de troca no jogo político partidário compromete a eficiência na aplicação dos recursos públicos destinados ao setor. Segundo dados do Monitoramento do Plano Nacional de Educação “Em 2021, em 19,1% das escolas públicas a escolha dos diretores ocorreu exclusivamente por meio de eleições e em 7,7% a escolha se deu por meio de processo seletivo. A forma predominante de escolha de diretores das escolas públicas brasileiras ainda é a indicação por parte da administração, com 56,3% dos diretores.” [2] Um estudo de Miranda e Pazello (2014) concluiu que a indicação política tem efeito negativo no IDEB, diminuindo em média 11 pontos na escola SAEB. [3] Espera-se, portanto, a partir da indução feita pelo acesso aos recursos da parcela VAAR, um grande impacto na qualidade da educação resultante da mudança no método de escolha dos diretores escolares nas redes públicas brasileiras.
O artigo 2º. da Resolução N.1 de 28 de julho de 2023 suspendeu, para a distribuição da parcela VAAR referente ao ano de 2024, o cumprimento da condicionalidade II (comparecimento de no mínimo 80% dos estudantes matriculados nas séries/anos objeto das provas do SAEB). Será a segunda vez que esta condicionalidade não será cobrada, visto que em 2021, sob a alegação de que muitas escolas ainda não haviam retornado às aulas presenciais, esta condicionalidade foi suspensa. Quanto ao SAEB 2023 a alegação dos setores que demandaram a não aplicação da condicionalidade II do VAAR remete ao prazo de disponibilização dos seus resultados pelo INEP, previstos para meado de 2024. A frequência dos estudantes nas provas SAEB 2023 será, entretanto, utilizada para a aferição da condicionalidade II para as distribuições das parcelas VAAR de 2025 e 2026. Faz-se, portanto, necessário reforçar a informação para todas as escolas públicas da importância da máxima participação dos estudantes para assegurar uma das condições de acesso a essa parcela de recursos públicos.
O artigo 3º. regulamentou o cumprimento da condicionalidade III (C) e a metodologia dos cálculos a serem feitos pelo INEP. A metodologia proposta objetiva a medição da redução das desigualdades educacionais entre grupos raciais e entre diferentes níveis socioeconômicos, para cada rede de ensino, utilizando-se os dados das provas do SAEB 2017 e 2019 e quanto aos níveis socioeconômicos, os dados dos questionários contextuais aplicados no SAEB.
Para o cálculo da evolução das diferenças entre as raças/cor, serão agregados no grupo 1 os alunos autodeclarados brancos e amarelos e no grupo 2 os alunos declarados pretos, pardos ou indígenas. Para o cálculo da evolução entre os diferentes níveis socioeconômicos serão agregados no grupo 1 alunos considerados socioeconomicamente favorecidos, que estão entre os 25% dos estudantes com os maiores valores do Indicador de Nível Socioeconômicos (INSE) [4] (≥ percentil 75) e o grupo 2 formado pelos estudantes considerados socioeconomicamente desfavorecidos, cujos valores do INSE estão entre os 25% dos estudantes com os níveis mais baixos (≤ percentil 25). Dois índices, portanto, serão produzidos: um indicando a evolução das diferenças educacionais entre as raças/cor e outro entre os níveis socioeconômicos. Observe-se que o resultado desejado é que as diferenças de desempenho educacional entre as raças/cor e nível socioeconômico desapareçam. Exemplificando: se em um determinado ano, uma rede municipal o nível de aprendizagem dos estudantes do grupo socioeconômico 1, expresso pela média das notas padronizadas das provas SAEB de Português e Matemática é de 6,0 e do grupo socioeconômico 2 é de 4,0, o Indicador de Desenvolvimento Social (IDEsocial)seria 4,0/6,0 = 0,67. Se não houvesse diferença de aprendizagem entre os dois grupos socioeconômicos o IDEsocial serial igual a 1. A mesma fórmula se aplica ao cálculo o IDERac (Indicador de Desenvolvimento das Raças). Vamos supor que na hipotética rede municipal de ensino, entre uma edição do SAEB e a seguinte se mantenha o índice de aprovação dos estudantes e que a evolução da aprendizagem se verifique apenas entre os estudantes do grupo 1 de nível socioeconômico 1 e do grupo 1 de raças. Neste caso, o IDEB crescerá, indicando a melhor aprendizagem de uma parte dos estudantes, mas como a melhoria da aprendizagem ocorreu apenas nos grupos 1, aumentando a diferença entre os grupos socioeconômicos e raciais, essa rede hipotética não teria direito de acesso à parcela VAAR.
Para o atendimento do critério de redução das desigualdades educacionais socioeconômicas e raciais relativas à parcela VAAR 2024 serão computadas a diminuição das diferenças educacionais entre as edições do SAEB 2019 e 2017. As redes que obtiverem resultados positivos em ambos os índices, ou dito de outra forma, que tenham reduzido a diferença de aprendizagem entre os níveis socioeconômicos e raça/cor com o passar dos anos, atendem ao critério para recebimento do VAAR. As que não conseguem fazer essa redução de diferença de aprendizagem não atendem ao critério para recebimento do VAAR.
O artigo 4º. diz respeito ao atendimento da condicionalidade IV (ICMS Educação e regime de colaboração do estado com os seus municípios) estabelecendo os meios para a comprovação pela Secretaria Estadual de Educação que o item foi atendido. Todos os estados provavelmente comprovarão o cumprimento da condicionalidade, beneficiando os respectivos municípios.
Finalmente o artigo 5º. estabeleceu a forma de comprovação da condicionalidade V (referenciais curriculares alinhados à Base Nacional Curricular Comum. A esmagadora maioria dos entes da Federação já cumprem esta condicionalidade.
Resumidamente, vejamos os impactos que a implementação do novo FUNDEB está provocando nas redes públicas de educação. O primeiro ponto é o aumento da disponibilidade de recursos para os municípios mais carentes através de transferências automáticas do Governo Federal com uma nova parcela (VAAT) que também é que tem a maior fatia da contribuição da União. A única condicionalidade, para os municípios que possuem valores per capta menores do que o mínimo nacional, é comprovar em tempo hábil, através de sistemas do Governo Federal, o montante de recursos próprios aplicados na educação. A maior parte dos municípios tem se habilitado e recebido uma contribuição que, em alguns casos, é substancial. [5]
A segunda mudança, que também aparece como uma das condicionalidades para o acesso à parcela VAAR, foi a exigência que os estados instituíssem o regime de colaboração com os seus municípios para melhoria dos indicadores educacionais das redes municipais, especialmente no ciclo de alfabetização, e premiassem os municípios com melhor desempenho educacional com parcelas maiores da quota municipal do ICMS. Claramente inspirada na bem-sucedida experiência do estado do Ceará em emular o desempenho das redes municipais de educação com quotas do ICMS dependentes do desempenho educacional e de outros indicadores sociais, além de premiar as boas práticas de escolas, esse modelo já estava sendo adotado por alguns estados, antes mesmo da Emenda Constitucional 108/2020. Há expectativas de melhorias nas redes municipais de educação, que receberam um novo estímulo com o Programa do Governo Federal, Compromisso Nacional Criança Alfabetizada.
O conjunto mais importante de mudanças está inscrito nas condicionalidades da parcela VAAR. A condicionalidade I, que diz respeito ao formato de escolha dos diretores escolares tem um impacto potencial na melhoria da gestão escolar e na valorização dos(as) professores (as). A prática ainda dominante de indicação política, sem a necessária observação de critérios de mérito e desempenho para o exercício da liderança escolar compromete, conforme estudos feitos no Brasil e em outros países, a aprendizagem dos estudantes. Espera-se uma mudança real no conteúdo dos processos seletivos e no apoio dos novos dirigentes para o desenvolvimento de suas capacidades de liderança das comunidades escolares. Nos próximos anos poderemos obter resultados sistêmicos com a generalização de uma prática que por ora se circunscreve a relativamente poucas redes públicas.
A condicionalidade II, participação de no mínimo 80% dos estudantes matriculados nas séries/ano objeto da avaliação das provas do SAEB é muito importante para dar visibilidade ao desempenho de todas as escolas, especialmente das que por anos ficaram invisíveis aos sistemas de avaliação e monitoramento oficiais.
Possivelmente o núcleo duro da mudança esteja na condicionalidade III, redução das desigualdades educacionais socioeconômicas e raciais. Neste ponto, a preocupação não é apenas a melhoria do desempenho médio das escolas e das redes escolares, mas, principalmente, que esta melhoria atinja a todos, muito especialmente os que historicamente ficaram à margem do desenvolvimento socioeconômico e educacional do Brasil. O recorte de indicador de Nível de Socioeconômico e de Raça/Cor, mensurando a redução do desempenho entre os dois grupos, os mais ricos versus os mais pobres, os brancos e amarelos versus os pretos, pardos e indígenas tem o potencial de colocar no centro da discussão educacional, além da qualidade, a questão da equidade.
A condicionalidade IV, ICMS Educação e regime de colaboração do estado com os seus municípios, aparentemente está encaminhada com a edição de legislação em todos os estados atinente à matéria. Espera-se que em todos os estados se alcancem resultados análogos ao modelo que inspirou a generalização desta medida.
Por fim, a condicionalidade V, referenciais curriculares aderentes à Base Nacional Comum Curricular, está sendo atendida pela esmagadora maioria dos entes da Federação.
Ao unir o financiamento à indução de boas práticas o FUNDEB em implantação tem um imenso potencial de dar coerência e efetividade a diversas Políticas Educacionais de Estado, indo muito além de apenas matricular crianças e jovens. Exigir a construção de referenciais curriculares coerentes com a Base Nacional Comum Curricular, determinar um método de seleção de diretores escolares privilegiando o desempenho, o mérito e a capacidade de liderança dos candidatos, ao determinar a observação das taxas de atendimento escolar das crianças e jovens na educação básica de forma a captar a evasão de estudantes, ao estabelecer o regime de colaboração do estado com os seus municípios e determinar critério de distribuição de parte da quota municipal do ICMS com base no desempenho educacional do município fecham-se circuitos que promovem uma melhoria educacional sistêmica permeada por exigências de equidade. Até mesmo alguns aspectos da construção da cidadania são contemplados, a exemplo da utilização do potencial de arrecadação tributária, com base nas características sociodemográficas e econômicas, entre outras (Art. 10, § 1º. inciso III da Lei N. 14.113/2020). As próximas mensurações de qualidade e equidade atestarão se, e em que grau, nossas expectativas foram contempladas.
[1] Um apanhado dessas discussões pode ser visto em: Souza, Marcelo Lopes de. Custo Aluno Qualidade (CAQ) / Marcelo Lopes de Souza; Fabiana de Assis Alves; Gustavo Henrique Moraes (organizadores). – Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021.
[2] Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório do 4º ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação – 2022. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2022, pag. 395.
[3] Miranda, Jéssica G.; Pazello, Elaine T. Rotatividade de Diretores e Desempenho da Escola. SBE 2014.
[4] O Indicador de Nível Socioeconômico (Inse), construído pela Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb), com base nos resultados do questionário do(a) aluno(a) do Saeb (Inse do Saeb), tem como objetivo contextualizar resultados obtidos em avaliações e exames aplicados por este Instituto no âmbito da educação básica. Dessa forma, possibilita-se conhecer a realidade social de escolas e redes de ensino, bem como auxiliar na implementação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas, visando ao aumento da qualidade e da equidade educacional. https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/nivel-socioeconomico.
[5] Para o impacto do VAAT nos municípios sergipanos, ver. Josué Modesto dos Passos Subrinho. A implantação do novo FUNDEB em Sergipe. https://seed.se.gov.br/noticia.asp?cdnoticia=17679.
Como citar este artigo: Josué Modesto dos Passos Subrinho. A trajetória do FUNDEB. Saense. https://saense.com.br/2023/11/a-trajetoria-do-fundeb/. Publicado em 01 de novembro (2023).