Jornal da USP
22/03/2024

Correios mudaram relação dos brasileiros com o futuro
Até 1798, as cartas circulavam na América Portuguesa por meio de comerciantes, viajantes ou escravizados. Logo no início do século 19, a monarquia portuguesa estruturou uma rede postal, que foi disputada como arma de guerra durante as guerras de independência no Brasil. Pintura do artista brasileiro Pedro Américo retrata um funcionário dos correios no canto superior esquerdo – Imagem: Museu Paulista/USP

Digitando o nome de uma capital de outro estado brasileiro em uma ferramenta de busca pela internet, você demora alguns segundos para saber as últimas notícias locais, a depender da qualidade da conexão. Mas e há duzentos anos, como você faria? 

Desde os telégrafos até a internet, as distâncias entre as pessoas diminuem conforme aumenta a velocidade na troca de mensagens. Da mesma maneira, com a inauguração das redes de correios, temos motivos para imaginar que uma grande revolução no fluxo de informações também ocorreu antes da energia elétrica chegar ao Brasil.

Para entender como o aumento da troca de informações impactou os últimos anos da colonização portuguesa e a construção do Império brasileiro, o historiador Thomáz Fortunato, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, estudou o surgimento dessas linhas postais. “Em decorrência da aceleração dos tempos históricos nessa passagem do final do século 18 para o início do século 19, as pessoas passaram a perceber um futuro cada vez mais diferente do passado”. 

Esse interesse levou à sua dissertação de mestrado, que mostra aos leitores como o surgimento da rede de correios motivou preocupações semelhantes às atuais, relacionadas ao tipo de informação que circulava, à privacidade, à oportunidade de negócios e à segurança das instituições.

“Há uma relação fundamental entre uma experiência social de aceleração do tempo com uma geografia das comunicações que fornece condições para um fluxo de informações mais acelerado, mais regular, para espaços cada vez mais diversificados e veiculando notícias de um passado cada vez mais recente”, explica Thomáz ao Jornal da USP.

No entanto, no passado e no presente, essa aceleração pode criar significados sociais variados. “Para um ator do mercado financeiro que se comunica instantaneamente com outro, pode ser uma oportunidade financeira para criação de capital. Para um entregador de aplicativo, a instantaneidade da demanda de uma entrega via celular pode ser um instrumento de intensificação da exploração de classe”.

Mapas temporais

Em quilômetros, a distância do Rio de Janeiro para o Pará é muito menor do que a do Rio para a China, mas em questão de tempo, o intervalo era semelhante no final do século 18. Uma carta enviada para Belém do Pará chegaria em até 132 dias. Até Macau, na China, demoraria 148 dias.

Pensando nisso, Thomáz elaborou anamorfoses — mapas distorcidos por essas distâncias temporais — para representar o que chama de topologia do tempo. Nesse exercício cartográfico, as distâncias em quilômetros foram substituídas por uma métrica temporal.

Em 1820, as cartas do Rio de Janeiro para Belém passaram a chegar em 70 dias, através de vias que passavam por Minas Gerais e Goiás. Isso explica, em parte, o alinhamento das autoridades das províncias ao norte com Lisboa durante a Independência. “O Pará estava a 60 dias de Lisboa. Então, obviamente, há uma proximidade econômica, cultural e política maior entre essas duas regiões.”

Comunicação no Brasil antes dos correios

De acordo com o pesquisador, pode-se dizer que quase todas as sociedades ao longo da história se comunicaram à distância. A América Portuguesa não tinha correios até o final do século 18. Embora houvesse iniciativas locais e relativamente passageiras, antes de 1798 nunca ocorreu a implementação de uma rede postal no Brasil.

As cartas eram levadas irregularmente por comerciantes, viajantes ou escravizados. Para se comunicar com a Europa, a solução era confiar as mensagens à tripulação das embarcações comerciais. Os navios apenas com correspondências eram enviados somente em situações excepcionais e frequentemente transitavam em grandes comboios para evitar o ataque de piratas, corsários e embarcações de nações inimigas.

A monarquia portuguesa decidiu assumir a regulamentação de um sistema postal estatal na colônia no final do século 18. Um dos principais objetivos era produzir uma nova fonte de renda para o reino, na esteira das estratégias do reformismo ilustrado português da segunda metade do século 18. Países como Inglaterra, França e Espanha já tinham passado por reformas semelhantes.

O surgimento da rede postal

Em 1798, foi publicado o alvará oficial de regulamentação dos correios e, por volta de 1800, boa parte da rede já estava em pleno funcionamento. A ideia era que a Coroa recebesse por todas as cartas transportadas, mas a cobrança dentro das capitanias foi contornada no início. Na comunicação entre uma capitania e outra, porém, os postos de checagem garantiam um certo monopólio postal, que nunca chegou a se realizar plenamente.

A rede, como um todo, não era centralizada e cada capitania possuía ao menos um administrador de correios, que gerenciava o fluxo e o pagamento dos funcionários. Capitanias como Minas Gerais e Rio de Janeiro precisavam de uma comunicação interna mais dinâmica e abriram mais de uma administração, mas todas respondiam às Juntas de Fazenda da capitania correspondente.

Geralmente, as entregas eram feitas em uma repartição na casa do administrador e os horários de funcionamento poderiam mudar de acordo com a estação do ano. De acordo com Thomáz, essa estrutura dependia de informações precisas sobre o tempo de viagem entre as capitanias, o que ajudou a mapear o território colonial. “Para organizar uma rede postal, cujos fluxos são temporalizados, é preciso saber quanto tempo demora do ponto A ao ponto B para calcular quando enviar carta, quando se recebe a carta”.

Maior diversidade, frequência e velocidade

Com a chegada da família real em 1808, vários órgãos, instituições e tribunais foram recriados e uma tipografia foi inaugurada para impressão dos jornais controlados pela monarquia. 

A demanda por comunicação entre as instituições e o crescimento da população forçou a abertura de mais estradas e a reforma das que já existiam. Embora a população dos centros urbanos litorâneos fosse superior à população das cidades do interior, houve um esforço de reconhecimento do território e da hidrografia.

Era uma conjuntura de crise profunda do colonialismo frente aos desdobramentos da Revolução Francesa na Europa e nas Américas, o que criava a necessidade de comunicações mais rápidas e mais regulares. “O que ocorria na América Espanhola interessava aos portugueses, de modo a temerem pela soberania territorial”, conta Thomáz. 

Por isso, a rede postal passou ter administrações em mais cidades e vilas do interior e o tempo de resposta caiu pela metade em muitos lugares. “Com a abertura dos portos, a rede postal passa a se conectar também com a Inglaterra e as oportunidades de comunicação atlântica aumentam”.

Sigilo das correspondências

O historiador contou ao Jornal da USP que o segredo das cartas era garantido desde a regulamentação inicial, mas foi a Carta Constitucional de 1824 do Império do Brasil que o caracterizou como parte da cidadania dos brasileiros. “Por outro lado, havia inúmeras denúncias de que nem sempre essa prerrogativa era respeitada, até porque o controle da rede de comunicação era a razão do poder de algumas elites locais”.

Nos anos posteriores à transferência da capital do império português para a América, a preocupação da família real com o que acontecia na região do Prata (divisas com Argentina, Paraguai e Uruguai), por exemplo, levou D. João VI a escalar um funcionário para abrir cartas suspeitas. Segundo o pesquisador, essa foi uma das ferramentas para impedir que grupos contrários à autoridade da coroa portuguesa conseguissem articular uma oposição ou uma rebelião. “Portugal estava ocupado por tropas francesas e havia inúmeros conflitos na América Espanhola”.

Independência

Em 1820, a crise do Império Português levou as ideias liberais a se chocarem com o absolutismo. Nesse contexto, alguns deputados eleitos no Brasil foram chamados a participar da redação da primeira constituição portuguesa. “A reação dos grupos que estavam espalhados por toda a América Portuguesa é muito desigual. Alguns aderem a esse movimento constitucionalista rapidamente e formam uma oposição ao D. João VI, enquanto grupos de outras capitanias, que vão se transformando em províncias, mantêm a sua lealdade”.

Nessa disputa, cada grupo tentava se apropriar de parte do fluxo de informação. A Assembleia Constituinte instaurou um sistema postal paralelo para avisar as autoridades coloniais sobre as leis criadas, sem o consentimento do rei. O monarca, por sua vez, tentou enganar os governos provisórios contrários a ele mandando cartas para as autoridades municipais. E tudo isso pelos correios.

“Os correios se tornam objetos de projetos políticos conflitantes”, de acordo com o pesquisador. Algumas autoridades chegaram a interromper a ligação postal com o interior das províncias. Setores de Goiás e da Bahia, que tinham discordâncias políticas, se recusaram a manter uma linha de comunicação. 

“A memória de que o processo de independência não foi um processo histórico violento e cheio de guerras é uma narrativa construída pelo Estado Imperial na época da independência para legitimar o projeto vencedor”, revela Thomáz.

Para ele, os correios foram usados como arma nas guerras de independência que ocorreram em quase todas as províncias do Brasil. Exemplo disso é que o governo da Junta de Governo Provisório do Maranhão, aliado dos constituintes portugueses, confiscou as correspondências do Rio de Janeiro quando uma outra Assembleia Constituinte foi convocada por D. Pedro.

Os aliados de D. Pedro queriam informar a população sobre o que era debatido na capital, mas as vias de comunicação eram constantemente cortadas por seus adversários. “O desenho da rede postal era modulado de acordo com os conflitos políticos que estavam acontecendo com essas guerras”.

Internacionalização

O espaço de comunicação no mundo estava se reconstruindo com as independências americanas. “Nessa última etapa em que, internamente, os correios estão se nacionalizando, externamente, como uma outra faceta desse mesmo processo, eles estão se internacionalizando”.

À medida em que a independência do Império Brasileiro é reconhecida pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, a comunicação com Portugal, interrompida na guerra, é retomada e o Brasil passa a se corresponder diretamente com a França e países da chamada Liga Hanseática — que formarão posteriormente a Alemanha. “Os correios vão se tornando uma ferramenta de inserção do Império do Brasil em um sistema de relações internacionais”.

Experiência moderna do tempo

Essa é uma transformação que afeta amplos setores da população, já que a elite alfabetizada não guardava para si as notícias que chegavam pela troca de cartas. “Nessa época jornais começam a circular, alguns extraoficiais contra a censura”.

Nessa virada de século, o passado foi deixando de ser uma fonte de antecipação do futuro. Cada vez mais, os anos seguintes passavam a ser imaginados como desconhecidos e inéditos. “As pessoas não conseguiam mais preservar suas vidas de acordo com padrões antigos de reprodução social, então certas instituições sociais foram se esvaindo”.

Para reunir todos os dados da pesquisa, Thomáz consultou comunicados oficiais, registros de viajantes e anotações de expedições científicas da época, decretos imperiais, documentos da Fazenda e jornais da época. Na realização desse trabalho, o historiador dialoga com as evidências históricas já consagradas a respeito do reformismo ilustrado da monarquia portuguesa, da formação do Império do Brasil e do estabelecimento das comunicações postais no mundo. 

“De um lado, há uma historiografia da experiência social do tempo, que é de origem alemã, e que no mundo ibero-americano já é consolidada pelo menos desde os anos 2000. Por outro, eu diálogo também com historiografias do giro espacial norte-americano e britânico, sensíveis às construções sociais do espaço e às contribuições da geografia dos anos 1980 e 1990. Uma terceira vertente é a cartografia francesa, não tradicional, que está aí desde os anos 70, teve um refluxo, e agora está ganhando um novo impulso com a cartografia digital”. 

Mais informações: e-mail thomaz.fortunato@alumni.usp.br, com Thomáz Fortunato [1], [2]

[1] Texto de Ivan Conterno

[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/correios-mudaram-relacao-dos-brasileiros-com-o-futuro/

Como citar este texto: Jornal da USP. Correios mudaram relação dos brasileiros com o futuro. Texto de Ivan Conterno. Saense. https://saense.com.br/2024/03/correios-mudaram-relacao-dos-brasileiros-com-o-futuro/. Publicado em 22 de março (2024).

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