Matheus Macedo-Lima
01/02/2017

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A capacidade de adaptação a mudanças climáticas é essencial à sobrevivência de espécies. Tanto numa escala de tempo mais imediata – a exemplo das flutuações de temperatura diárias ou sazonais – como numa escala mais prolongada – como as mudanças em médias de temperaturas anuais. A espécie humana tem desenvolvido estratégias (geralmente tecnológicas) para lidar com essas mudanças, como o começo da utilização de “segundas-peles” (ou roupas), por nossos ancestrais, para sobreviver em temperaturas baixas, ou, mais recentemente, a invenção de máquinas de ar-condicionado para “sobreviver” em temperaturas mais altas.

Uma característica fundamental da evolução da espécie humana é a capacidade de transmissão de conhecimentos e descobertas para as gerações seguintes. Sem essa capacidade, nossa espécie nunca haveria saído da idade da pedra. Esse processo é chamado de transmissão cultural e foi confirmado também em diversas espécies não-humanas, como chimpanzés [2] e golfinhos [3], para uso de ferramentas, e em pássaros-de-canto, para o aprendizado do canto [4]. Mais recentemente, num estudo superinteressante, descobriu-se que pássaros também comunicam aos seus descendentes informações climáticas… quando estes ainda estão dentro dos ovos [5]!

Nesse estudo, cientistas na Austrália perceberam que mandarins-zebra cantam para seus ovos quando estão sozinhos no ninho. Essas vocalizações ocorrem somente no período avançado de incubação (por volta de 5 dias antes dos ovos chocarem). As cientistas também notaram que a “canção-de-ninar” somente tendia a ocorrer em dias relativamente mais quentes (acima de 25°C).

Então, elas fizeram a seguinte conexão: será que esse canto, de algum modo, informa aos bebês sobre a temperatura ambiente? Aqui, eu estrago a surpresa: elas acertaram na mosca! O experimento foi o seguinte: os ovos foram colocados em incubadoras e gravações da canção-de-ninar foram tocadas para uns e gravações de outros cantos para outros ovos. Após chocarem, as pesquisadoras devolveram os filhotes aos pais em ninhos que apresentavam temperaturas diferentes: uns mais frios e uns mais quentes em média. Ao medir o peso dos filhotes após a segunda semana, as cientistas descobriram que a massa dos filhotes que ouviram a canção-de-ninar era inversamente proporcional à temperatura do ninho em que cresceram, ou seja, quanto mais quente, menores os filhotes. Nos controles, essa relação foi inversa, ninhos mais quentes geraram filhotes maiores. As cientistas sugerem que o tamanho reduzido facilita a perda de calor em temperaturas elevadas. Faz sentido, não?

O mais interessante vem agora: as pesquisadoras acompanharam esses filhotes até se tornarem adultos e reproduzirem-se. Elas notaram que os adultos que apresentaram as menores massas quando filhotes preferiram ninhos mais quentes para se reproduzir e produziram mais ovos do que os adultos que tinham sido bebês gordinhos! O contrário também foi verdadeiro: os adultos mais gordinhos quando bebês preferiram se reproduzir em ninhos mais frios e produziam mais bebês nestes.

Esse estudo mostra que existe comunicação cultural sobre o clima nos mandarins-zebra e esta ocorre na fase pré-natal. Esse pode ser um importante fator de adaptação para mudanças climáticas, como o aquecimento global. O mecanismo por trás desse efeito – canto afetando o desenvolvimento – ainda é um mistério. Uma hipótese é que o canto possa causar uma reprogramação dos fetos para a mudança dos hábitos alimentares, ou mesmo dos ciclos hormonais.

Voltando agora para a espécie humana, se quisermos continuar evoluindo devemos nos atentar aos fatos vindos das “bocas certas” (e ignorar os “fatos alternativos”). Quando o assunto é clima, a mera opinião de certas celebridades e políticos não deve ser considerada, quando a ciência tem numerosas evidências para afirmar que o aquecimento global por ação humana é real e uma emergência. Até os pássaros reconhecem!

[1] Crédito da imagem: William Warby (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/wwarby/1585711512/.

[2] K Sumita et al. The acquisition of stone-tool use in captive chimpanzees. Primates 26, 168 (1985).

[3] M Krützen et al. Cultural transmission of tool use in bottlenose dolphins. PNAS 102, 8939 (2005).

[4] P Marler and M Tamura. Culturally Transmitted Patterns of Vocal Behavior in Sparrows. Science 146, 1483 (1964).

[5] MM Mariette and KL Buchanan. Prenatal acoustic communication programs offspring for high posthatching temperatures in a songbird. Science 353, 812 (2016).

Como citar este artigo: Matheus Macedo-Lima. Pássaros cantam para seus ovos… uma canção sobre aquecimento global! Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/02/passaros-cantam-para-seus-ovos-uma-cancao-sobre-aquecimento-global/. Publicado em 01 de fevereiro (2017).

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