Matheus Macedo-Lima
31/08/2016

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“Eu era muito novo para lembrar disso”, todo mundo já deve ter dito alguma vez na vida. Não deve causar estranhamento a ninguém saber que não conseguimos lembrar do nosso nascimento ou da primeira vez que comemos chocolate, apesar de terem sido situações provavelmente bem marcantes em nossas vidas. Mas espera aí… quando crianças conseguimos aprender a andar, falar, escrever, andar de bicicleta… coisas que não esquecemos quando crescemos. Por isso, sempre foi um enigma o porquê de não conseguirmos lembrar também de eventos (memória episódica). Esse fenômeno tem até um nome: amnésia infantil. Após mais de um século de estudos [2], cientistas finalmente conseguiram encontrar uma provável resposta para os mecanismos que causam a amnésia infantil. Surpreendentemente, ela não é uma amnésia completa!

Amnésia infantil é algo comprovado em diversos grupos de animais. Em ratos, ela ocorre até por volta do 17º dia de idade, após quando os ratinhos passam a expressar memórias de acontecimentos. Infelizmente, ratos não tem como comunicar memórias, então testes comportamentais têm de ser utilizados. Um desses testes se chama esquiva inibitória, em que os ratos aprendem que um dos setores de uma caixa deve ser evitado, pois algo desagradável acontece lá (um choque, por exemplo). Durante o teste, os ratos são colocados na mesma caixa, mas não recebem o choque mesmo que entrem no setor previamente eletrocutado. Mesmo assim, os ratos que lembram do treino evitam o setor.

Pesquisadores [3] descobriram que ratos com 17 dias de idade expostos ao treino (com choque) não retém a memória de evitar o setor eletrocutado da caixa na hora do teste (sem choque) quando adultos. Sem muita surpresa aqui: amnésia infantil também existe em ratos.

Então, os pesquisadores decidiram verificar se aquela memória do choque havia sido realmente esquecida pelos ratos. Seria possível “lembra-los” sobre aquele choque recebido na infância? Surpreendentemente, após testadas várias combinações de procedimentos descobriu-se que era possível! Para isso foi preciso que os ratos adultos (que receberam choque quando crianças) fossem expostos primeiro ao teste (sem choque), durante o qual nenhuma memória era expressa. Após o teste, os pesquisadores colocaram esses ratos em um ambiente novo (uma caixa diferente) no qual eles levaram um choque “do nada” (coitados). Então, colocando-os de novo na caixa de teste, a memória de evitar o compartimento aversivo retornava! Ou seja, aquela memória ainda existia no cérebro. Só precisava ser resgatada do jeito certo.

O raciocínio dos pesquisadores foi este: se existe formação de memória, então é bem provável que o hipocampo esteja envolvido, pois é a área do cérebro responsável pela aquisição de memórias novas. Eles então bloquearam temporariamente com drogas a atividade do hipocampo dos ratinhos quando eram expostos ao treino. E acertaram: aquela memória passou a não existir quando eles se tornaram adultos, e tampouco foi possível resgatá-la. Após uma bateria de testes bloqueando etapas específicas dos mecanismos celulares de formação de memória, a conclusão: o hipocampo passa por uma mudança drástica com a idade!

Os mecanismos identificados pelo estudo são bem semelhantes aos que ocorrem em áreas sensoriais do cérebro, como o córtex visual. Por exemplo, bebês que desenvolvem cataratas e não são tratados têm uma chance alta de perderem completamente ou parcialmente a visão, mesmo que a cirurgia seja realizada mais tarde na vida. Esse período em que são necessários estímulos para o desenvolvimento correto da estrutura cerebral se chama período crítico. O presente estudo acaba de derrubar um conceito clássico da neurociência: de que períodos críticos são apenas características de áreas sensoriais.

Esse estudo sugere que o hipocampo mantém memórias episódicas “escondidas” durante o período crítico, que podem ser importantes para o desenvolvimento correto dessa estrutura. Fazendo uma analogia com o período crítico sensorial, podemos imaginar que privar crianças de experiências durante esse período crítico do hipocampo pode causar danos irreparáveis à capacidade de aprendizado e pode contribuir para o agravamento de sintomas de doenças como a síndrome de Down e desordens do espectro autista.

[1] Crédito da imagem: liz west (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/calliope/4557977414/.

[2] A Rudenko and LH Tsai. The hippocampus grows up. Nature Neuroscience 19, 1190 (2016).

[3] A Travaglia et al. Infantile amnesia reflects a developmental critical period for hippocampal learning. Nature Neuroscience 19, 1225 (2016).

Como citar este artigo: Matheus Macedo-Lima. Por que não lembramos de quando éramos bebês? Saense. URL: http://www.saense.com.br/2016/08/por-que-nao-lembramos-de-quando-eramos-bebes/. Publicado em 31 de agosto (2016).

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