Antônio Murilo Macedo
10/02/2017

Galáxia Anã observada pelo telescópio Chandra da NASA. [1]
Na teoria da gravitação de Einstein o espaço-tempo não é apenas o palco onde a matéria e a radiação manifestam sua dinâmica. Ele aparece de forma ativa nas equações de Einstein de modo que sua curvatura, por exemplo, depende da distribuição de energia e momento das partículas que nele residem. Mas de que é feito o espaço-tempo? Ele é contínuo em todas as escalas ou possui algum tipo de granulação em escalas muito pequenas? O que garante sua conectividade? As surpreendentes respostas para estas perguntas, que antes sequer faziam sentido, começaram a aparecer em artigos teóricos recentes [2], [3] e revelam uma inesperada conexão com informação quântica.

O conceito central nesta conexão é emaranhamento quântico [4], uma sutil forma de correlação entre objetos quânticos que se mantém forte mesmo quando os objetos são separados por grandes distâncias. Para entender melhor este conceito vamos apresentar uma divertida alegoria. Suponha que você tenha dois pares de luvas, um par branco e outro preto, que são mantidas em uma caixa. Você então pega um dos pares da caixa, coloca os membros do par escolhido em diferentes envelopes e os envia para dois amigos (Alice e Beto) que moram em extremidades opostas da cidade.  Alice recebe o envelope e ao abri-lo observa uma luva branca de mão esquerda. Ela então conclui que Beto recebeu uma luva branca de mão direita. Neste caso, as propriedades “branca de mão direita” e “branca de mão esquerda” pertencem à luva e a correlação é de natureza lógica, ou seja, não pode ser atribuída a uma ação à distância entre Alice e Beto. A luva de Beto sempre foi “branca de mão direita” desde que saiu da caixa. Não há nada misterioso. No caso de “luvas quânticas” a situação é bem diferente se as propriedades “cor” e “mão” da luva forem complementares, isto é se elas não podem ser observadas simultaneamente com precisão arbitrariamente alta. Neste caso, ao receber o envelope Alice tem que decidir se deseja observar a “cor” ou a “mão” da luva. É aqui que reside o mistério da ação à distância, pois as propriedades não são intrínsecas ao objeto. Elas aparecem no ato da medição. Em outras palavras, as luvas saem da caixa sem terem bem definidas as propriedades “cor” e “mão”. Então, se Alice decidir observar a cor da luva e obtiver como resultado branca, a luva com Beto adquirirá instantaneamente a propriedade “ser branca”, independentemente de quão distante ele esteja de Alice. Em certo sentido, Alice ao decidir observar a propriedade “cor” afetou a luva que estava com Beto, ao fazer com que ela adquirisse esta propriedade. Este exótico efeito de “ação à distância” foi observado exaustivamente em laboratório e é considerado o cerne da física quântica. Mas o que exatamente isto tem a ver com a matéria-prima do espaço tempo?

A chave da conexão emerge quando tentamos entender a versão quântica da teoria da gravitação de Einstein. Existe uma surpreendente maneira de descrever gravitação quântica em certos modelos de universo com borda, que consiste em admitir um tipo especial de teoria quântica na fronteira e nenhuma interação gravitacional. Em outras palavras, toda a informação gravitacional é armazenada na superfície que envolve o espaço, similar ao fenômeno da holografia em ótica, no qual a imagem tridimensional de um objeto é armazenada em um pequeno objeto plano, o holograma. Van Raamsdonk [2] e depois Brian Swingle [3] estudaram detalhadamente o efeito do emaranhamento produzido por interações descritas pela teoria quântica da borda na estrutura do espaço-tempo no interior do universo. O efeito espetacular que foi descoberto é que a intensidade do emaranhamento regula o grau de conectividade do espaço-tempo, de modo que se o emaranhamento for inteiramente eliminado, partes correspondentes do espaço-tempo ficam desconectadas, ou seja podemos “rasgar” o espaço-tempo eliminando o correspondente emaranhamento na teoria quântica.

A teoria quântica de partículas e campos, condensada no modelo padrão que contempla três interações fundamentais e a teoria da gravitação de Einstein são os dois grandes pilares da física contemporânea. Seus sucessos experimentais, cada um em seu domínio, são espetaculares e incluem a observação do bóson de Higgs, previsto no modelo padrão e a detecção das ondas gravitacionais, previstas na teoria da gravitação de Einstein. Unificar estes dois grandes pilares em um modelo matemático consistente é talvez o maior desafio conceitual da física. A descoberta desta profunda conexão entre o emaranhamento da teoria quântica e a conectividade do espaço-tempo da teoria de Einstein é sem dúvida um passo significativo na direção deste modelo unificado. O impacto no desenvolvimento de novos e profundos conceitos nas áreas de informação quântica e complexidade computacional já é notável na literatura recente.

[1] Crédito da Imagem: NASA (Flickr) / Creative Commons (CC BY-NC 2.0). URL: https://www.flickr.com/photos/nasamarshall/8615696355.

[2] M Van Raamsdonk. Building up Spacetime with Quantum Entanglement. Gen Relativ Grav 42, 2323 (2010).

[3] B Swingle. Entanglement Renormalization and Holography. Phys Rev D 86, 065007 (2012).

[4] R Cowen. The Quantum Source of Space-Time. Nature 527, 290 (2015).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. A matéria-prima do espaço-tempo. Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/02/a-materia-prima-do-espaco-tempo/. Publicado em 10 de fevereiro (2017).

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