Josué Modesto dos Passos Subrinho
30/11/2018

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O tema “O desenvolvimento brasileiro e a profissionalização da administração pública” é daqueles sobre os quais parece haver um largo, porém fraco consenso. Largo porque não provoca divergência entre os mais diversos interlocutores. São poucos os que reclamam abertamente da proposição de que a administração pública precisa ser profissionalizada, que necessita de regras claras quanto à contratação, estruturação de carreiras, normas específicas para progressão, capacitação permanente, demissão e aposentadoria.

Em ambientes mais restritos, contudo, há os que reclamam da excessiva observação por alguns gestores dos aspectos técnicos, faltando a esses uma sensibilidade para as sutilezas do exercício político. Sugere-se que os gestores deveriam ter maior apego a valores que não encontram respaldo em normas legais, e que por vezes podem afrontar princípios legais estabelecidos. Comecemos então levantando esta dúvida, a qual voltaremos depois. Por que, não obstante não encontre forte e clara oposição entre os formadores das tendências da opinião política, a profissionalização da administração pública brasileira ainda parece ser incipiente quando comparada com países mais desenvolvidos? Por que amplos setores da administração pública, mesmo os que demandam forte capacitação técnica, são politizados, partidarizados ao extremo e as demandas por profissionalização da administração pública passa a ser mais popular entre a oposição política do que entre os eventuais detentores dos mandatos políticos? Por ora, podemos concluir que, não obstante largo, o consenso quanto a profissionalização da administração pública brasileira é fraco, visto raramente estar entre as prioridades dos detentores do poder e raramente conquistar corações e mentes da opinião pública.

Evidentemente, é um tema complexo, cujos termos e resoluções tem variado no amplo processo de desenvolvimento da sociedade brasileira. Assim sendo, mesmo com os riscos inerentes a abordagem em um texto curto, entre os quais está a extrema esquematização de conceitos, devemos lembrar que um percurso histórico e o apelo a experiências de outras nações se fazem necessários para qualquer tentativa de estabelecer um raciocínio acerca do tema.

O desenvolvimento brasileiro

A década de 1930 marca importante inflexão no desenvolvimento brasileiro. A superação dos efeitos sobre o Brasil da crise internacional iniciada em 1929 e o redirecionamento do modelo de desenvolvimento econômico com importante participação do Estado no esforço de industrialização, diversificação da base econômica e construção de uma infraestrutura voltada para a consolidação do mercado interno estimularam o surgimento e divulgação de novos estudos e interpretações acerca do Brasil e de seus problemas.

Devemos lembrar que tanto no Brasil quanto em  outros países a democracia liberal fora substituída por regimes autoritários que tinham em comum as crenças no papel dirigente do Estado na resolução dos problemas socioeconômicos e na insuficiência ou incompetência do mercado para prover soluções econômicas que levassem ao bem estar social e, finalmente, na desestruturação do sistema econômico internacional herdado do século XIX,  com crescente protecionismo no comércio internacional, definição de áreas de influência das potências econômicas e o acirramento dos conflitos que culminariam com as duas grandes guerras mundiais.

Nesse ambiente de crescente divulgação internacional do pensamento marxista, decorrente da transformação do Império Russo em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, após a revolução de 1917, Caio Prado Júnior publicou um ensaio pioneiro “Evolução Política do Brasil” [2] com o qual se estabeleceu a que é provavelmente a mais fecunda vertente de interpretação da História Econômica Brasileira. O conceito chave contido no mencionado ensaio é o de sentido da colonização. Segundo Caio Prado Júnior, a colonização brasileira só se compreende como episódio da expansão comercial europeia concomitante ao longo processo de dissolução do modo de produção feudal e de sua transição para o modo de produção capitalista. Esse conceito chave seria posteriormente aplicado por Caio Prado em suas obras históricas mais sólidas: Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia [3] e História Econômica do Brasil [4].

Coube a um dos seus mais importantes discípulos, Fernando Antônio Novais, a melhor explicitação do conceito, sua aplicação e a reanálise da formação Brasileira em seu célebre. “Brasil e Portugal na Crise do Antigo Sistema Colonial” [5]. Partindo do sentido da colonização, Novais, retomando a ideia de Caio Prado, afirma que a colonização europeia das terras do novo mundo, quando derivadas de um projeto estatal, tinha um claro propósito, reforçar a acumulação de capital na metrópole, ou seja, conforme definição de pensadores europeus da época, as colônias existiam para fortalecer o poder da metrópole, para isso e de acordo com o pensamento econômico vigente, o do mercantilismo, as colônias deveriam ter como função produzir matérias primas para o comércio internacional da metrópole.  Entende-se, portanto, a peça chave do sistema colonial: o exclusivo metropolitano, que reservava aos comerciantes da metrópole, como um todo, ou por vezes, a companhias específicas, o direito de comprar e vender para as colônias, vedando-se a concorrência de comerciantes provindos de outras metrópoles europeias.

O sonho mais almejado pelos colonizadores era encontrar riquezas na forma mais pura, ouro e prata, como os felizes conquistadores espanhóis encontraram no México e no Peru e confisca-las de seus proprietários a ferro e fogo. Essas riquezas transferidas para a Europa, fariam a glória das casas reinantes que sufocariam seus concorrentes com a formação de exércitos mercenários, impondo seu poder absoluto aos súditos e ameaçando potenciais rivais.

Raramente ouro e prata foram encontrados em quantidades capazes de suportar seus custos de exploração e das conquistas, outras mercadorias, porém, serviam para o comércio, a começar pelas famosas especiarias das Índias: pimenta, cravo, canela, nós moscada, gengibre etc. Parece sempre estranho aos nossos jovens estudantes de história explicar como pessoas arriscavam suas vidas a procura desses bens supérfluos e caros. A razão é simples, eles eram caros na Europa, exatamente porque raros, porque não podiam ser produzidos localmente, porque seu consumo exprimia status social e eram conhecidos há muito tempo, mas sempre com dificuldade de fornecimento. A epopeia portuguesa da circum-navegação da África tinha como objetivo encontrar uma nova rota para as fontes fornecedoras destas matérias primas, estabelecer a exclusividade do fornecimento para os mercados europeus e, portanto, obter os lucros extraordinários.

A glória da conquista portuguesa estabelecendo a rota marítima para as Índias foi fruto de um árduo e duradouro processo, porém foi efêmera. Novos concorrentes europeus se estabeleceram nas fontes produtoras, antigos comerciantes asiáticos não se submeteram aos desejos monopolistas dos lusitanos e as especiarias começaram a ter preços menores nos mercados europeus e mercadores locais desenvolveram novos jogos especulativos nos quais os portugueses tiveram papel secundário.

Outras mercadorias, porém, surgiam, para manter as correntes de comércio transcontinentais. Pau brasil, tabaco, açúcar e por fim, mas não menos importante, escravos. Esta última “mercadoria” pelo volume de recursos envolvidos, pelas mudanças sociais, pelo incalculável sofrimento humano merece um tratamento especial. Os europeus, no período das grandes navegações, isto é, entre os séculos XV e XVI não mais utilizavam em grande escala trabalhadores escravizados, sendo mais comum o uso dos servos da gleba, mas ao encontrarem nas novas terras conquistadas ou visitadas o comércio de escravos, deles participaram inicialmente como coadjuvantes e posteriormente como principais incentivadores e compradores, especialmente nas costas da África.

A explicação de Fernando Novais para o revigoramento do comércio de escravos e da utilização em larga escala do trabalho escravo africano por europeus nas áreas coloniais está inserida na lógica da colonização visando o lucro comercial. Nas condições do século XVI produzir para o mercado europeu, requeria produzir bens que não concorressem com a produção metropolitana, com os menores custos possíveis e na maior escala de produção possível. Entende-se desta maneira a formação social da colônia portuguesa nesse lado do Atlântico: produção especializada em bens para o comércio português, feita em larga escala, isto é, em latifúndios, utilizando o trabalho escravo africano. Trabalho escravo, porque estava disponível no mercado internacional, nas possessões portuguesas da África, e segundo Novais, os africanos foram preferidos aos indígenas como escravos, salvo nas ocasiões em que as fontes Africanas tiveram dificuldades de fornecer novos escravos, porque este comércio permitia mais uma fonte de enriquecimento da metrópole portuguesa que, inclusive, negociava acordos internacionais para o fornecimento de escravos para as colônias espanholas localizadas na América.

O contraste com outras experiências de colonização explicita as características das colônias fruto da expansão comercial europeia. Tomemos o caso das colônias da chamada “Nova Inglaterra” localizadas no que hoje é a região nordeste dos Estados Unidos. Estas foram fundadas não pela coroa, mas por dissidentes religiosos, fugidos da Inglaterra, trazendo seus bens, seus familiares, seu desejo de construir ou reconstruir um lar no outro lado do Atlântico. Traziam as ideias de questionamento da autoridade real, o desejo de autodeterminação da comunidade e do cultivo de sua própria fé religiosa, independente do Papa e do monarca, para tanto as crianças deveriam ser alfabetizadas para poder ler a Bíblia e ter seu próprio julgamento sobre a palavra de Deus. Essas colônias, ditas de povoamento, em contraste com as de exploração, fruto da expansão comercial e submetidas ao rígido controle metropolitano, tiveram grande desenvolvimento, participando, inclusive do comércio com as colônias de exploração, do Sul do Continente Norte Americano e das Ilhas do Caribe. No século XVIII, como se sabe, entrariam em conflito comercial e político com a Inglaterra e formaram uma república independente, os Estados Unidos da América do Norte.

As colônias de exploração tiveram seu auge no século XVIII e eram fruto de importantes disputas político militares das grandes potências econômicas europeias. Inglaterra, Holanda e França eram as grandes vitoriosas, Portugal e Espanha em relativa decadência ainda mantinham as maiores possessões, mas não retinham a maior parte da riqueza extraída de suas colônias que fluíam por meio do comércio europeu para as novas potências com as quais se aliaram, Portugal com a Inglaterra e a Espanha com a França.

Os últimos vinte e cinco anos do século XVIII colocaram em xeque a manutenção do sistema colonial e do chamado antigo regime na Europa, baseado no poder absoluto dos monarcas, nos privilégios de comércio e de nascimento, na religião de Estado e na tutela deste sobre a sociedade. As ideias filosóficas do iluminismo vinham questionando todos esses valores e seus desdobramentos. Em 1776 as colônias Inglesas da América do Norte declararam-se independentes da metrópole e fundaram uma república com base nas citadas ideias iluministas. Em 1789 irrompe na Franca a revolução que terminaria guilhotinando o rei, a rainha e outras centenas de pessoas, inclusive participantes do movimento revolucionário. Já no início do século XIX Napoleão Bonaparte, empunhando os ideais da revolução derruba várias casas reinantes na Europa, antes de ser derrotado definitivamente.

As colônias europeias da América foram fortemente abaladas por essas movimentações revolucionárias na Europa. A dinastia de Bourbon, então reinante na Espanha foi substituída por Napoleão Bonaparte que ao invadir o País colocou no trono espanhol seu irmão. Esse abalo na metrópole permitiu que em várias regiões americanas dominadas pela coroa espanhola se iniciassem movimentos de Independência, com forte incentivo da Inglaterra. Diante da ameaça de invasão do território português na Europa, a família real e a Corte, fugiram, com o apoio da Inglaterra para o Brasil, em 1808. Segundo muitos estudiosos este fato contribuiu para a peculiaridade do processo de independência do Brasil, quando comparado com o das colônias espanholas. No Brasil foram mantidas a unidade territorial e a monarquia, não obstante muitas tentativas de separação. Decisivo para a monarquia foi o fato de a Independência ter sido comandada pelo príncipe herdeiro de Portugal que aqui permaneceu depois do retorno do rei e da Corte para Portugal.

É comum se atribuir pouca importância econômica à independência do Brasil, uma vez que segundo esta interpretação teria havido apenas a substituição de uma potência dominante decadente, Portugal, que exercia diretamente o poder sobre o Brasil, por uma potência hegemônica que passaria a exercer o poder de forma indireta. Mesmo que aceitemos que há de fato uma nova potência a exercer influência sobre os destinos da nova nação, há que se reconhecer que a independência política traz efeitos econômicos importantes. A organização de um estado nacional livra em primeiro lugar a obrigação de pagar tributos que seriam gastos na metrópole ou em outras regiões do domínio. Em tese todos os recursos arrecadados seriam gastos no próprio território. Há o fato de que a nova nação herdou uma considerável dívida externa, negociada com a Inglaterra, no processo de reconhecimento da independência política, para saldar compromissos do antigo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, portanto, parte da arrecadação continuou fluindo para o exterior. A estruturação de um sistema monetário nacional, seria, contudo, de grande importância, assim como a administração da política comercial exterior, a construção da legislação e das instituições nacionais.

Coube a João Manoel Cardoso de Mello, outro pensador filiado à corrente estabelecida por Caio Prado Júnior, detalhar certas passagens em etapas críticas da formação econômica brasileira [6]. Além de ressaltar a descontinuidade econômica que a independência política propiciou com a estruturação de uma economia mercantil-escravista, o autor desenvolve outro ponto importante a superação do trabalho escravo. Aqui o autor parte das análises da chamada escola de sociologia da USP, cujos principais integrantes são Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni e Emilia Viotti da Costa. Esta escola tem em comum uma ideia anteriormente desenvolvida por Karl Marx e Marx Weber da difícil coexistência do trabalho escravo com o capitalismo desenvolvido, especialmente o que adquire a lógica industrial. Em suma, tentam explicar a irracionalidade de comprar o trabalho pela vida inteira, que representa a compra do escravo, quando se pode comprar conforme a necessidade do capitalista, através do trabalho assalariado. Evidentemente há que se demonstrar que surgiram condições históricas que formam uma imensa classe de pessoas duplamente livres. Livres porque não têm qualquer obrigação legal ou costumeira com algum senhor e livre porque não possuem meios de produção, meios de sobrevivência que não seja a venda de sua força de trabalho, o assalariamento. A análise de João Manoel Cardoso de Mello da economia escravista exportadora, tomando como exemplo a cafeicultura do Oeste Paulista, é que ela teve enorme sucesso, conquistando e ampliando o mercado internacional desta mercadoria, se expandindo sobre uma fronteira agrícola parcialmente aberta, fomentando a construção da infraestrutura, portos, ferrovias, armazéns, beneficiadoras do café etc. e encontrando uma barreira representada pelo uso do trabalho escravo, o qual tornava difícil a importação de trabalhadores livres estrangeiros e brasileiros. A tensão se resolve com a abolição da escravidão, a proclamação da república, a imigração massiva de trabalhadores livres estrangeiros, especialmente italianos e um novo boom cafeeiro que se desdobraria em crescimento da infraestrutura e diversificação industrial.

Segundo João Manoel Cardoso de Mello [6], 1930 é outro marco importante, representando o fim da hegemonia econômica dos exportadores e iniciando o processo de industrialização do Brasil, inicialmente sob a situação de industrialização restringida, até 1956, quando a industrialização está condicionada e é fortemente afetada pelas oscilações do mercado internacional de comodities, particularmente o café, visto que o fornecimento da matérias primas industriais, combustíveis e bens de capital dependem essencialmente da importação.

Esta situação seria alterada após o intenso período de industrialização 1956-64, quando as próprias bases da industrialização teriam sido internalizadas com a implantação das chamadas indústrias pesadas: siderurgia, mecânica pesada, refino de petróleo, automobilística, química pesada, enfim, indústria produtora dos bens de capital e matérias primas industriais. A partir de então a lógica essencialmente capitalista de acumulação, isto é, a rentabilidade prevista confrontada com o retorno previsto da aplicação financeira pura determinaria a taxa de investimento e, portanto, de crescimento econômico.

Esse é o panorama de um grande otimismo acerca da economia e da sociedade brasileira refletindo o imenso sucesso alcançado no período 1930-1980, quando o Brasil esteve entre os países de maior crescimento econômico de longo prazo, e se alimentava a certeza de que seria a próxima potência econômica mundial.

A crise econômica internacional iniciada no início dos anos 1980, com a forte elevação dos preços do petróleo, aumento das taxas de juros internacionais, crises da dívida externa dos países emergentes, moratórias de dívidas soberanas etc., teria forte impacto no Brasil, inclusive com a erosão do regime militar instalado em 1964 e sua substituição pela chamada Nova República, consolidada com a Constituição Federal de 1988. Em contraste com o período 1930-1980 o período que se segue até hoje foi caracterizado por taxa de crescimento econômico baixa acompanhada de melhorias nas políticas e indicadores sociais, em boa parte impulsionadas pelo funcionamento do novo regime democrático. A indagação que paira é se o Brasil teria ingressada na situação descrita como armadilha da renda média, isto é, a um impulso desenvolvimentista segue-se a geração de novas condições que dificultam a acumulação de capital antes de o país ter alcançado o nível de renda per capta comparável ao dos países mais avançados.

A administração pública no Brasil

É possível que vocês tenham percebido que até aqui não tenhamos mencionado a administração pública e o seu papel. A razão é muito simples, estamos seguindo uma escola de pensamento que não concede qualquer relevância a administração pública. No limite poderíamos dizer que para a referida escola, a administração pública faz parte da superestrutura, a qual é fortemente determinada pela estrutura econômica, estando, portanto, no nível dos epifenômenos, merecendo no máximo um caráter descritivo.

Há, contudo, outra abordagem, com prestigio crescente no mundo e no Brasil, de corte institucionalista, que correlaciona fortemente o desenvolvimento das instituições ao próprio funcionamento da economia. Neste caso, se diz que a economia não existe em abstrato, mas está imersa num mundo de costumes, crenças, contratos e regras, as quais quanto mais se consolidam mais reforçam certos comportamentos, os quais podem ser indutores ou inibidores do crescimento econômico.

“Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro” [7], de Raymundo Faoro, publicado em 1958, consolidou entre nós esta abordagem. Seguindo a tradição dos grandes interpretes do Brasil, Raymundo Faoro remete à formação de Portugal e a sua influência no Brasil um papel determinante em todas as etapas históricas subsequentes. Inicialmente descreve a precoce centralização do Estado nacional português em seu processo de reconquista das terras ocupadas pelos mouros que terminou dando uma proeminência da casa real sobre os demais senhores de terra que obtiveram seus domínios participando das campanhas em que o Rei era o comandante. Algum tempo depois, Portugal afirmou sua independência, no contexto da Península Ibérica e passou a se dedicar à navegação, à pesca e ao comércio, especialmente após a ascensão ao poder da Dinastia de Avis, que se celebrizaria pelas grandes navegações. Em Portugal, nessa época se plasmaria uma nova formação social, com o Rei centralizando recursos para uma empreitada gigantesca, a navegação e conquista de praças comerciais nas costas da África e a procura pela expansão da fé cristã. Há, portanto, uma amálgama de razões religiosas e comerciais, comandadas pela casa real, nas conquistas portuguesas, realizadas por comerciantes, nobres guerreiros e padres. A centralização do poder, o acesso a riquezas e o impulso comercial fez surgir uma categoria social denominada por Faoro de “estamento burocrático”, que se apresenta “como árbitro do país, de suas classes, regulando materialmente a economia, funcionando como proprietário da soberania. As demais estratificações, classes ou estamentos são por ele condicionados, carecendo de valor simbólico próprio.”

A tese do autor é que este estamento burocrático foi transferido de Portugal para o Brasil e condicionou toda a nossa história tolhendo toda a autonomia das iniciativas, das classes e do povo como um todo. Para isso é crucial o desenvolvimento de conceitos como o de patrimonialismo, isto é, a dificuldade de entender os limites entre o patrimônio e os interesses públicos e privados. A centralização da casa reinante em Portugal levou ao desenvolvimento de uma camada de servidores, reunidos na Corte que tratavam da ampliação do patrimônio do Rei, que não se diferenciava do patrimônio nacional. Esta camada de servidores reais é o embrião do estamento burocrático, dedicado ao crescimento da casa real esperando dela receber as recompensas, em termos de cargos, honrarias e pensões.

Nesse ambiente, a ideia de república, isto é, a ideia de um interesse e patrimônio públicos, separados do patrimônio e do interesse privado, a ideia de que todo o cidadão, além de cuidar de sua vida privada, tem obrigações com a república, devendo servi-la, originada na Roma antiga, desenvolvida nas cidades Italianas na época do Renascimento e retomadas pelo Iluminismo apresenta-se como algo muito estranho. Para diversos observadores da realidade brasileira, isto parece algo como ideias fora do lugar. O mais aclimatado para a nossa sociedade pareceria ser algo que misturasse a dependência pessoal em relação ao chefe, ao líder, ao comandante, a formação de algum sentimento de pertencer a uma tribo especial de servidores do líder, ao qual se serve e do qual se espera proteção e participação nas conquistas de poder e riqueza.

Mas por que Faoro diz que este estamento, que incorpora o patrimonialismo com algo a ser defendido e do qual se espera benefícios é também burocrático? Aqui ele destaca o papel dos estudos das leis e o preferencial recrutamento das elites deste estamento entre os seus estudiosos. Destaca aqui o papel da Universidade de Coimbra na formação da elite do estamento português e, posteriormente brasileiro. Uma pequena observação, além do que mencionamos sobre a singularidade do processo de Independência do Brasil que manteve a unidade territorial, diferentemente do ocorrido na América Espanhola, muitos observaram o papel da Universidade de Coimbra na unificação da formação da elite dirigente de Portugal e Brasil. Na América Espanhola, ao contrário, as elites locais foram formadas em torno das diversas universidades hispano-americanas que tinham em comum apenas o ressentimento em relação às elites da metrópole.

Para Faoro, portanto, é o estamento burocrático que conduz o processo de independência do Brasil, em torno do Príncipe Português, que lida com a estruturação da nova nação, que forma a nova burocracia pública nacional, que organiza as forças armadas e policiais, que impõe a ordem a um povo indisciplinado, que negocia a abolição da escravidão e a proclamação da república e que tem novo impulso com a ascensão de Getúlio Vargas e dos tenentes que derrubaram a Primeira República.

Com a ascensão de Getúlio Vargas e dos tenentes que vinham desde os anos 1920 tentando derrubar a República Velha, como vimos, a economia brasileira passa por grandes mudanças e inicia um longo ciclo de crescimento econômico e mudanças sociais. O próprio estado brasileiro foi reformatado. O regime autoritário que se consolidou em 1937 com o “Estado Novo” eliminou as eleições e outras instituições da democracia liberal. Um estado mais forte, centralizado e com aspirações de planejar a industrialização do Brasil foi-se conformando. Entre as inovações de Vargas, destacam-se a Consolidação das Leis do Trabalho, criando um conjunto de garantias para os trabalhadores, o controle político dos sindicatos, através do Ministério do Trabalho, a criação dos institutos de previdência e assistência social e, finalmente, a reestruturação administrativa através da criação do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP).  Este introduziu ou consolidou vários princípios da administração pública no Brasil, como a ideia de seleção dos servidores através de concurso público, em lugar da indicação política, a padronização de procedimentos administrativos e contábeis, a criação ou reestruturação das carreiras de serviço público e, finalmente, a tentativa de criação da figura da administração pública indireta, exercida por autarquias, organismos com relativa independência da administração central, voltados para a intervenção em setores econômicos importantes ou para o fomento da infraestrutura. Estes seriam dotados de fontes próprias de recursos e objetivos de longo prazo a serem perseguidos, a exemplo do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, Instituto Brasileiro do Café, Instituto do Açúcar e do Álcool, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Ao lado dessas autarquias, companhias estatais, como a Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco, Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social etc., completavam o espectro de intervenção, planejamento e fomento econômicos. Esses seriam o locus privilegiado para a consolidação da versão atualizada do estamento burocrático que sempre pretendeu representar o interesse nacional, de certa forma tutelando a sociedade com o apoio direto ou em indireto, das forças armadas.

A derrubada de Getúlio Vargas pelos militares, em 1945, acompanhando o clima internacional de recuperação do prestígio da democracia e a derrota dos regimes autoritários levou a um novo equilíbrio entre o poder do estamento burocrático e o do poder político eleito. As novas instituições democráticas deveriam controlar todo o aparato estatal, mas parece ter havido algum tipo de equilíbrio em que alguns setores duros se mantiveram sob a influência do estamento burocrático, se eximindo de prestar contas e mesmo de se submeter as orientações gerais dos detentores do poder político, enquanto outros entravam na barganha por cargos, recursos e influência demandados pelos detentores do poder político. Assim, enquanto algumas ilhas de excelência se mantinham ao largo das práticas políticas corriqueiras outras eram objeto de loteamento explícito, ficando em segundo plano seus objetivos institucionais.

O longo ciclo desenvolvimentista brasileiro, de 1930 a 1980 apresentou alternâncias de regimes representativos e regimes autoritários. Nos dois períodos autoritários, a ditadura Vargas, 1937-1945 e no regime militar 1964-1985, os organismos mais afeitos ao estamento burocrático se fortaleceram. No regime de 1964, uma reforma administrativa fortaleceu a administração indireta, através das autarquias, autarquias especiais, empresas estatais e fundações. Em um contexto de recuperação da capacidade de investimento do Estado, de frágeis controles institucionais pelo poder político e praticamente ausência do controle social o estamento burocrático pode impor seu projeto de nação. É típico do período o gigantismo dos projetos, como por exemplo, interligar o país através de micro-ondas, tecnologia de ponta, na época, viabilizando um salto nas telecomunicações, as pretensões do programa nuclear, dos gigantescos empreendimentos hidrelétricos, da malha rodoviária nacional e como síntese, o II Plano Nacional de Desenvolvimento, do Governo Geisel que deveria transformar o Brasil na primeira superpotência do hemisfério Sul. Chamou a atenção de vários analistas da época essa proeminência do estamento burocrático, recebendo novos nomes como tecnoburocracia estatal, burguesia estatal ou anéis burocráticos. Todos chamavam a atenção para o aparente desmedido poder dos dirigentes de órgãos que ganharam moto próprio, que por vezes se dedicavam mais aos interesses dos seus empregados que aos supostos interesses institucionais, da imensa capacidade de vetar iniciativas, visto que em geral eram monopólios de fato ou de direito e da pouca transparência na gestão, visto que sempre se podia apelar para a salvaguarda da segurança nacional para não prestar contas aos frágeis órgãos de controle então existentes.

Neste ambiente, quando o regime militar começa a apresentar sinais de exaustão, quando a performance econômica não mais parecia capaz de assegurar a continuidade de um longo e sustentável crescimento econômico, surgem as campanhas para privatização de empresas estatais, ou de seu controle pelo Estado, visto que paradoxalmente, não estavam sob controle real das autoridades centrais e de críticas aos ganhos supostamente excessivos de certos ramos do funcionalismo público, das mazelas sociais geradas pelo próprio crescimento econômico, como por exemplo, a insuficiência da infraestrutura urbana, a imensa concentração de renda, e por fim, a falta de liberdades políticas e civis.

Como se sabe, o longo processo de transição do regime militar para a democracia passou pela anistia política que envolveu os dois lados, isto é, os agentes da repressão política, mesmo que torturadores, também foram anistiados, a retomada das eleições para prefeitos de capitais e outras cidades consideradas áreas de segurança nacional e a eleição direta para governadores, a eleição indireta para Presidente da República, visto ter sido derrotada no Congresso Nacional a emenda constitucional restituindo a eleição direta para Presidente e, finalmente, a convocação de eleições para o Congresso Nacional com a missão de elaborar uma nova constituição, que foi finalmente promulgada em 1988.

A nova constituição de certa forma reflete as críticas ao regime autoritário de 1964. Foi concebida a partir da ideia de um regime parlamentarista, que pressupõe o estabelecimento de burocracias de estado fortes na condução da rotina administrativa e papel definidor das diretrizes políticas pelo parlamento que sustenta um governo que lhe deve prestar contas e aos diversos órgão de controle e, como instância final a sociedade civil. A questão da mudança do regime de presidencialista para parlamentarista e de república para monarquia, foi submetida a plebiscito, sendo a república presidencialista vencedora, dando continuidade ao que é chamado no Brasil o Presidencialismo de coalizão.

O frágil governo Sarney terminou com a eleição de Fernando Collor, que trazia um novo paradigma, tendo em vista a aceleração dos acontecimentos no âmbito internacional, o muro de Berlim caíra e com ele o mundo socialista, a União Soviética começava o seu desmoronamento, uma nova onda liberal varria o mundo, os tradicionais partidos socialistas e socialdemocratas atualizavam seus programas em resposta ao desafio proposto por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra.

O governo Collor desaponta seus eleitores com medidas drásticas, como o bloqueio dos recursos depositados em aplicações financeiras, inclusive na popular caderneta de poupança, sem ao final conseguir debelar a alta inflação que vinha assolando o país de forma crescente desde o início dos anos 80 e, principalmente, com denúncias de fortes esquemas de corrupção. Ao final, sofreu um processo de impeachment sendo substituído pelo Vice-Presidente da República, Itamar Franco para completar o mandato.

No Governo Itamar Franco, sob o comando do Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, se elabora um plano econômico, o chamado plano real, que finalmente debela o processo hiperinflacionário e proporciona a eleição do ex-ministro da fazenda para o cargo de Presidente da República.

Debelado o processo inflacionário, o novo governo pode começar a implementar reformas para tentar a retomada do processo de crescimento econômico brasileiro, frequentemente interrompido por crises externas e surtos inflacionários, cada vez mais graves. Parte da agenda de reformas refletia a evolução internacional, no sentido de menor ativismo estatal, emulado tanto pela crítica liberal ao papel danoso da intervenção estatal na liberdade e na eficiência econômica quanto na necessidade de conter os gastos públicos pressionados pelo permanente crescimento de despesas, entre as quais as previdenciárias e da assistência social.

O ponto que nos interessa mais de perto é a proposta de reforma do Estado. O ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, inspirado na experiência de reforma do estado feita na Inglaterra a partir da administração da Primeira Ministra Margareth Thatcher, propôs uma reforma assemelhada para o Brasil. Na Inglaterra a feroz crítica ao intervencionismo estatal e a constituição de um imenso setor produtivo estatal foi fortemente combatido pelo partido conservador, com propostas de privatização em larga escala e reformas na administração pública que teria se tornado o reino da burocracia, da ineficiência, do desrespeito ao cidadão comum, etc. Após a privatização de grandes empresas estatais, o governo britânico procurou dar maior eficiência aos serviços públicos, entre os quais os de saúde, educação, cultura e assistência social. A primeira abordagem previa a simples privatização desses serviços, no fim se chegou a um consenso de manutenção desses serviços como áreas de atuação do Estado, em alguns casos, com crescimento de despesas, incorporando-se as ideias de averiguação da eficiência, satisfação do cidadão e reforço na transparência dos objetivos institucionais e dos meios a serem utilizados para a obtenção desses objetivos.

No Brasil pode-se dizer que parte da reforma, inspirada no exemplo Britânico seria parcialmente implementado nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso [8]. Uma primeira parte foi a constituição de agências públicas para regulação e acompanhamento das concessões públicas, em boa parte anteriormente ocupadas por empresas estatais. Assim a constituição da Agência Nacional das Telecomunicações, Agência Nacional do Petróleo, Agência Nacional da Energia Elétrica, Agência Nacional dos Transportes Terrestres, Agência Nacional dos Portos etc., preparam o Estado para seu papel de regulador, e avaliador do desempenho dos setores de interesse público, mas que não eram mais monopólios estatais ou estavam sendo preparados para a concessão para investidores privados. De certa forma, se reconhecia que mesmo quando eram explorados por empresas estatais, o interesse do consumidor ou do cidadão não necessariamente estava em primeiro plano. Se não houver uma agência estatal, independente dos interesses das empresas do setor, o cidadão comum, o consumidor fica indefeso perante o enorme poder que têm essas empresas.

Há certamente a questão crucial de manter a independência da agência em relação aos grandes interesses econômicos com que lidam. A experiência internacional já havia alertado para a importância da capacitação técnica e independência política dos agentes reguladores. No Brasil, começou-se a tentar repetir esses padrões de independência e capacitação com graus variados de sucesso.

A segunda parte da reforma seria a identificação do núcleo duro de governo, que deveria ser exercido pelas carreiras típicas de estado: defesa nacional, segurança pública, serviços judiciários, advocacia pública, fisco, relações internacionais, por exemplo.

Em seguida a definição de funções públicas que podem ser exercidas diretamente pelo Estado ou através da contratação de instituições de direito privado, como os serviços de educação, saúde e cultura e assistência social, que geralmente são os que mais empregam e que em vários momentos contou com força de trabalho não estável e sem o status de servidor público. A Constituição de 1988 havia convertido todos esses prestadores de serviços em funcionários públicos, independentemente da forma de ingresso no serviço público.

Finalmente, haveria as funções que não deveriam ser exercidas por servidores públicos, devendo o Estado contratar no mercado a prestação desses serviços. Seriam os casos de limpeza e manutenção predial e de veículos, vigilância, serviços de informática e serviços especializados, contratados temporariamente como consultorias, por exemplo.

A reforma proposta foi parcialmente implementada, em meio a forte oposição política no parlamento e no movimento sindical, inclusive dos servidores públicos. A reforma previdenciária proposta por Fernando Henrique Cardoso terminou sendo aprovada numa versão muito pouco abrangente e a reforma administrativa só muito parcialmente também. Foi mantida a estabilidade dos servidores públicos, não se permitiu a transformação de entidades públicas, como autarquias e fundações em entidades de direito privado, assim os setores de prestação de serviços públicos continuaram em grande parte oferecido por instituições públicas, por vezes pela administração direta e as novas instituições de direito privado que fornecem serviços públicos continuaram em situação dúbia, mas de uma maneira geral não se expandiu fortemente suas áreas de atuação como era o previsto.

A alternância democrática do poder, com a eleição do Presidente Luiz Inácio da Silva marcou um abandono parcial da estratégia reformista advogada pelo governo anterior. De um lado, havia críticas ao papel das agências reguladoras, alegando-se a proeminência da legitimidade conferida pelo voto popular aos detentores do poder político. De outro, o funcionamento do chamado Presidencialismo de coalizão que tem se caracterizado pela pequena presença do partido ou coligação que elege o Presidente da República no Congresso Nacional leva ao exercício de barganhas na conformação dessas agências através da concessão da influência da base parlamentar na designação dos dirigentes das agências ou na sobreposição das competências dos Ministérios setoriais com as das agências reguladoras.

No meio das crises políticas que temos vivido nos últimos anos, alguns avanços importantes ocorreram: de um lado o fortalecimento dos órgãos de controle tolheu muito do voluntarismo no uso dos recursos públicos que caracterizou períodos importantes da história brasileira, de outro lado, mudanças legislativas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei de Acesso à Informação, a Lei da Ficha Limpa, a Lei das Estatais etc., colocaram um novo patamar para o exercício do poder político.

Quero concluir com alguns pontos mais objetivos, com o intuito de avaliar o quanto avançamos na profissionalização da administração pública no Brasil e o quanto ainda nos falta avançar, tendo em vista experiências mais exitosas.

Conclusões

Como estou diante de futuros Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental gostaria de lembrar que nós gestores, mesmo os alçados pelo meritório meio do concurso público, não detemos a legitimidade da definição das prioridades da administração pública. Nas democracias cabe exclusivamente aos portadores dos mandatos eletivos a definição, por delegação popular, das diretrizes máximas aos quais todos estamos submetidos. Recentemente o economista Marcos Lisboa deu um grande exemplo de prudente contenção ao desqualificar a preocupação da imprensa em ouvir os supostos economistas dos candidatos a Presidente da República, como se eles tivessem a chave do nosso futuro econômico. Marcos Lisboa disse que não obstante a formação cada vez mais complexa que se espera dos economistas, suas tarefas são relativamente simples, já que as grandes discussões, as grandes negociações são conduzidas politicamente, não há outra forma, e depois de concluídas cabe aos técnicos a execução. Um pouco jocosamente ele compara isso ao trabalho de administrar o lar, cuidar das contas, da manutenção da casa, da prevenção das doenças, levar as crianças para a escola. Um pouco caricato, mas verdadeiro, lembrem-se, alguém terá o mandato popular para definir o que faremos.

Se nós não encontramos um sinônimo consensual para accountability é porque o conceito não foi fortemente incorporado ao nosso cotidiano. A ideia tão óbvia em outros países que os que gerenciam recursos alheios, sejam eles do Estado, do condomínio, do clube ou da Igreja são responsáveis pelo bom uso e que têm de prestar contas aos representantes dessas comunidades e, portanto, os procedimentos e os registros dos fatos são meticulosos e claros para qualquer interessado, ainda nos parecem, por vezes, estranhas formalidades ou embaraços para a feitura de bons negócios.

Conta-se que um antigo professor de medicina recebia os novos alunos com a seguinte mensagem: “Ao ingressarem nessa profissão duas portas se fecharam para vocês: a da pobreza e a da riqueza. Espero que encontrem a realização em nossa nobre profissão”. Acredito que o mesmo se aplica aos gestores públicos. Certamente não serão pobres, tendo em vista o padrão de distribuição de renda brasileiro, mas não devem aspirar a riqueza, não com o exercício da profissão. É uma das conquistas de nossa sociedade que todos saibam quanto ganhamos, quanto eles nos pagam. Há muitas formas legítimas de obter a riqueza numa sociedade capitalista como a nossa, mas estão no mundo privado, espero que vocês se realizem na carreira que escolheram.

Há muitos mal-entendidos no Brasil acerca da República. Os cientistas políticos há muito dizem que a virtude monárquica é a honra e a virtude republicana é o civismo.  Entre nós o civismo foi confundido, e a confusão está sendo atualizada, como um culto vazio aos símbolos da pátria. Na realidade o civismo é o culto ao interesse comum, às regras que permitem uma boa convivência na sociedade, que promovem a segurança e a realização de todos. A procura pelo aperfeiçoamento do convívio social, da compreensão e observação das regras sociais leva ao civismo e isto é inseparável da República. Uma república que promete direitos, que existe para ampliá-los, mas não cobra impostos, que não impõe limites ao exercício da liberdade privada, que não demanda a colaboração de todos os cidadãos não pode ser fonte do bem comum, não pode ser República. Nós servidores públicos devemos ser os primeiros a entender as necessidades da República.

Mencionamos no início do texto que a profissionalização da administração pública é uma demanda mais frequente entre os opositores do que entre os detentores do poder político e que ela não consegue conquistar simpatias muito ampliadas na opinião pública. Isto se deve ao fato de que o Brasil tem uma grande parte da população com renda muito baixa, para esses os vencimentos dos servidores públicos, especialmente das carreiras especializadas são muito elevados e, no entender, de boa parte deles, injustificados. Periodicamente as campanhas políticas contra o funcionalismo adquire alguma popularidade. Da Maria Candelária, alta funcionária que caiu na letra O, marchinha da era Vargas aos marajás de Fernando Collor, sempre houve uma campanha detratando os servidores públicos de uma maneira genérica. Certamente há algo de real a alimentar a ira popular: negligência, baixa produtividade, paralizações de serviços, falta de transparência etc. Para os padrões praticados nos países desenvolvidos ou quando comparamos a qualidade de serviços prestados pela iniciativa privada, por vezes com as mesmas pessoas, é de se admitir que ainda há um longo caminho para atender as expectativas justas dos nossos patrões, o cidadão comum.

O meu propósito não é esboçar um manual de boas práticas ou de dar conselhos a quem não solicitou, portanto, acho que podemos ficar por aqui, nesse aspecto. Mas para concluir de forma menos deprimente para vocês que estão adentrando de uma forma tão brilhante no serviço público estadual, lembraria um outro aspecto, por vezes negligenciados pelos críticos. Estamos diante da força de trabalho mais qualificada produzida por nossa sociedade, além disso, ainda é possível na administração pública, ao contrário de em outras atividades, conseguir um processo contínuo de qualificação formal ou informal. Os que mantém um permanente interesse e curiosidade acerca da ampliação dos conhecimentos têm aqui um bom ambiente de trabalho e de estudos, novamente, espero que a carreira que vocês abraçaram proporcione muitas oportunidades de realizações para cada um. [9]

[1] Crédito da imagem: geralt (Pixabay), CC0 Creative Commons. https://pixabay.com/en/hand-finger-show-touch-success-577356/.

[2] Caio Prado Júnior. Evolução Política do Brasil. Brasiliense (1933).

[3] Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense (1942).

[4] Caio Prado Júnior. História Econômica do Brasil. Brasiliense (1945).

[5] Fernando A Novais. Brasil e Portugal na Crise do Antigo Sistema Colonial. Hucitec (1979).

[6] João Manoel Cardoso de Mello. O Capitalismo Tardio. Contribuição à revisão crítica da formação e desenvolvimento da economia brasileira. Brasiliense (1982).

[7] Raymundo Faoro. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. Globo (1958).

[8] Cláudia Costin. Administração Pública. Campus (2010).

[9] Texto de palestra apresentada na abertura do Curso de formação de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, na Universidade Federal de Sergipe, em 05 de outubro (2018).

Como citar este artigo: Josué Modesto dos Passos Subrinho. O desenvolvimento brasileiro e a profissionalização da administração pública. Saense. http://saense.com.br/2018/11/o-desenvolvimento-brasileiro-e-a-profissionalizacao-da-administracao-publica/. Publicado em 30 de novembro (2018).

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