UFPR
23/08/2019
Um trabalho minucioso, que envolve desde cortes precisos para analisar cada parte do animal, até uma obstinação para identificá-lo a partir do lugar onde ele estava e de suas relações com o ambiente. Os processos que ocorrem todos os dias no Laboratório de Biodiversidade e Biogeografia de Diptera, coordenado pelo professor Claudio José Barros de Carvalho, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), levaram à identificação de diferentes insetos no mundo e, por isso, são considerados referência no Brasil.
As pesquisas compartilham o apreço científico por insetos que, na opinião popular, são tratados como pragas, mas que na Biologia representam a chance de aperfeiçoar um tipo de conhecimento quase invisível: aquele que é produzido pela ciência básica. É a partir da identificação e do detalhamento dos espécimes que eles passam a existir e, com isso, a ter validade científica para outras pesquisas.
A beleza dos insetos,
mais precisamente dos dípteros, é consensual entre os pesquisadores que dedicam
a vida a estudá-los. Suas cores e formas, analisadas em microscópios, revelam
características que passam despercebidas por quem os considera como pragas. “O
Homem veio depois do inseto, então o conceito de praga é relativo”, brinca
Carvalho.
Diante de exemplares que formam a segunda maior coleção do Brasil, os
pesquisadores fazem um tipo de trabalho que desperta curiosidade, mas que exige
tempo, investimento e rigor. “Essa espécie estava na natureza e não existia.
Com o trabalho que fazemos, ela passa a existir. A partir disso nós vamos
descrevê-la e relacioná-las com outras”, explica.
O trabalho em nível de detalhe é essencial para contribuir com a organização da biodiversidade. Segundo Carvalho, o Brasil é um país com alta diversidade. Possui cerca de 15% de todas as espécies conhecidas no mundo: muitas delas passaram a ter nome e identificação ali, junto às pesquisas do laboratório da UFPR, em uma produção de conhecimento que se espalha e dissemina pelo mundo. “No exterior, ex-estudantes atuam como professores ou pesquisadores na República Dominicana, Estados Unidos e Canadá”, comenta.
Uma das pesquisadoras formadas por essa rede, a cientista Jessica Gillung, fez iniciação científica no laboratório e hoje está fazendo pós-doutorado nos Estados Unidos. Ela irá a Londres receber o Prêmio Marsh, da Royal Entomological Society, no dia 21 de agosto.
Duas asas
O que une pelo menos
nove pesquisadores de sete regiões diferentes – do Paraná à Colômbia, neste
laboratório, é o interesse por Diptera, um dos vários tipos de insetos, do
grego “duas asas”, que inclui aproximadamente 200 mil espécies, entre moscas,
mosquinhas, mosquitos e pernilongos.
Seis famílias são estudadas no laboratório, nesse momento, a partir da
taxonomia. Os taxonomistas são, segundo Carvalho, os cientistas que dão nome
aos organismos, “o alicerce de qualquer disciplina da Biologia e áreas afins.”
A precisão e a minúcia estão entre as características do trabalho, realizado a
partir de coleções de insetos, nos museus, ou da coleta, quando os cientistas
vão a campo.
Os museus, aliás, são parte importante da formação de Carvalho, que começou como estagiário no Museu Nacional do Rio de Janeiro, “ajudando o orientador a identificar moscas coletadas nos rincões do Mato Grosso, durante a abertura de estradas para Sinop”. Depois, já pesquisador formado, fez um pós-doutorado no Museu da História Natural de Londres. “Após esse período estava plenamente apto para desenvolver as minhas pesquisas em diversas áreas da biodiversidade e orientar os estudantes com mais sabedoria”, conta.
Os orientandos estudam dípteros diferentes, mas têm em comum a prática da taxonomia, ciência que defendem porque dela depende uma série de atividades aplicadas. “Para responder perguntas maiores nós precisamos da taxonomia”, explica. É o caso, por exemplo, das moscas drosófilas, consideradas modelos do que se sabe sobre genética humana.
Por causa de uma trajetória de mais de 40 anos em meio aos dípteros, Carvalho atrai parceiros do mundo todo, como a cientista Tatiana Alejandra Sepulveda Villa, que veio da Colômbia para estudar as moscas-tigres. “O corpo de conhecimento que temos em Diptera na América do Sul é feito no Brasil, mas as redes vão se ampliando a partir dos trabalhos dos orientandos”, explica o professor, que atualmente tem projetos de cooperação científica com pesquisadores da Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Bélgica. “A taxonomia precisa de parceiros e de espaços para intercâmbio de conhecimento”, explica Carvalho.
Hoje, de acordo com ele, o trabalho de conhecimento da biodiversidade é essencial para a conservação. “Só se conserva o que se conhece”, lembra. Ele reforça a importância do mapeamento e do registro para que espécies não sejam extintas mesmo antes de serem conhecidas. Segundo o professor, áreas de construção de empreendimentos, por exemplo, podem negligenciar espécies que só vivem naquele local e gerar desequilíbrio ao sistema.
Famílias a serem conhecidas
Carvalho e seu grupo de pesquisadores se dedicam a estudar a biogeografia, que investiga a distribuição dos seres vivos no espaço e no tempo. As famílias Muscidae e Fanniidae são o foco das suas pesquisas mais recentes, centradas especialmente na região Andina e zona de transição da América do Sul. Segundo ele, quase não há informação biológica sobre esses grupos. Coletas realizadas na Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guianas e Peru comprovaram o desconhecimento.
A América do Sul também é o tema do doutorando Lucas Roberto Pereira Gomes, orientado por Carvalho. Ele investiga as espécies Neotropicais da família Anthomyiidae, a partir de informações morfológicas e moleculares. Atualmente, trabalha na identificação de mais de 600 exemplares do México, igualmente desconhecidos e que estavam sendo identificados de modo equivocado.
A mestranda Gabriela Gelinski Feola também concentra seu trabalho no continente. Ela faz uma revisão taxonômica de um gênero pertencente a família das moscas domésticas, com espécimes coletados em regiões altas do Equador e da Colômbia. Segundo ela, como vivem em regiões frias e de alta pressão, as mudanças climáticas ambientais podem causar efeito negativo neste grupo. O aquecimento global, por exemplo, pode ter consequências sobre a diversidade do ambiente.
A ênfase na biogeografia, ou seja, em se estudar os grupos a partir da sua distribuição na natureza, leva os taxônomos a pensarem também sobre a evolução das espécies. É o caso da doutoranda Gabriela Hrycyna, que trabalha com o gênero Basilia, composto por ectoparasitas de morcegos. Segundo ela, há apenas 49 espécies conhecidas no continente americano. A pesquisadora planeja realizar uma análise filogenética, que ajuda a descobrir características da evolução ao longo do tempo.
A doutoranda Luana dos Santos, que estuda os gêneros Fannia e Euryomma, da Região Neotropical, vai utilizar a filogenia e o conhecimento da evolução espacial das espécies na América do Sul. Ela explica que, num sentido amplo, quer compreender a história evolutiva e evidenciar possíveis padrões da atual distribuição das espécies.
A filogenia também é foco da pesquisa de pós-doutorado de João Manuel Fogaça. Ele estuda desde o mestrado a família Muscidae, dando nome às espécies e descobrindo como ocorre a relação entre os animais.
Entomologia Forense, Ecologia e DNA
O estudo biológico dos insetos em processos criminais é outra marca das pesquisas relacionadas aos dípteros. Foi assim que Carvalho começou a sua trajetória: coletando moscas que se atraíam pelo início do processo de decomposição em porcos.
Atualmente, no laboratório, a acadêmica do último período de Biologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Amélia Ferreira Alves, dedica-se ao tema. Ela veio até Curitiba com amostras de insetos obtidos em dois experimentos, para serem identificados com o auxílio de Carvalho. Seu foco é estudar a estrutura e composição das moscas associadas à carcaça de porcos e seus estágios de decomposição.
A perícia criminal é uma das áreas que pode ser beneficiada com os estudos em entomologia forense. “As moscas depositam suas larvas na carcaça e indicam o período em que ocorreu o caso da morte”, explica Julia Maria Miranda, graduanda do quarto período de Biologia da UFPR, que investiga o ciclo das moscas que habitam os corpos em putrefação.
A relação entre taxonomia e ecologia também é explorada nas pesquisas desenvolvidas pelo grupo. A recém-doutora Rosângela Santa Brígida Costa estudou uma família de moscas de pequeno porte, os Drosophilidae, para compreender como interagem com fungos macroscópicos. Ela contribuiu para estabelecer elementos determinantes em uma floresta equatorial, no bioma Amazônico brasileiro, cujo conhecimento acumulado até então ainda era incipiente.
Já o pós doutorando Ândrio Zafalon da Silva trabalha no nível molecular, planejando um banco de dados de DNA das moscas-domésticas, da família Muscidae. “A maioria destas moscas é importante para o ecossistema, estão nas florestas e interagem complexamente com outras espécies”, explica. Para que o banco de dados funcione, é preciso que haja uma identificação correta da espécie, depois, deposita-se o seu DNA no banco de dado público, para acesso de qualquer pesquisador. [1]
[1] Esta notícia científica foi escrita por Amanda Miranda.
Como citar esta notícia científica: UFPR. Cientistas da UFPR contribuem com a organização da biodiversidade das moscas e mosquitos. Texto de Amanda Miranda. Saense. https://saense.com.br/2019/08/cientistas-da-ufpr-contribuem-com-a-organizacao-da-biodiversidade-das-moscas-e-mosquitos/. Publicado em 23 de agosto (2019).