Jornal da USP
14/02/2023

Falta de treinamento e espaço para trabalhar emoções impacta saúde de quem cuida de pessoas com comportamento suicida
 Profissionais de saúde tem lidado com sentimentos que tendem a ser invisibilizados – Foto: Syed Nabil/Flickr

O suicídio é um problema que afeta famílias e comunidades inteiras, inclusive os profissionais de saúde. Segundo resultados parciais de duas pesquisas realizadas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, esses trabalhadores experimentam diferentes sentimentos que tendem a ser invisibilizados. Uma revisão sistemática do tema analisou 21 estudos publicados em dez países diferentes entre 2005 e 2021, abrangendo 435 participantes de diversas especialidades (enfermagem, psicologia, serviço social e medicina). Para o segundo estudo, foram entrevistados profissionais de psicologia que, durante a pandemia de covid-19, precisaram se adaptar ao atendimento remoto a pacientes com comportamento suicida.

Ambos os estudos integram o mestrado de Natália Ferracioli, em andamento no Programa de Pós-graduação em Psicologia e no Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS) da FFCLRP, sob orientação do professor Manoel Antônio dos Santos, e estão publicados em dois artigos científicos na Revista Psicologia, Saúde & Doenças.

Natália afirma que o trabalho com pessoas em risco suicida provoca “sentimentos ambivalentes que repercutem e geram transformações significativas nas esferas da vida pessoal e laboral”, fato que justifica a importância do cuidado com esse profissional. Ideia compartilhada pelo professor Santos, para quem o estudo evidenciou “intensidade emocional considerável ao se trabalhar com tal demanda, o que provoca experiências complexas e multifacetadas”.

Insegurança, impotência e compaixão​

Diante de casos que envolvem suicídio, os trabalhadores se sentem confusos, desorganizados, entorpecidos ou inábeis. É comum que “eles também se percebam limitados, impotentes, frustrados, indefesos e desesperançosos ao se depararem com o paciente que manifesta desejo de se suicidar”, informa a pesquisadora, adiantando que os motivos envolvem o despreparo ou o treinamento insuficiente.

Muitos deles, explica o professor Santos, assumem uma postura mais técnica e avaliativa, “desconectando-se dos seus pacientes e até de suas próprias aspirações ao trabalharem com saúde mental”, o que impacta a qualidade do próprio trabalhador e o desenvolvimento da relação com os pacientes, “prejudicando ambos”. Santos também destaca a falta de treinamento e de espaços adequados para o trabalho das emoções dos especialistas como “fatores importantes para o desenvolvimento de sentimentos adversos” vividos por eles. Para o professor, fica evidente a importância de educação continuada, do trabalho multidisciplinar e de espaços para autocuidado.

Natália conta ainda que foram observados empatia, compaixão, respeito, altruísmo e paciência para com os pacientes. Contudo, afirma que “essas experiências não ocorrem isoladamente, estando sempre permeadas, em alguma medida, pelo sofrimento.” 

Os resultados estão no estudo Sujeito oculto: profissionais de saúde mental e o trabalho com pessoas com comportamento suicida desenvolvido por Natália sob orientação do professor Santos, com co-autoria das professoras Érika Arantes de Oliveira Cardoso e Elaine Campos Rodrigues, ambas da FFCLRP.

Atendimento on-line é alternativa de suporte para regiões distantes 

Embora não substitua o atendimento presencial em determinadas situações (como quando há o risco iminente de suicídio), o atendimento on-line se mostrou como uma possibilidade viável no manejo desses casos, especialmente em contexto de difícil acesso a serviços de saúde mental. Esse foi um dos achados do trabalho Manejo online do comportamento suicida na ótica de psicólogas(os) brasileiras(os): primeiras ponderações, desenvolvido pela pesquisadora Natália com orientação do professor Santos.

Com o atendimento on-line a pessoas ou grupos em situação de emergência temporariamente autorizado, devido ao distanciamento social provocado pela pandemia de covid-19, Natália conta que tiveram a oportunidade de entrevistar dez psicólogos clínicos que atuam como psicoterapeutas, com quatro a 30 anos de experiência, e que atenderam pacientes com comportamento suicida durante a pandemia.

Apesar de constatarem a viabilidade deste modo de atendimento, a pesquisadora avalia que a pandemia de covid-19 “foi considerada uma tempestade perfeita de condições que elevou a vulnerabilidade dos indivíduos ou comportamento suicida, gerando uma demanda potencial para psicólogos clínicos, mas a própria atuação desses profissionais sofreu importantes impactos decorrentes do contexto de restrição do contato físico, já que tiveram que se adaptar ao atendimento mediado por tecnologias da informação e comunicação de forma abrupta e, muitas vezes, sem nenhum treinamento prévio”.

Assim, as entrevistas evidenciaram profissionais tristes, estressados, chorosos, ansiosos, convivendo com lutos diversos e planos e expectativas frustrados, além de consequências físicas indesejáveis, como ganho ou perda de peso e descompensação de sintomas e doenças de base. “Eles se sentiram colocados à prova diante da necessidade de exercer uma função de ajuda aos seus pacientes enquanto também estavam se sentindo vulneráveis”, conta a pesquisadora.

A própria adaptação ao atendimento on-line trouxe aos psicólogos resistências, inseguranças e dúvidas, como a “ansiedade e angústia diante da necessidade de transição brusca”, ao mesmo tempo que faziam ajustes para lidar com “o ideal e o possível nas circunstâncias excepcionais”, continua Natália, acrescentando que, por outro lado, também relataram facilidade em relação às “barreiras geográficas e melhor aproveitamento do tempo”. Para a pesquisadora, esses atendimentos levaram “a uma quebra de paradigmas, preconceitos e uma projeção de que, ao menos, alguns atendimentos vão ser mantidos de modo remoto após o período pandêmico”.

Quanto ao manejo do comportamento suicida, Natália afirma que o sentimento de insegurança dos psicólogos por não estarem fisicamente próximos da pessoa em momentos de crise “acentuou o receio de que ela pudesse consumar o suicídio”, o que se traduziu em vivências de “medo intenso e angústias terríveis”. Apesar disso, os profissionais identificaram como positiva a possibilidade de levar um suporte especializado a quem reside em locais onde não há um sistema de saúde mental “adequado e competente”.

Mais informações: e-mails nataliagmendes@hotmail.com e masantos@ffclrp.usp.br [1]

[1] Texto de Brenda Marchiori.

Como citar este texto: Jornal da USP. Falta de treinamento e espaço para trabalhar emoções impacta saúde de quem cuida de pessoas com comportamento suicida.  Texto de Brenda Marchiori. Saense. https://saense.com.br/2023/02/falta-de-treinamento-e-espaco-para-trabalhar-emocoes-impacta-saude-de-quem-cuida-de-pessoas-com-comportamento-suicida/. Publicado em 14 de fevereiro (2023).

Notícias do Jornal da USP     Home