Jornal da USP
16/09/2025

Um novo estudo, realizado por pesquisadores da USP e do Field Museum of Natural History, nos Estados Unidos, traz informações inéditas sobre a história e a adaptação de roedores. As descobertas sugerem que a presença de uma unha no polegar (D1) desses animais permitiu a sua sobrevivência em todos os continentes ao redor do globo, com exceção da Antártida. Um artigo com todos os detalhes da pesquisa foi capa da última edição da revista Science.
Os cientistas examinaram centenas de roedores em coleções do Field Museum e analisaram em quais deles os polegares apareciam. Além disso, foi criada uma árvore genealógica – representação gráfica com semelhanças e relação evolutiva entre as espécies – dos roedores que manuseiam comida com as mãos e daqueles que usam apenas a boca para se alimentar.
Rafaela Missagia, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP, pesquisadora associada ao Field Museum of Natural History e primeira autora do trabalho, aponta que a presença do polegar foi observada na maior parte das espécies estudadas. Os roedores representam, atualmente, cerca de 40% de todas as espécies de mamíferos conhecidas.
“A primeira análise dos pesquisadores concluiu que, entre os gêneros analisados – que correspondem a aproximadamente 90% das espécies descritas-, quase 80% possuem as unhas dos polegares, isso é uma coisa que não se sabia antes”, afirmou a pesquisadora em entrevista ao Jornal da USP.
Esta é uma particularidade desses animais, destaca Anderson Feijó, curador de mamíferos do Field Museum of Natural History de Chicago, que divide a primeira autoria do trabalho. Segundo ele, já se sabe que os primatas contam com unhas em todos os dedos e os coelhos com garras, mas a condição dos roedores é particular. “Isso foi um grande achado, porque mostra que essa característica é única de roedores”, completa.
As descobertas sugerem que o polegar foi uma adaptação que deu aos roedores a capacidade de quebrar sementes e nozes. A dupla funcionalidade das patas dos roedores (uma unha no polegar e garras nos outros dedos) faz com que algumas espécies adquiram maiores habilidades no manuseio de alimentos e se adaptem a diferentes modos de vida.
Influências
A pesquisa dividiu as espécies entre aqueles que possuíam únguis, estrutura queratinizada que pode ser dividida entre garra ou unha, e as que não possuíam únguis. A categorização visual se baseou no formato da estrutura que eles têm na ponta do polegar ou na ausência dele. A unha é caracterizada por uma estrutura achatada e larga, enquanto a garra é afiada e curvada.
Os alimentos consumidos por esses animais, como sementes, insetos, plantas e frutas são manipulados com os dedos. Isso se aplica, sobretudo, para as sementes, que são recurso fundamental para a diversificação dos roedores.
Por apresentarem difícil acesso, o consumo destes alimentos é restrito entre os mamíferos, porém comuns na alimentação dos roedores graças ao desenvolvimento dos incisivos e da musculatura mastigatória destes animais. Segundo a pesquisa, a presença de unhas dos polegares também é um fator importante que possibilita o acesso a esses recursos.
O modo de consumo dos alimentos é dividido entre oromanual, quando o animal leva o alimento até a boca usando as patas, e oral, quando o alimento é consumido sem o uso das patas.
O estudo identificou que grupos que perderam completamente a únguis ou o polegar estão associados à alimentação oral. Este modo de consumo pode variar entre espécies que se alimentam de pastagem e grama, como as capivaras, e espécies de esquilos das Filipinas que se alimentam da casca de árvores apenas com os dentes.
Rafaela destaca que a maioria das espécies com garras são animais com adaptações para cavar e viver debaixo do solo, chamados de fossoriais.
“Estes fatores aparecem várias vezes de forma independente, tanto a questão de terem garras, os que cavam, quanto não terem unhas, os que comem de forma oral, o que mostra que essa relação estrutura-função é bem forte”
Rafaela Missagia
Estas funcionalidades descritas pelo artigo são um achado novo e mostram a importância dessa característica única dos roedores. Segundo a docente, pesquisas que estudam unhas, em geral, focam nos primatas. Mas aqui, o artigo mostra que esta não é uma particularidade deles. “Os roedores também possuem unhas e seus polegares são capazes de realizarem uma manipulação eficiente e bem-feita de alimento”, completa.
Os pesquisadores esperam que o trabalho possa impulsionar outras pesquisas sobre os roedores.
Investigação
A pesquisa surgiu em 2023, enquanto Gordon Shepherd, pesquisador sênior do trabalho e professor da Northwestern University, em Chicago, estudava a neurobiologia da alimentação em ratos no laboratório. Na época, o pesquisador estudava a importância do uso das patas na alimentação para aquela espécie. Ele concluiu que, graças às patas, o animal conseguia acessar os recursos de forma mais eficiente.
A partir disso, o pesquisador ficou curioso em relação a uma característica pouco abordada pela literatura: a regularidade da presença de unhas em espécies de roedores.
Segundo Rafaela, existem algumas descrições de espécies de roedores que discutem sobre os polegares e as unhas, chamando os polegares de vestigiais, rudimentares, e não funcionais. A docente aponta que a pesquisa prova o contrário: a relevância da relação funcional é intrínseca.
Rafaela e Feijó ficaram responsáveis pelo contexto metodológico de checagem da relação entre a presença de unha e o tipo de alimentação, e ao modo de vida. Já Shepherd desenvolveu um inventário das espécies que possuíam únguis – unhas e garras – e as que não possuíam.
Segundo Feijó, os pesquisadores conseguiram evidências a partir de registros fósseis, pela morfologia dos ossos que sustentam as unhas, indicando que roedores, há 50 milhões de anos, possivelmente possuíam unhas. Os métodos filogenéticos comparativos permitiram estimar os estados ancestrais a partir da análise que combinou banco de dados com dados de espécies atuais e a árvore filogenética.
Os pesquisadores destacam o papel de coleções para a pesquisa e outros trabalhos científicos. O curador explica que o estudo utilizou, além do acervo do Field Museum of Natural History e outras coleções norte-americanas, espécimes do acervo do Museu de Zoologia (MZ) da USP para embasar seu conteúdo.
“Museus são fontes infinitas de descobertas. Quando esses animais, que usamos no estudo, foram coletados, imaginamos que ninguém pensou que alguém faria um estudo sobre as unhas de roedores. Isso só mostra como as coleções científicas são importantes como fonte de descobertas científicas”
Anderson Feijó
O artigo Evolution of thumbnails across Rodentia está disponível neste link.
Mais informações: rmissagia@usp.br, com Rafaela Missagia, e afeijo@fieldmuseum.org, com Anderson Feijó [1], [2]
[1] Texto de Yasmin Constante
[2] Publicação original: https://jornal.usp.br/ciencias/no-lugar-de-garras-polegar-com-unha-pode-ter-ajudado-na-evolucao-da-maioria-dos-roedores/
Como citar este texto: Jornal da USP. No lugar de garra, polegar com unha pode ter ajudado na evolução da maioria dos roedores. Texto de Yasmin Constante. Saense. https://saense.com.br/2025/09/no-lugar-de-garra-polegar-com-unha-pode-ter-ajudado-na-evolucao-da-maioria-dos-roedores/. Publicado em 16 de setembro (2025).