Agência FAPESP
18/03/2024
André Julião | Agência FAPESP – Répteis que vivem em solos arenosos de áreas secas já foram apontados como beneficiários do aumento das temperaturas nas próximas décadas, por conta da suposta ampliação de áreas adequadas para a vida e por já tolerarem altas temperaturas.
Estudo publicado no Journal of Arid Environments por pesquisadores brasileiros mostra, porém, que o cenário pode ser bem diferente.
“Observamos que as mudanças climáticas vão alterar a distribuição geográfica dos répteis e provocar a extinção de algumas espécies, o oposto do que se pensava”, resume Júlia Oliveira, primeira autora do trabalho, realizado como parte de seu mestrado na Universidade Estadual do Maranhão (Uema).
O estudo integra o projeto “Evolução e biogeografia da herpetofauna: padrões, processos e implicações para a conservação em cenário de mudanças ambientais e climáticas”, coordenado por Thaís Guedes, professora do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) e orientadora de Oliveira.
“As espécies estudadas têm a peculiaridade de serem adaptadas a áreas de solo arenoso, o que lhes conferiu características como patas reduzidas ou ausentes, olhos reduzidos e escamas na ponta da cabeça levantadas, adaptações do corpo para viver nesse tipo de ambiente. Por isso, a área adequada para a vida dessas espécies, no presente e no futuro, depende também de condições específicas do solo”, explana Guedes.
O estudo considerou registros de ocorrência de dez espécies adaptadas a solos arenosos (psamófilas) presentes na chamada Diagonal de Formações Abertas ou Diagonal Seca. Esses são dois dos termos usados para definir o corredor de florestas secas que cruza a América do Sul, do Chaco argentino e paraguaio, passando pelo Cerrado até a Caatinga.
Foram analisadas cinco espécies de lagartos e cinco de serpentes. A partir das informações de ocorrência das espécies, foram adicionados dados sobre clima atual, tipo de solo e outras variáveis que permitem a sobrevivência desses animais.
Posteriormente, foram feitas simulações de como estariam esses locais em cenários otimistas e pessimistas de concentração de gases do efeito estufa para 2040 e 2060. Esses cenários são projetados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU).
Os modelos apontaram também regiões adequadas para as espécies em que ainda não se realizaram estudos de campo para verificar a presença desses animais. Segundo os pesquisadores, essas são áreas prioritárias para futuras prospecções, como as dunas do São Francisco, na Bahia, e manchas de solo arenoso na Caatinga do Piauí, que se mostraram altamente aptas a abrigar inclusive espécies endêmicas, que só existem lá.
Extinção e perda de áreas
Mesmo no quadro otimista para 2040, com níveis moderados de emissões, todas as dez espécies analisadas perdem áreas adequadas, superando os ganhos de terreno e clima. O calanguinho-de-rabo-azul (Micrablepharus maximiliani) e o lagarto-do-rabo-vermelho (Vanzosaura savanicola) teriam a maior perda de área (88% e 99%, respectivamente), o que significa a extinção para o último.
O calanguinho-de-rabo-azul (Micrablepharus maximiliani) tem previsão de perda de área de 88%, num cenário otimista de aumento das temperaturas, até a total extinção, numa perspectiva de aumento dos gases de efeito estufa (foto: Thais Guedes/Unicamp)
As perspectivas não melhoram muito para o ano de 2060, ainda num cenário otimista de mudanças climáticas. Nele, todas as espécies analisadas perdem área de vida, de 2,5% até 100%. Seriam extintos o lagarto-do-rabo-vermelho e as serpentes conhecidas por nomes como falsa-coral (Rodriguesophis iglesiasi) e cobra-corredeira (Phalotris matogrossensis). Outros dois lagartos e uma serpente tiveram perdas de áreas previstas entre 60% e 82%.
O cenário climático pessimista para 2040 também prevê mais perdas do que ganhos de áreas adequadas para todas as espécies, com duas espécies previstas para sofrer perdas de área acima de 76%.
A perspectiva é parecida quando se consideram altas emissões em 2060, com perdas ainda mais significativas. Embora os ganhos previstos sejam maiores para algumas espécies do que em outros cenários, as perdas serão ainda superiores, inclusive com extinções como a do calanguinho-de-cauda-vermelha (Vanzosaura rubricauda).
Para os pesquisadores, os resultados são extremamente preocupantes, ainda mais porque esse tipo de ameaça tem sido negligenciado para os répteis que vivem enterrados em solo arenoso.
Os autores notam que a avaliação mais recente de ameaça de extinção de répteis do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que define o grau de ameaças de espécies em nível nacional, é de 2022, e ainda não considera as mudanças climáticas como um fator de ameaça. As diretrizes são as mesmas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), órgão de referência global para esse tipo de análise.
“Pelos critérios considerados atualmente ao avaliar o grau de ameaça, algumas das espécies que estamos prevendo grandes perdas, e mesmo a extinção, nem sequer estariam ameaçadas. Isso precisa mudar na próxima avaliação”, defende Oliveira.
Uma das medidas para evitar, ou pelo menos amenizar a catástrofe anunciada, seria criar novas unidades de conservação de proteção integral, ou ampliar as existentes de forma otimizada, em locais aptos para essas espécies no presente e no futuro.
Comparadas à extensão territorial da Diagonal Seca, as áreas protegidas nesses biomas são diminutas, correspondendo a menos de 2% da Caatinga, 10% do Cerrado e 9% do Chaco.
“Nosso estudo demonstra que as condições climáticas do futuro podem diminuir a efetividade das unidades de conservação atuais em proteger a diversidade desses répteis”, afirma Guedes.
Isso porque, ainda que 27 áreas protegidas tenham sido criadas nos últimos seis anos na Diagonal Seca, menos de 16% do total de unidades de conservação no Cerrado e na Caatinga têm aptidão para a ocorrência desses lagartos e serpentes em futuros cenários climáticos.
Com isso, os autores concluem que pode acontecer com os répteis de solo arenoso algo parecido ao que já foi previsto para aves, plantas e mamíferos da Caatinga. Estudos de outros pesquisadores já mostraram que para esses grupos o mais provável é ocorrer uma homogeneização de espécies, com poucas generalistas substituindo as raras e especialistas (leia mais em: agencia.fapesp.br/50015/ e agencia.fapesp.br/41840/).
“Uma mensagem otimista desse estudo é que ainda há potencial para descobrir novas áreas de ocorrência de espécies de répteis adaptados a viver em solo arenoso. Mas o principal alerta é que, num planeta em transformação, os cenários climáticos futuros precisam urgentemente ser incorporados no planejamento da conservação”, encerra Guedes.
O trabalho teve apoio da FAPESP ainda por meio de bolsa de pós-doutorado para Karoline Ceron.
O artigo Climate change in open environments: Revisiting the current distribution to understand and safeguard the future of psammophilous squamates of the Diagonal of Open Formations of South America está disponível em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S014019632300188X.
Como citar este texto: Agência FAPESP. Répteis de solos arenosos são mais ameaçados pela mudança climática do que se pensava, aponta estudo. Texto de André Julião. Saense. https://saense.com.br/2024/03/repteis-de-solos-arenosos-sao-mais-ameacados-pela-mudanca-climatica-do-que-se-pensava-aponta-estudo/. Publicado em 18 de março (2024).