Hendrik Macedo
02/06/2018

Colagem de fotos processadas por computador. [1]
Uma mulher sai de um bar depois da meia-noite e entra em seu carro que estava em um estacionamento ao ar livre. Um homem, que possivelmente estivera de tocaia, imediatamente se aproxima, abre a porta do lado do motorista, a agride, a estupra e vai embora em seguida. Após denunciar o ocorrido à polícia, a vítima realiza reconhecimento facial do suspeito, que inclusive apresenta cortes e hematomas em sua mão, compatíveis com o corte e hematoma que a vítima apresentava sobre um dos olhos. Suspeito julgado e condenado, sentenciado a 45 anos de reclusão. Caso de fácil conclusão… salvo que o suspeito era inocente! Após ter cumprido 18,5 anos de sua pena, James Calvin Tillman foi inocentado do crime pelo exame de DNA, não disponível ainda no ano de 1988, quando ocorreu o crime. Desde então, a metodologia de reconhecimento de suspeitos se tornou uma prioridade para a justiça de Connecticut, que já investiu milhões de dólares em seu aprimoramento.

Infelizmente para o Sr. Tillman, não havia câmeras de vigilância ou segurança espalhadas no estacionamento ou na redondeza do crime, que pudesse auxiliar no processo de identificação da face do criminoso por parte de especialistas na tarefa. Para um conjunto não pequeno de investigações em todo o mundo essas imagens são extremamente úteis e podem ser o fiel da balança para um veredito de inocência ou de condenação de um réu. Pela grande importância que a tarefa pode ter na vida de muitas pessoas, uma equipe multidisciplinar de pesquisadores do National Institute of Standards and Technology (NIST) e de três diferentes universidades testaram a acurácia de agentes forenses especialistas em identificação de faces. Este foi o primeiro grande estudo do tipo a medir a acurácia considerando circunstâncias de trabalho em casos reais e seus resultados foram agora no fim do mês de maio de 2018 publicados nos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) [2].

O método de trabalho envolveu um total de 184 participantes dos quais 100 formavam o grupo de teste e 84 o grupo de controle. O grupo de teste eram especialistas forenses na tarefa de identificação de faces, sendo 13 os chamados “super identificadores” (termo atribuído aos especialistas que possuem excepcional capacidade natural). O grupo de controle incluía 53 especialistas em impressões digitais e 31 estudantes de graduação, nenhum deles com qualquer treinamento em comparações faciais. Todos os participantes receberam 20 pares de imagens faciais e classificaram a probabilidade de cada par ser a mesma pessoa em uma escala de sete pontos. A equipe de pesquisa selecionou intencionalmente pares extremamente desafiadores. Os mesmos pares de imagens também foram submetidos a quatro dos mais recentes algoritmos de reconhecimento facial computadorizados já desenvolvidos; tratam-se de quatro redes neuronais convolucionais profundas distintas [3, 4, 5, 6], desenvolvidas entre os anos de 2015 e 2017.

O estudo permitiu se chegar a algumas conclusões importantes sobre o uso da técnica de reconhecimento de face. Uma delas, por exemplo, foi provar que profissionais treinados realmente desempenham significativamente melhor que grupos de controle. Isto é extremamente importante para o sistema judiciário, uma vez que estabelece de fato a capacidade superior dos especialistas treinados e, fornece pela primeira vez, uma base científica para seus depoimentos em juízo. Outra conclusão é a de que a tecnologia atual de identificação computadorizada de face possui níveis de acurácia equivalentes às dos especialistas, às vezes até superiores. Mas a conclusão mais surpreendente obtida pelos pesquisadores é a de que embora combinar os trabalhos de identificação de dois especialistas humanos melhore a acurácia do processo, o maior ganho de acurácia advém do trabalho solitário de um único especialista forense e de seu “parceiro” computacional ideal: a melhor rede neuronal convolucional existente hoje para este fim [6]. Dentre as diversas combinações humano-humano e humano-máquina avaliadas pelo estudo, listo aqui algumas que servem para ilustrar o poder desta rede para a tarefa. Enquanto o desempenho médio obtido dentre os especialistas humanos foi de 93% de acurácia e o obtido pelo grupo de controle foi de 76%, a referida rede neuronal alcançou 96%. A fusão do trabalho de um único especialista humano com a rede neuronal alcançou 100% de acurácia. Resultados próximos foram obtidos apenas com a fusão do trabalho de dois “super identificadores” humanos (98% de acurácia).

O estudo realizado ao longo de três anos de trabalho revelou que humanos e algoritmos computacionais utilizam diferentes estratégias para comparar faces, ou seja, ao se determinar que um rosto numa fotografia é igual ao rosto de uma outra fotografia ou de uma imagem de uma câmera de vídeo, diferentes aspectos da face são priorizados para se chegar a essa conclusão. Mas quais são eles? Qual é a diferença subjacente entre a abordagem humana para reconhecimento de face e a algorítmica? Essa é uma questão tentadora e motivadora para especialistas forenses e cientistas da computação tentarem responder nos próximos anos. O fato é que a combinação de especialistas humanos e Inteligência Artificial não é usada oficialmente em casos forenses do mundo real e, ao menos por enquanto, ficará a critério da sociedade decidir se deve ou não confiar o futuro de algumas vidas humanas presentes no banco dos réus ao depoimento em juízo de um algoritmo superinteligente que adora esconder sua forma de trabalho.

[1] Crédito da imagem: Randallbritten (CC BY-SA 3.0), from Wikimedia Commons. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:FaceMachine_screenshots_collage.jpg.

[2] P Jonathon Phillips et al. Face recognition accuracy of forensic examiners, superrecognizers, and face recognition algorithms. PNAS 10.1073/pnas.1721355115 (2018).

[3] OM Parkhi et al. Deep face recognition. Proceedings of the British Machine Vision Conference, eds Xie X, Jones MW, Tam GKL, pp 41.1–41.12 (2015).

[4] JC Chen et al. Unconstrained face verification using deep CNN features. Proceedings of the IEEE Winter Conference of Appl Computer Vis (WACV), pp 1–9 (2016).

[5] R Ranjan et al. An all-in-one convolutional neural network for face analysis. Proceedings of the 12th IEEE International Conference on Automatic Face Gesture Recognition Gesture Recognition, pp 17–24 (2017).

[6] R Ranjan et al. L2-constrained softmax loss for discriminative face verification. arXiv preprint arXiv:170309507 (2017).

Como citar este artigo: Hendrik Macedo. O grande avanço da “inteligência” na computação forense. Saense. http://saense.com.br/2018/06/o-grande-avanco-da-inteligencia-na-computacao-forense/. Publicado em 02 de junho (2018).

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