Bruno Carneiro da Cunha
23/01/2018

Esquema das linhas de campo elétrico entre duas cargas opostas. Filosoficamente, pode-se debater a “existência” dessas linhas, porém do ponto de vista da física sua existência é tão bem-fundamentada quanto as das partículas que geram o campo. [1]
Forças fundamentais são uma espécie de “bloco fundamental” das interações do universo: a partir delas, e de suas composições, podemos modelar todas as interações entre os corpos. Elas, no entanto, não podem ser descritas como composições de outras forças.

São quatro — até onde se sabe: a força gravitacional, a força eletromagnética, a força nuclear forte e a força nuclear fraca.

As quatro são bastante distintas na sua intensidade e alcance. Até mesmo suas descrições são diferentes: a força gravitacional, por exemplo, foi postulada por Newton, usando a entidade vetorial “força” que ele próprio definiu na segunda lei. A força eletromagnética, na sua formulação por Maxwell, utiliza o conceito de “campo”, introduzido anteriormente por Ampère e Coulomb como ferramenta matemática. As forças nucleares necessitam de mecânica quântica para serem descritas. A força nuclear fraca pode ser entendida com as mesmas ferramentas da força eletromagnética — na verdade ambas podem ser entendidas como aspectos de uma única força, a eletrofraca. E, finalmente, a força nuclear forte só pode ser matematicamente modelada a partir de primeiros princípios a energia muito alta, uma propriedade chamada tecnicamente de “liberdade assintótica”.

Descrições matemáticas à parte, o próprio conceito de força incomodou muito aos físicos contemporâneos de Newton, que trabalhavam com interações sob uma analogia mecânica (“alavancas e pontos de apoio”). A ideia de que a Lua sofria uma ação da Terra mesmo sem haver um ponto de contato ia de encontro às ideias de filosofia natural propostas por Descartes. A noção de uma “ação à distância” ia contra o cartesianismo como era entendido na época, sendo interpretado como um apelo ao divido — “o distante”.

Esta aparente contradição ilustra bem o problema filosófico de se confundir o objeto natural pela noção que construímos com nossa linguagem. O conceito de campo, à medida que foi refinado no século XIX, foi associado com a propagação de perturbações, de maneira análoga à que acontece quando ondas se propagam pelo mar.

Esta visão ganhou corpo com a unificação entre fenômenos elétricos e magnéticos proposta por Maxwell. A sua noção de campo eletromagnético teve grande impacto conceitual e grande sucesso experimental por predizer o comportamento da luz como perturbações do campo eletromagnético. Na analogia com ondas mecânicas, o “meio” do campo eletromagnético foi de novo postulado, o famoso “éter luminífero” da segunda metade do século XIX. O éter poderia reconciliar a noção cartesiana de ação de contato, e o conceito de campo — inclusive o campo gravitacional. Neste sentido, não haveria ação à distância: a presença de uma massa (ou carga) deformaria o meio, e essas deformações agiriam sobre a segunda massa (ou carga), gerando uma aceleração.

O advento das revoluções da relatividade einsteiniana e da mecânica quântica mudaram essa visão clássica, mas não tanto quanto se poderia esperar: a relatividade substituiu o conceito de éter pelas interações locais no espaço tempo e com velocidade finita de propagação, e a mecânica quântica desmistificou o conceito de campo ao estendê-lo para as chamadas partículas.

Neste momento é bom se estender sobre ambas as diferenciações.

Na relatividade einsteiniana, os campos associados às forças fundamentais podem ser vistos como perturbação de um estado. Porém este estado se diferencia do “éter luminífero” por preencher uniformemente o espaço-tempo, e não só o espaço. Isto requer que os campos se propaguem com a velocidade da luz — todos eles. Na época, a hipótese de Einstein se restringia à força eletromagnética. Com o passar do século XX, a hipótese se aplicou à todas as forças fundamentais, fato que, à exceção da força nuclear forte, foi testado experimentalmente apenas recentemente.

A situação em mecânica quântica subverte a diferenciação entre as partículas e forças que é feita em física clássica. Segundo a visão quântica, uma partícula nada mais é que uma interferência localizada de ondas. Por outro lado, as perturbações que são associadas aos campos fundamentais também se propagam de forma ondulatória: a luz, por exemplo, tem a ela associada uma polarização e uma banda de frequência. A distinção entre as partículas e campos se dá assim de forma quantitativa e não qualitativa: a “localização” de uma e não da outra depende apenas das energias que são associadas às perturbações e não de uma distinção fundamental. No início da década de 30, Dirac introduziu o conceito de campo quântico, e uma visão unificada foi conseguida — ao menos para o elétron e o campo eletromagnético (descontando a interação entre os dois!)

Na verdade, a ideia clássica em que o campo servia de “mediador” da interação, já resolvia o problema pragmático de se resolver configurações simples de cargas ou massas pontuais. Aplicado ao campo eletromagnético, a resolução destes tipos de problemas serviu para descrever a propagação de ondas de rádio, de TV e da própria luz. Do ponto de vista mais conceitual, a ideia de encarar o campo como uma “ação à distância” foi substituída pela concepção de interações locais no espaço-tempo. Frente a este avanço conceitual, Einstein se debruçou em criar um modelo para as interações gravitacionais em que estes conceitos de localidade e respeito à velocidade da luz estavam embutidos desde o início. O resultado foi a teoria da relatividade geral, em que o campo gravitacional é substituído pela própria geometria do espaço-tempo.

Concomitantemente, na análise dos átomos, surgia a noção de um novo tipo de força que mantinha os núcleos atômicos coesos contra a repulsão eletromagnética. Como este é um domínio regido pela mecânica quântica, vale a “confusão” entre perturbações (ondas) e partículas aludida acima. O quantum da perturbação recebe o nome de uma partícula — mesmo que em situações práticas não exista uma localização que nos permita chamar a partícula de “pontual”. Por exemplo, o nome que damos ao quantum de radiação eletromagnética é fóton e corriqueiramente pensamos nele como uma partícula. Porém, quando um átomo emite luz, como por exemplo o átomo de hidrogênio em um espectrógrafo, o comprimento de onda associado à luz emitida é cerca de 5000 vezes maior que o próprio átomo.

Ilustração do efeito Meissner em um supercondutor. Na fase usual (não condutora), à esquerda, o campo pode entrar livremente no material. Na fase supercondutora, à direita, o campo é expulso restando apenas um pequeno comprimento de penetração “skin depth”, na interface entre o supercondutor e o meio externo. Este fato serve de analogia para as forças nucleares, que têm alcance finito. Nestas, o comprimento de penetração é inversamente proporcional à massa da partícula mediadora. [2]
No caso dos núcleos atômicos, a partícula que mantinha o núcleo coeso foi chamada de “méson” por Yukawa em 1934. Esta partícula foi afinal descoberta em 1947, fato que contou com a ajuda do físico brasileiro César Lattes, e deu muito fôlego à ideia de campo quântico. O principal fator de diferença entre esta “partícula mediadora” da interação nuclear e o fóton, a “partícula mediadora” do eletromagnetismo, é que o méson possui massa em repouso, o que se traduz dinamicamente ao fato que a força nuclear tem alcance finito, enquanto o eletromagnetismo tem alcance infinito. Assim se constrói o argumento de que o núcleo atômico pode ser estável dentro do alcance da força nuclear pois esta é mais forte que a repulsão eletromagnética dos prótons. Porém podemos ter núcleos separados pois a força nuclear tem alcance finito.

No decorrer do século XX, a noção de força nuclear se desenvolveu imensamente, mas manteve o espírito de que as perturbações do estado fundamental comunicam as interações, e que associadas às perturbações pode-se pensar em “partículas mediadoras”. O que se viu experimentalmente foi a multiplicidade de partículas mediadoras e suas massas, fato que só foi resolvido — parcialmente — com a introdução da cromodinâmica quântica no final da década de 1960. Neste modelo, as próprias partículas mediadoras, os mésons, são compostas de partículas mais fundamentais, chamadas quarks e glúons, em um estado ligado fortemente. Há aqui uma analogia entre ligações químicas, onde a força entre átomos é derivada da interação eletromagnética entre os elétrons e núcleo dentro do átomo. Assim, a força entre prótons e nêutrons, mediada pelos mésons, é derivada da força nuclear forte em uma maneira análoga em que pontes de hidrogênio — que, por exemplo, mantém a água líquida à temperatura ambiente — é derivada da força eletromagnética. Como bônus, temos um modelo em que as partículas envolvidas (prótons e nêutrons no caso do átomo) têm a mesma natureza que as partículas mediadoras, sendo ambas compostas de quarks e glúons.

Apesar desse argumento heurístico ser atraente, há sérios problemas no tratamento analítico da cromodinâmica quântica como modelo para a força nuclear forte, que inclusive limitou sua adoção quando foi proposta. Hoje, a maior parte da evidência para os argumentos acima vem de estudos computacionais. Mesmo assim, uma prova matemática de que a cromodinâmica quântica tem um estado ligado com massa não nula (o que seria um candidato ao méson pi descrito acima) é um dos Millenium Problems em matemática, e sua resolução vale um milhão de dólares [3].

A força nuclear fraca tem uma história um pouco menos conturbada, e intimamente ligada ao estudo do decaimento beta. Falamos do decaimento beta anteriormente, no artigo sobre neutrinos [5]. A interação teve seu primeiro modelo com o Fermi, que introduziu uma interação envolvendo quatro partículas — na época, o próton, o nêutron, o elétron e o neutrino, mas sem partícula mediadora. Com o entendimento gerado nos anos 64, viu-se que esta partícula mediadora estaria lá, porém em um estado “massivo”, análogo ao fenômeno que ocorre de expulsão do campo magnético em um supercondutor. No final dos anos 60, com Higgs, Englert — agraciados com o prêmio Nobel em 2013 — juntamente com Brout, Guralnik, Hagen e Kibble, se entendeu como uma partícula mediadora “fundamental” poderia adquirir massa, e em 1967, Salam e Weinberg lançaram o seu modelo padrão para as forças nucleares fracas, e postularam a unificação entre a força nuclear fraca e o eletromagnetismo a altas energias. As partículas mediadoras fundamentais são o que chamamos hoje de bósons vetoriais massivos (as partículas W e Z, descobertas em 1983), e o modelo tem um sucesso experimental estrondoso, e foi o assunto de várias dos nossos artigos nesse espaço [6].

Hoje se sabe que a força nuclear fraca tem papel importante, além do decaimento beta, na assimetria temporal do universo. É a única das quatro forças fundamentais que trata partículas e antipartículas de forma diferente. Esta diferença é bem menor que a necessária para se explicar porquê nosso universo tem mais partículas que antipartículas, mas, por enquanto, a força nuclear fraca é a única ferramenta que temos para estudar este importante problema.

Ondas gravitacionais geradas por uma fusão de buracos negros. Apesar de coerente (um comprimento de onda específico, e com mesmo padrão de polarização), o evento gera uma quantidade muito grande de quanta de campo gravitacional, cada um com energia muito pequena para ser medido individualmente. [4]
Curiosamente, em termos de consistência lógica, as forças nucleares (junto com o eletromagnetismo) estão em situação muito melhor que a que iniciou o conceito, a força gravitacional. Neste caso, a mecânica quântica propõe que o quantum de flutuação seria uma partícula, o gráviton, mas aqui temos dois problemas.

O primeiro é que o gráviton não foi detectado experimentalmente. Pior, não há a menor razão dentro da teoria vigente para esperarmos alguma detecção no futuro, salvo alguma coisa inesperada (e excitante). Ondas gravitacionais clássicas foram detectadas pelo LIGO apenas recentemente, e pela frequência das ondas emitidas, o quantum dessas ondas é muito pequeno, da ordem de 10-30 Joules, o que é 10 ordens de magnitude menor que se pode medir mesmo com fótons.

O segundo problema é de ordem teórica: o quantum aparece como valor mínimo para as flutuações. No caso de gravitação, não há nenhuma razão para se pensar que as flutuações reais do sistema correspondem a flutuações da geometria. As tentativas de se usar o procedimento de quantização com estas flutuações de geometria não tiveram sucesso e hoje todas as teorias candidatas se valem de meios indiretos para falar de gravitação, onde a geometria do espaço-tempo aparece como uma descrição efetiva, válida apenas a comprimentos macroscópicos. Talvez o seu quantum não seja nada parecido com uma flutuação de geometria, ou mesmo com o campo gravitacional que conhecemos. Achar a teoria dinâmica que envolva gravitação e mecânica quântica é, afinal, o grande problema da física teórica no século XX, e XXI. Voltaremos a esse ponto em um próximo artigo.

[1] Crédito da imagem: Geek3 (Wikimedia Commons) / Creative Commons (CC BY-SA 3.0). https://commons.wikimedia.org/wiki/File:VFPt_charges_plus_minus_thumb.svg.

[2] Crédito da imagem: Piotr Jaworski (Public domain) / Wikimedia Commons. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:EfektMeisnera.svg.

[3] Clay Mathematics Institute. Millennium Problems. http://www.claymath.org/millennium-problems/yang–mills-and-mass-gap. Acesso em 22 de janeiro (2018).

[4] Crédito da imagem: MoocSummers (Wikimedia Commons) / Creative Commons (CC-BY-SA-4.0). https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gravitational_Waves.png.

[5] Bruno Carneiro da Cunha. Neutrinos: os estranhos do ninho. Saense. http://www.saense.com.br/2016/10/neutrinos-os-estranhos-do-ninho/. Publicado em 03 de outubro (2016).

[6] Bruno Carneiro da Cunha. Polindo o modelo padrão: múons, raios cósmicos e “nova física”. Saense. http://www.saense.com.br/2017/04/polindo-o-modelo-padrao-muons-raios-cosmicos-e-nova-fisica/. Publicado em 06 de abril (2017); Afinal, o quão bom é o modelo padrão de partículas? Saensehttp://www.saense.com.br/2017/03/afinal-o-quao-bom-e-o-modelo-padrao-de-particulas/. Publicado em 06 de março (2017); A matreira quinta força, ou o debate e o método científico. Saensehttp://www.saense.com.br/2016/09/a-matreira-quinta-forca-ou-o-debate-e-o-metodo-cientifico/. Publicado em 05 de setembro (2016).

Como citar este artigo: Bruno Carneiro da Cunha. O caráter de uma força fundamental. Saense.  http://www.saense.com.br/2018/01/o-carater-de-uma-forca-fundamental/. Publicado em 23 de janeiro (2018).

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