Antônio Murilo Macedo
09/12/2018
A mecânica quântica traz muitos conceitos e fenômenos que estão bem longe de nossa experiência cotidiana. A superposição quântica e o entrelaçamento quântico são exemplos populares de fenômenos deste tipo. Na superposição quântica um objeto pode estar simultaneamente em dois estados opostos, como os dois lados, cara e coroa, de uma moeda, ou até mesmo vivo e morto, como ocorre no experimento mental do gato, proposto por Erwin Schrödinger em 1935 para ilustrar a estranheza da interpretação predominante da mecânica quântica. O entrelaçamento quântico é um fenômeno ainda mais estranho. Duas partículas entrelaçadas possuem um tipo muito peculiar de correlação quântica que pode ser usado em protocolos de comunicação para realizar tarefas que seriam impossíveis no mundo clássico. Por exemplo, suponha que dois amigos, Alice e Beto dividem um par de bits quânticos emaranhados. Um bit é a unidade básica de informação e classicamente ele possui apenas dois estados: 0 e 1. Alice e Beto podem usar a correlação quântica para enviar através de um único bit uma mensagem que classicamente exigiria pelo menos o envio de 2 bits. Este protocolo é conhecido como codificação densa e é um dos importantes esquemas de processamento de informação quântica.
Tanto superposição quântica quanto entrelaçamento quântico tem sido produzidos em laboratórios ao redor do mundo nos mais diversos sistemas físicos, mas quase sempre em sistemas relativamente pequenos, devido ao efeito deletério, também chamado de descoerência, que o acoplamento do sistema ao ambiente produz em fenômenos puramente quânticos Esta dificuldade prática de produzir efeitos quânticos em sistemas macroscópicos (compostos por muitos átomos e/ou moléculas e usualmente acoplados ao ambiente) criou grande ceticismo quanto a possibilidade da criação de estados de superposição ou entrelaçamento em organismos vivos. À parte as questões técnicas, é muito difícil imaginar o que “sentiria” um organismo vivo se fosse colocado em um estado de superposição quântica. Imaginem como se sentiria o gato de Schrödinger, em superposição quântica entre vivo e morto, se o experimento mental fosse de fato realizado em laboratório? Foi, portanto, com muita surpresa que a comunidade científica recebeu a notícia de que experimentos recentes [2] indicam a criação de um estado de entrelaçamento quântico entre uma bactéria sulfurosa verde viva e fótons de luz.
Bactérias sulfurosas são organismos que conseguem utilizar o enxofre, ou compostos de enxofre, como fonte de energia. Bactérias sulfurosas verdes são capazes de realizar fotossíntese e conseguem sobreviver em lugares que exibem condições extremas, como a quase total ausência de luz. Para sobreviver nesses lugares, as bactérias sulfurosas usam um sistema de antenas de alta eficácia para se acoplar com uma luz incidente de baixíssima intensidade (algumas centenas de fótons por segundo). No experimento, bactérias sulfurosas verdes foram colocadas em uma microcavidade ótica, contendo fótons com energia bem controlada. Na condição de forte acoplamento a transferência de energia entre os fótons e a bactéria é muito maior que a energia que escapa da cavidade. Do ponto de vista experimental, o que se observa é uma mudança no espectro de energia do sistema combinado fotóns+bactéria, que passa a exibir dois picos com uma separação suficientemente grande para descartar outros efeitos. Foi também realizado um teste padrão com um corante do tipo tripan azul para determinar que a bactéria permaneceu viva durante todo o experimento. Uma análise teórica detalhada [3] do resultado experimental, usando um modelo simples para o acoplamento entre os dipolos elétricos presentes no interior da bactéria e fótons de luz estabeleceu que a melhor explicação para os dados experimentais é que houve de fato a formação de um estado quântico entrelaçado entre os dipolos e os fótons. Portanto, podemos considerar que temos fortes evidências da primeira criação em laboratório de um estado de correlação quântica em um organismo vivo.
Ainda é muito cedo para prevermos o impacto deste resultado na emergente área de biologia quântica. Parece plausível que a seleção natural possa ter escolhido alguns fenômenos quânticos como essenciais para realização de algumas tarefas biológicas, como o transporte de energia na fotossíntese ou até mesmo para o funcionamento de sofisticados sistemas de navegação de algumas espécies de pássaros [4]. O próximo desafio experimental nesta linha de pesquisa seria entrelaçar duas bactérias. Se bem-sucedido, poderemos estar bem mais perto de entender o papel dos fenômenos quânticos nas funções biológicas, algo que os pioneiros da mecânica quântica consideravam quase impossível.
[1] Crédito da Imagem: C Marletto et al (2018 J. Phys. Commun. 2 101001), CC BY 3.0.
[2] DM Coles et al. Living polaritons: modifying energy landscapes in photosynthetic organisms using a photonic structure. arXiv:1702.01705. Small 13 38 (2017).
[3] C Marletto et al. Entanglement between living bacteria and quantized light witnessed by Rabi splitting. J Phys Commun 2, 101001 (2018).
[4] Antônio Murilo Macedo. O olho quântico do robin. Saense. http://www.saense.com.br/2018/01/o-olho-quantico-do-robin/. Publicado em 12 de janeiro (2018).
Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. Estados quânticos com bactérias vivas. Saense. http://saense.com.br/2018/12/estados-quanticos-com-bacterias-vivas/. Publicado em 09 de dezembro (2018).