Matheus Macedo-Lima
20/12/2017

Representação do corpo no córtex cerebral (esquerda) [1]. Os tamanhos das partes do corpo indicam o quão sensível é a área que representa aquela parte. Esse mapa pode ser representado artisticamente na forma do “homúnculo sensorial” (direita) [2].
O nosso cérebro possui mapas precisos do nosso corpo. As partes do córtex que comandam movimentos (córtex motor) e recebem sensações do corpo (córtex sensorial) são encontradas em ordem (conforme a imagem acima na esquerda). Esse bonequinho bem desfigurado (imagem acima da direita), é chamado de “homúnculo cortical”. Ele é assim desproporcional porque as partes maiores (como mãos e face) representam as partes mais sensíveis e com movimentos mais precisos do nosso corpo.

Mas o que acontece quando uma parte do corpo é perdida?

Os neurônios que controlam um membro amputado perdem os seus alvos. O cérebro passa por um momento de “pânico” tendo que preencher aquele vazio, num evento que chamamos de reorganização cortical massiva (RCM) pós-amputação. Após a RCM, regiões do córtex responsáveis por outras partes do corpo invadem a área do membro perdido. Quando uma mão é perdida, por exemplo, comumente áreas que controlam e recebem informação da face e dos lábios expandem para essa região.

Então, o que acontece no cérebro quando um membro perdido é transplantado?

Uma estória emocionante e muito interessante do ponto de vista científico teve início em junho de 2015 nos Estados Unidos. O primeiro transplante bilateral de mãos em uma criança foi realizado, o que representa uma possibilidade única de entender como o cérebro infantil reage a um transplante de membros.

Zion Harvey antes (esquerda) e um ano após transplante bilateral de mãos [3].
Esse garotinho chamado Zion Harvey (fotos acima) teve um início de vida complicado. Com apenas dois anos ele foi acometido de uma infecção generalizada (sepse) e teve que passar por amputações dos dois pés e das duas mãos. Com quatro anos, ainda por consequência da sepse, ele precisou passar por um transplante de rim (doado pela mãe). Por conta dos medicamentos de redução da imunidade após o transplante de rim (para evitar uma possível rejeição do órgão), Zion se tornou um candidato perfeito para receber transplantes de membros [3]. Como ele se adaptou bem às próteses de perna, os transplantes de mãos foram priorizados.

Então, seis anos após as amputações, um doador compatível se tornou disponível e Zion passou por um transplante bilateral de mãos no Hospital das Crianças da Filadélfia. Após isso, história e ciência foram escritas.

Um ano após o transplante, intenso trabalho de uma equipe completa com fisioterapeutas, enfermeiros, terapeutas, psicólogos e médicos, e uma dedicação e persistência incríveis de Zion, ele alcançou o inimaginável. Ele hoje possui destreza suficiente nas mãos até para amarrar os próprios sapatos! Ele ficou mais famoso ainda ao ser convidado para lançar a primeira bola num jogo do seu time favorito de baseball.

Mas o que aconteceu no cérebro de Zion?

Um trabalho da mesma equipe acompanhou a atividade cerebral de Zion usando magnetoencefalografia durante a recuperação após os implantes [4]. Até 4 meses após os implantes, a esperada RCM pôde ser observada. Quando os pesquisadores estimulavam o lábio de Zion, a área do córtex responsável pelas mãos “acendia”. Porém, 8 meses após o transplante, as respostas no córtex passaram a ser praticamente idênticas às de crianças típicas nesta idade! Ou seja, a RCM foi revertida, e esse evento foi acompanhado do aparecimento de sensações e movimentos das mãos.

Esse é o primeiro relato de reversão de RCM em humanos. Isso mostra que o nosso cérebro é capaz de se adaptar e se tornar funcional após transplantes de membros. Incrível não?

Seria interessante agora esse evento em adultos para comparar o grau e a velocidade de reversão com o caso infantil.

Deixo abaixo um vídeo sobre a trajetória de Zion. Lenços são altamente recomendados!

Vídeo

[1] Crédito da imagem: OpenStax Anatomy and Physiology / Creative Commons (CC BY 4.0). https://cnx.org/contents/FPtK1zmh@6.27:KcreJ7oj@5/Central-Processing.

[2] Crédito da imagem: Son of Groucho (Flickr) / Creative Commons (CC BY 2.0). https://www.flickr.com/photos/sonofgroucho/3280576609/.

[3] S Amaral et al. 18-Month Outcomes of Heterologous Bilateral Hand Transplantation in a Child: a Case Report. Lancet Child Adolesc Heal 10.1016/S2352-4642(17)30012-3 (2017).

[4] W Gaetz et al. Massive cortical reorganization is reversible following bilateral transplants of the hands: evidence from the first successful bilateral pediatric hand transplant patient. Ann Clin Transl Neurol 10.1002/acn3.501 (2017).

Como citar este artigo: Matheus Macedo-Lima. A impressionante estória do primeiro transplante de mãos infantil. Saense. http://www.saense.com.br/2017/12/a-impressionante-estoria-do-primeiro-transplante-de-maos-infantil/. Publicado em 20 de dezembro (2017).

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