Antônio Murilo Macedo
14/04/2019

Foto ilustrativa de uma máquina térmica de Stirling. [1]

Vivemos rodeados por máquinas. Usamos máquinas para transportar bens e pessoas, refrigerar ambientes e alimentos, cozinhar, costurar, medir o tempo e fazer tantas outras coisas que seria uma tarefa enfadonha e inútil enumerar tudo. Tendo isto em mente, é difícil imaginar que nem sempre foi assim. Até o final do século 17, o uso da tração animal (cavalos e bois) era o principal meio tanto para o transporte de bens e pessoas, quanto para a execução de trabalho pesado na mineração e na agricultura. Apenas com a revolução industrial do século 18 é que inovações tecnológicas, como a máquina a vapor, foram gradualmente substituindo os equipamentos movidos à tração animal. A termodinâmica clássica surgiu neste período como uma ferramenta conceitual chave para analisar e melhorar o desempenho das máquinas a vapor, que no início eram lentas e ineficazes. Em média, as primeiras máquinas usavam menos de 2% do combustível disponível para realização de trabalho útil. O restante era simplesmente desperdiçado.

Os dois conceitos centrais da termodinâmica clássica são energia e entropia. A energia é essencialmente um recurso, algo similar a dinheiro em transações comerciais. Existem várias formas de energia (mecânica, térmica, elétrica, magnética, química, etc.), dependendo de como ela se manifesta em um dado sistema físico. A primeira lei da termodinâmica estabelece que energia se conserva em processos termodinâmicos. No entanto, nada impede que ela seja convertida de uma forma em outra ou até mesmo transferida de um lugar para outro, desde que a energia total do sistema + ambiente fique constante. A entropia é uma espécie de medida de desordem. Por exemplo, se você pegar um maço de cédulas que estavam em sua carteira e atirar para o alto, você estará transformando um estado de baixa entropia (cédulas na carteira) em um estado de alta entropia (cédulas no ar). A segunda lei da termodinâmica estabelece que processos termodinâmicos espontâneos em sistemas físicos isolados nunca levam o sistema para estados de menor entropia. Há, portanto, uma espécie de seta do tempo associada à termodinâmica que estabelece o sentido temporal dos processos. Nascemos jovens e morremos velhos, uma cerveja fria em uma sala quente esquenta com o tempo, etc.

Um dos resultados mais importantes da termodinâmica é o limite de Carnot para a eficiência de uma máquina térmica. Uma máquina térmica é essencialmente um dispositivo que opera entre dois reservatórios térmicos. A eficiência de uma máquina é definida pela razão entre o trabalho útil realizado e a energia recebida em cada ciclo de operação da máquina. O engenheiro francês Nicolas L. Sadi Carnot estabeleceu em 1824 que uma máquina térmica ideal operando entre dois reservatórios de temperaturas T1 e T2, com T2 > T1, tem rendimento dado por r = 1 – (T1/T2), que obviamente é sempre menor que 1. Portanto, segundo Carnot, nenhuma máquina térmica real jamais poderia operar com um rendimento acima deste valor de r, pois isto violaria a segunda lei da termodinâmica. Este resultado profundo ilustra de forma contundente a importância da análise conceitual, mesmo quando objetivamos resultados de valor prático.  Qualquer projeto que prometa um rendimento superior ao da máquina ideal de Carnot pode ser imediatamente descartado por violar a segunda lei da termodinâmica. Os enormes sucessos da termodinâmica em suas mais diversas aplicações deram a ela um status de teoria superior. O próprio Albert Einstein mostrou sua admiração pela termodinâmica ao dizer que “..se sua teoria se mostrar em conflito com a segunda lei da termodinâmica, eu não lhe dou nenhuma esperança, não há nada para ela a não ser o colapso na mais profunda humilhação”.

Além de todo sucesso empírico, a termodinâmica clássica sobreviveu incólume às duas revoluções conceituais mais profundas que ocorreram na física do século XX: a teoria da relatividade e a teoria quântica. No entanto, mais recentemente resultados teóricos e experimentais estão trazendo evidências de que existe um regime quântico também para a termodinâmica. Esta emergente área recebeu o nome de termodinâmica quântica e tem entre seus objetivos estabelecer os fundamentos conceituais para o funcionamento de máquinas quânticas, ou seja, dispositivos suficientemente pequenos para que as leis da mecânica quântica governem sua dinâmica. O principal desafio desta teoria é mostrar que recursos puramente quânticos, como superposição de estados e emaranhamento, podem gerar efeitos mensuráveis em grandezas termodinâmicas, como o trabalho realizado pelo dispositivo.

Em um artigo recente [2], uma equipe de cientistas do Reino Unido, da Suíça e de Israel demonstrou experimentalmente que de fato existem efeitos quânticos observáveis em grandezas termodinâmicas na operação de máquinas térmicas quânticas. Mais especificamente, eles mostraram que no regime de pequena atividade uma máquina térmica quântica gera mais potência que a similar clássica nas mesmas condições. Além disso, eles verificaram que neste mesmo regime diferentes tipos de máquinas térmicas quânticas são termodinamicamente equivalentes. O sistema físico usado para implementar a máquina térmica quântica foi um conjunto de defeitos do diamante cristalino, denominados centros de nitrogênio e vacâncias. O estado fundamental de cada centro tem três estados de spin que podem manter coerência por um longo tempo mesmo em temperatura ambiente. Excitações óticas foram usadas para simular o efeito de um acoplamento do sistema a reservatórios térmicos, modificando desta forma a população dos estados. Finalmente, uma interação com um campo de micro-onda foi usada para fazer o sistema executar trabalho. A evolução temporal unitária devido a este campo externo produziu superposições coerentes de estados de energia, colocando assim o dispositivo no regime quântico.

A principal contribuição do trabalho foi ter apresentado a primeira verificação experimental de que efeitos puramente quânticos podem ser observados em grandezas termodinâmicas. Obviamente, muita coisa ainda precisa ser feita para que tenhamos máquinas térmicas quânticas substituindo as correspondentes clássicas na realização de tarefas relevantes para a vida moderna. No entanto, toda revolução tecnológica começa com um pequeno avanço demonstrando a viabilidade prática de um princípio teórico. O primeiro transistor era grande e ineficiente, mas serviu para dar início à enorme revolução tecnológica que deu origem ao mundo digital que temos hoje. Tudo leva a crer que em um futuro, talvez não muito distante, entraremos na era das máquinas térmicas quânticas.

[1] Crédito da Imagem: Howard Dickins, Flickr, CC BY-NC-SA 2.0. https://www.flickr.com/photos/dorkomatic/4354103395.

[2] J. Klatzow et al. Experimental demonstration of quantum effects in the operation of microscopic heat engines. Phys. Rev. Lett. 122 110601 (2019).

Como citar este artigo: Antônio Murilo Macedo. A era das máquinas térmicas quânticas. Saense. https://saense.com.br/2019/04/a-era-das-maquinas-termicas-quanticas/. Publicado em 14 de abril (2019).

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