Jornal da USP
18/12/2025

Se micróbios existiram em Marte num passado remoto, lagos com íons de ferro podem tê-los protegido contra a radiação ultravioleta que castiga a superfície do planeta. Essa é a principal conclusão de uma pesquisa conduzida no Laboratório de Astrobiologia (AstroLab), localizado no Instituto de Química (IQ) da USP. Publicado em novembro na revista Astrobiology, um dos principais periódicos da astrobiologia, o estudo é mais um avanço importante rumo à compreensão de ambientes extraterrestres possivelmente habitáveis.
Os pesquisadores investigaram como íons de ferro (Fe³⁺) podem proteger microrganismos em água líquida ao absorver o ultravioleta do tipo C, radiação que a atmosfera rarefeita de Marte não bloqueia e que é altamente prejudicial à vida como a conhecemos. Para isso, realizaram experimentos utilizando como organismo modelo a levedura Saccharomyces boulardi, que é sensível ao ultravioleta e resistente à acidez – ela sobrevive ao nosso suco gástrico quando utilizada em tratamentos de restauração da flora intestinal.
Já era conhecida a proteção ao ultravioleta fornecida pelo ferro presente no regolito que cobre a seca superfície marciana – uma camada superficial de material fragmentado de rochas, poeira e solo. “Também já tinham examinado como o ferro pode proteger do ultravioleta em soluções aquosas, mas usando modelos muito complexos, difíceis de aplicar”, afirma o primeiro autor do artigo, Gabriel Gonçalves Silva. O trabalho nasceu durante a realização de sua tese de doutorado no IQ. “Queríamos uma modelagem simples, que pudesse ser usada em simulações com diferentes níveis de ultravioleta e concentrações de íons de ferro”, conta o pesquisador do AstroLab.
Os experimentos foram feitos com amostras de Saccharomyces boulardi em soluções aquosas com diferentes concentrações de íons de ferro (Fe³⁺). Os pesquisadores submeteram as amostras a crescentes níveis de radiação ultravioleta para medir a taxa de sobrevivência dos microrganismos. Os resultados mostraram que mesmo soluções aquosas com concentrações de íons de ferro relativamente baixas são capazes de proteger a levedura da radiação próxima à superfície, permitindo que a taxa de reprodução dos microrganismos compensasse as mortes causadas pela exposição ao ultravioleta.
O modelo desenvolvido permite ajustes finos para diferentes níveis de radiação e concentrações de ferro, facilitando estimativas detalhadas da viabilidade microbiana em ambientes diversos. Os pesquisadores validaram o modelo comparando suas predições com os dados experimentais.
Habitabilidade perto da superfície
Aplicando o modelo a simulações de lagos marcianos, os pesquisadores concluíram que a profundidade mínima habitável poderia ser de apenas 1 centímetro para a levedura testada, e cerca de 1 metro para a bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans, frequentemente estudada no contexto marciano. Isso sugere que lagos antigos de Marte poderiam ter oferecido condições favoráveis à vida microbiana, graças à proteção conferida pelos íons de ferro presentes na água. “Como não temos acesso aos lagos marcianos, o modelo nos dá uma aproximação das condições de habitabilidade que podem ter oferecido”, diz Ana Paula Schiavo, pós-doutoranda no IQ e coautora do estudo.
A presença na superfície marciana de minerais como a jarosita, formada em ambientes com água líquida e ácida, reforça a hipótese de que Marte já abrigou lagos com alto teor de ferro, que acidifica a água. Locais como a cratera Jezero, atualmente explorada pelo jipe Perseverance da Nasa, são exemplos de formações geológicas marcianas que podem ter abrigado lagos há mais de 3 bilhões de anos, quando o planeta ainda não havia perdido a maior parte de sua atmosfera.
Especialistas destacaram a importância do estudo. Dimas Zaia, uma das maiores referências nacionais da química pré-biótica e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), classificou o estudo como “um relevante suporte científico para a procura de formas de vida em Marte”. O físico James Green, ex-chefe da Nasa, comentou o artigo por e-mail, ressaltando que a vida acaba encontrando formas de sobreviver mesmo sob intensa radiação: “Micróbios já foram encontrados acima da camada de ozônio, escondidos em meio à poeira suspensa na atmosfera rarefeita”. Já Evelyn Sanchez, especialista em Paleobiologia e professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), classificou a pesquisa como audaciosa e importante para entender os limites e adaptações da vida em condições extremas. “O estudo ajuda a consolidar o Brasil como protagonista em pesquisas astrobiológicas, sobretudo em modelagens”, avalia Sanchez, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Astrobiologia.
Fabio Rodrigues, diretor do AstroLab e professor do IQ, destacou que seu grupo de pesquisadores também tem dado grande enfoque a organismos resistentes a radiação ultravioleta. “Essa fonte de estresse é importante em regiões de alta atmosfera da Terra e em ambientes extraterrestres, como Marte”, comenta Rodrigues, que também é coautor do artigo. O trabalho contou ainda com a participação de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade Paulista (Unip).
Mais informações: gabisfunny@hotmail.com, com Gabriel Gonçalves; ana.schiavo@usp.br, com Ana Paula Schiavo; farod@iq.usp.br, com Fabio Rodrigues. [1], [2]
[1] Texto de Danilo Albergaria
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/pesquisa-reforca-a-hipotese-de-que-lagos-do-passado-remoto-de-marte-foram-habitaveis/
Como citar este texto: Jornal da USP. Pesquisa reforça a hipótese de que lagos do passado remoto de Marte foram habitáveis. Texto de Danilo Albergaria. Saense. https://saense.com.br/2025/12/pesquisa-reforca-a-hipotese-de-que-lagos-do-passado-remoto-de-marte-foram-habitaveis/. Publicado em 18 de dezembro (2025).