Hendrik Macedo
04/09/2017

Thomas Bayes. [1]
A “Última Pergunta” (do inglês, The Last Question) é um conto de ficção científica de Isaac Asimov, publicado em 1956 na revista Science Fiction Quarterly. A estória fala de um supercomputador, o Multivac, que tudo sabe e é capaz de resolver diversos problemas do planeta. Menos um: “como reverter a entropia?”. Esta pergunta é repetida inúmeras vezes para o supercomputador ao longo de bilhões de anos e a resposta da máquina se manteve sempre a mesma: “DADOS INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA”. Bom, leiam o conto para ver como a estória termina. 🙂

Mais de 50 anos depois, a IBM lançou o Watson (ver Máquinas que compreendem a linguagem humana), a versão não-ficção do Multivac, naturalmente bem menos poderoso e igualmente incapaz de responder à “Última pergunta”. Mas está cada vez mais capaz de responder a diversas outras. Em junho passado, o Watson chegou à cidade de Porto Alegre (RS, Brasil) para auxiliar os profissionais da saúde no tratamento de pacientes com câncer, portando seus 15 milhões de conteúdos científicos relacionados e com extrema capacidade de aprender continuamente sobre outros tantos. Isso é particularmente importante em um mundo onde cerca de 50 mil trabalhos de pesquisas oncológicas são publicados por ano, o que torna virtualmente impossível que qualquer profissional de saúde se mantenha atualizado. Informações clínicas do paciente, como histórico médico e resultados de exames, também são inseridos no sistema. O “Dr.” Watson então é capaz de informar as opções de tratamento e relevância de cada um, os medicamentos mais indicados para cada caso e possíveis efeitos colaterais. O Hospital do Câncer Mãe de Deus é o primeiro da América do Sul a utilizar inteligência artificial para tratar pacientes com câncer (impossível deixar de notar a ironia da coisa).

Para obter desempenho tão grande nas mais diversas tarefas, a tecnologia por trás dos vários “Watsons” hoje existentes necessita de uma quantidade gigantesca de dados. Isso é fato. Entretanto, nem sempre dispomos de tão grande quantidade de dados para alimentar um sistema e talvez uma Inteligência Artificial coerente com a humana nem devesse precisar realmente. O psicólogo e professor da Universidade de Berkeley, Alison Gopnik, atenta para o fato de como as crianças conseguem aprender com pouquíssimos estímulos de entrada: bastam alguns poucos exemplos fornecidos por pais ou professores que as crianças generalizam facilmente [2]. Por esta razão, em detrimento das tão popularizadas abordagens bottom-up (das redes neuronais artificiais, por exemplo), ele e seu grupo vem priorizando a pesquisa sobre abordagens top-down, como as das Redes Bayesianas (do inglês, Bayesian Networks) [3]. As Redes Bayesianas são um formalismo gráfico bem estabelecido para representar relações de probabilidade condicional entre variáveis de interesse incertas. Os nós da rede representam variáveis e os arcos representam relacionamentos causais, de influência ou correlacionados. Um modelo Bayesiano permite combinar o conhecimento que você já possui com os estímulos que você recebe para poder concluir sobre a real probabilidade de ocorrência de um evento. Isso é o que a literatura chama de Inferência Bayesiana. Esta mesma modelagem foi utilizada por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, E.U.A.) para criar uma IA capaz de reconhecer caracteres manuscritos não familiares [4]. Mesmo sem saber o significado de um dado ideograma Japonês, por exemplo, a IA em questão era capaz de reproduzi-lo, diferencia-lo de uma letra coreana ou russa, ou ainda inventar um ideograma falso respeitando-se o mesmo tipo de traço. Os resultados obtidos no trabalho superaram o desempenho das abordagens deep learning e rivalizaram com o dos seres humanos na tarefa.

Voltando ao diagnóstico médico, as redes bayesianas foram a abordagem utilizada por pesquisadores da Universidade de Londres para desenvolver um sistema de suporte à decisão médica [5]. Nesse caso, o método fez uso de dois modelos Bayesianos originais e recentemente validados pela psiquiatria forense: DSVM-MSS e DSVM-P. A partir de informações não estruturadas, incompletas, redundantes e eventualmente contraditórias presentes em questionários preenchidos por pacientes ou entrevistas com os mesmos, o sistema foi capaz de obter boa acurácia no diagnóstico. Os resultados do trabalho mostram ser inteiramente possível a criação de uma inteligência artificial mesmo quando a aquisição de dados não é possível. Foi possível, ainda, observar que mesmo havendo grande disponibilidade de dados, se não houver uma modelagem adequada do conhecimento especialista, o desempenho pode cair. O sistema se mostrou ainda robusto o suficiente para responder questões clínicas complexas baseadas em evidências não observadas.

Os resultados dos trabalhos acima mostram que talvez a melhor inteligência artificial, aquela que se aproxime do ainda obscuro, mas impressionante mecanismo de aprendizado das crianças, seja aquela que faça uso parcimonioso dos dados, priorizando a construção de modelos que se baseiem nas informações que são realmente necessárias para inferência ao invés de considerar indiscriminadamente a imensidão de dados que podem estar disponíveis. Independentemente dos aspectos de performance, eu particularmente vejo uma vantagem interessante numa inteligência artificial médica com menor uso de dados para prover prognósticos: se durante uma consulta perguntarmos angustiadamente se iremos morrer, aumentam-se nossas chances de que ela responda com “DADOS INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA”. Melhor assim. Quem quer saber de verdade?

[1] Crédito da imagem: Public domain, via Wikimedia Commons. URL da imagem: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Thomas_Bayes.gif.

[2] A Gopnik. An AI That Knows the World Like Children Do. Scientific American Mind 28, 21 (2017).

[3] N Friedman et al. Bayesian network classifiers. Machine learning 29, 131 (1997).

[4] BM Lake et al. Human-level concept learning through probabilistic program induction. Science 350, 1332 (2015).

[5] AC Constantinou et al. From complex questionnaire and interviewing data to intelligent Bayesian Network models for medical decision support. Artificial Intelligence in Medicine 10.1016/j.artmed.2016.01.002 (2016).

Como citar este artigo: Hendrik Macedo. “Doutor, eu vou morrer!?? Um momento. Processando…” Saense. URL: http://www.saense.com.br/2017/09/doutor-eu-vou-morrer-um-momento-processando/. Publicado em 04 de setembro (2017).

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