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08/08/2025

A cura da incerteza: como a pseudociência conquista espaço nas redes sociais
Cena de “Vinagre de Maçã”, série da plataforma de streaming Netflix que trata de uma história real envolvendo suposta cura de câncer por terapias “alternativas” (Reprodução Youtube/Netflix)

Em fevereiro deste ano, a Netflix lançou a série Vinagre de Maçã, inspirada na história real da blogueira australiana Belle Gibson. Em 2013, ela ganhou fama ao afirmar que havia se curado de um câncer terminal com uma terapia natural baseada em alimentação, pensamento positivo e paciência. Com isso, acumulou milhares de seguidores, lançou um aplicativo de bem-estar e um livro best-seller. Dois anos depois, em 2015, admitiu que tudo era mentira, nunca teve câncer e seu método não tinha qualquer respaldo científico. A série também retrata a trajetória de uma personagem inspirada na escritora Jessica Ainscough, que, diagnosticada com a doença, recusou a quimioterapia em favor de um tratamento alternativo encontrado na internet e acabou falecendo em decorrência do câncer.

Terapias como essas, que prometem uma cura milagrosa para uma enfermidade, não são algo novo ou exclusivo das redes sociais, mas encontram um espaço fértil nessas plataformas para se disseminar. Para a divulgadora científica e professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRGS Lisiane Bizarro, é comum o uso de termos científicos, como “estudos”, “neurônios” e “especialistas”, como forma de passar credibilidade a afirmações que não possuem comprovação.

Além disso, ela conta que muitos profissionais da saúde produzem intencionalmente conteúdos polêmicos como forma de conquistar engajamento em seus perfis online para, assim, alcançar novos pacientes. Isso é impulsionado pelos algoritmos das redes sociais, que promovem essas publicações sem a devida preocupação com o possível impacto social.

Para o doutorando em Psicologia da UFRGS Lucas Müller da Silveira, um dos fatores psicológicos que favorecem a adesão a esses métodos é o que ele chama de intolerância à incerteza. “Nosso cérebro odeia a incerteza. E doenças crônicas, por exemplo, são repletas dela. Quando alguém aparece prometendo tirar essa insegurança com uma solução mágica, é compreensível que muitas pessoas aceitem”, pondera.

Além do risco direto à saúde física, como o uso indevido de medicamentos, há impactos emocionais importantes. “Quando a pessoa vê que não funcionou, ela não só perde dinheiro e tempo, mas também a esperança. Podem surgir frustração, ansiedade ou até sintomas depressivos, especialmente em quem já passou por vários tratamentos.”

Basear-se na ciência

Nem tudo que foge à ciência tradicional, contudo, é charlatanismo. As Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), como a acupuntura, a auriculoterapia e a fitoterapia, são reconhecidas oficialmente pelo Sistema Único de Saúde desde 2006. O segmento reúne desde racionalidades médicas, como a medicina tradicional chinesa, até terapias não farmacológicas, como reiki e dança circular. No Brasil, são 29 práticas reconhecidas atualmente.

Professora da Escola de Enfermagem e Saúde Coletiva da UFRGS, Daniela Dallegrave explica que na Universidade são difundidos, em publicações como a Biblioteca Virtual em Saúde, somente as PICS que possuem o devido embasamento científico. “O que tem embasamento entra nas nossas formações. O que não tem, a gente critica”, afirma a docente, que coordena o projeto de extensão SustentaPICS.

A distinção, segundo ela, é essencial para não se confundam essas práticas com tratamentos pseudocientíficos populares disponíveis na internet, como vermífugos que curariam diabetes. “A medicina tradicional chinesa, por exemplo, existe há mais de 4 mil anos. Os chineses olham para a saúde de forma sistêmica, buscando equilíbrio, não só tratando sintomas”, explica Daniela. “É diferente da lógica biomédica, que atua muito com medicamentos e protocolos padronizados.”

Maria Eduarda Boettsche, estudante de Enfermagem e integrante do SustentaPICS, aponta como as redes sociais influenciam a forma como muitas terapias são vendidas: como soluções milagrosas. “[Com as PICS] A gente nunca promete cura para tudo. Nosso compromisso é com o cuidado. E isso envolve escuta, avaliação e responsabilidade.” Ela reforça que práticas integrativas devem ser vistas como complementares, e não como alternativas à medicina convencional.

“O nosso papel na universidade é garantir que esse cuidado seja baseado em ciência, ética e formação qualificada”Daniela Dallegrave

As PICS atuam em diversas esferas da vida cotidiana, como alimentação, exercício físico, sociabilidade e até mesmo espiritualidade. Lisiane corrobora que essas práticas podem, sim, trazer benefícios para a saúde pública, mas reforça que não podem substituir aquelas baseadas em evidência. “Se tu tá sentindo uma dor no estômago, antes de procurar na internet o que pode ser, vai a um posto de saúde para conseguir o tratamento adequado.” Ela ainda argumenta que é importante lembrar que nenhuma terapia, seja para saúde física ou mental, atua sozinha e de forma idêntica para todos. Por isso, é necessário contar com um amparo especializado para garantir o cuidado adequado.

Lisiane lembra que, assim como na ciência não há verdades absolutas e imutáveis – afinal, a pesquisa é um processo constante –, também não existe uma fórmula universal para combater as pseudociências. Mesmo que todos estejamos suscetíveis a acreditar em um tratamento sem comprovação científica, ela aponta que há como se prevenir. “Quando um conteúdo causar uma grande emoção, te encher de dúvidas e incertezas, é importante parar e refletir um pouco, ver novamente em outro momento, antes de repassar ou seguir com um tratamento que tu viu em uma rede social”, aconselha.

Para Lucas, o combate a esse fenômeno passa por duas frentes: regulamentação mais rígida nas redes e divulgação científica acessível. “Conhecimento científico funciona como uma vacina contra a desinformação. Ensinar como a ciência funciona, desde cedo, ajuda a criar senso crítico. Mas ninguém está imune. Todos nós estamos sujeitos a cair, especialmente em momentos de fragilidade”, completa. [1], [2]

[1] Texto de Matheus Konzen

[2] Publicação original: https://www.ufrgs.br/jornal/a-cura-da-incerteza-como-a-pseudociencia-conquista-espaco-nas-redes-sociais/

Como citar esta notícia: UFRGS. A cura da incerteza: como a pseudociência conquista espaço nas redes sociais. Texto de Matheus Konzen. Saense. https://saense.com.br/2025/08/a-cura-da-incerteza-como-a-pseudociencia-conquista-espaco-nas-redes-sociais/. Publicado em 08 de agosto (2025).

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