UFSC
17/06/2019
As notícias são alarmantes. Publicadas diariamente, por toda parte, soam quase em uníssono. Se olharmos apenas para os veículos brasileiros, nos deparamos com as seguintes manchetes nos últimos dias: “Mudanças climáticas serão uma tragédia para o mundo” (O Globo); “Mudanças climáticas podem acabar com a civilização até 2050” (Revista Galileu); “Mudanças climáticas vão gerar prejuízo de US$ 1 tri para grandes empresas” (Revista Exame); “Mudanças climáticas já provocam danos sérios à saúde humana” (G1). As matérias reportam as mais recentes constatações científicas, que urgem por demonstrar a relevância do tema nas diversas áreas: política, economia, direitos humanos etc. O jornal britânico The Guardian, inclusive, acaba de propor uma nova terminologia, mais adequada ao fenômeno em questão: no lugar de mudanças climáticas, sugere crise climática, emergência climática ou colapso climático.
O planeta já passou por diferentes eras geológicas decorrentes de alterações na temperatura, entretanto, o que vivemos agora é inédito. As atividades humanas ao longo dos últimos séculos – e muito mais nas últimas décadas – têm modificado o clima da Terra com tal intensidade, extensão e rapidez que cientistas dizem que já entramos em uma nova era, o Antropoceno. Entre as atividades mais prejudiciais aos ecossistemas está toda a cadeia produtiva que envolve nossa alimentação baseada em produtos de origem animal. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem recomendado a mudança para uma dieta sem carnes e laticínios como forma de reduzir o aquecimento global. Um relatório apresentado em 2010 afirmava que “alimentos de origem animal, tanto carnes quanto laticínios, requerem mais recursos e causam mais emissões do que alternativas à base de vegetais.”
O impacto da agropecuária no meio ambiente foi um dos temas debatidos durante a Semana do Meio Ambiente, realizada de 3 a 7 de junho na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com o auditório da reitoria completamente lotado, Sônia T. Felipe, professora de Filosofia aposentada pela UFSC, iniciou sua palestra de forma categórica. “Há mais de 70 anos estamos levando o planeta à ruína por conta da produção de alimentos para servir os animais, que serão depois servidos no prato de metade da população humana no mundo. Isso porque a outra metade não come regularmente carnes, queijos ou ovos.” Ao longo dos 50 minutos seguintes ela prendeu a atenção do público apresentando dados que revelam uma realidade sobre a qual pouco se pensa.
As informações são fruto de pesquisas que a professora realizou para a produção de dois livros: Galactolatria(2012) e Carnelatria (2018). Os neologismos dos títulos fazem referência, respectivamente, à “idolatria ao leite” e à “idolatria à carne”. Preocupada com as drásticas consequências decorrentes do aquecimento do planeta – que já se materializam em ciclones, furacões, inundações, secas, queimadas etc –, Sônia decidiu investigar os danos da produção agropecuária a partir de uma ampla revisão bibliográfica. Analisou livros, relatórios científicos, pesquisas acadêmicas nas áreas de agronomia, zootecnia, medicina veterinária, e chegou a números estratosféricos.
Um artigo publicado pela revista Science em 2018 revelou que a produção de animais para consumo humano corresponde a 83% das terras cultivadas e 58% das emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo. Mas fornecem apenas 35% das proteínas e 18% das calorias que ingerimos. 93% de todo o cultivo de soja se destina à produção de carnes, leites e ovos. Uma dieta baseada em vegetais reduziria o uso da terra em 76% e a emissão de CO2 em 49%. “A maior parte do petróleo do mundo hoje é usada para a indústria de animais, que é uma grande devastadora de tudo que temos no planeta. A dieta onívora é uma dieta mortal. Tem implicações não apenas para os animais, que matamos para comer, mas também na biodiversidade. Quanto de água? Quanto de comida? Quanto de excrementos? Quanto de emissão de gases de efeito estufa essa dieta centrada em carnes, laticínios e ovos representa para o planeta?”, indagou Sônia.
Aquecimento global
O aquecimento global é uma das causas das mudanças climáticas. O termo foi popularizado a partir de 1975, quando o cientista norte-americano Wallace Smith Broecker publicou um artigo alertando sobre o aumento das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. O dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O), juntamente com vapor d’água, formam uma “barreira” que impede os raios solares de, quando refletidos na superfície terrestre, retornarem ao espaço. Esse calor retido forma o efeito estufa, que aquece as águas dos oceanos e aumenta a temperatura do planeta como um todo. Uma das consequências desse aquecimento é o derretimento das calotas polares, conforme apontou Sônia: “O gelo está derretendo dez vezes mais rapidamente. O que estava previsto para ocorrer somente em 2075 começou em 2015, 60 anos antes.”
Atualmente, a agropecuária é o setor da produção que mais acelera esse aquecimento. “A agropecuária produziu, em 2017, 972 milhões de toneladas de CO2, sendo que a pecuária sozinha gerou 423 milhões de toneladas. Em contrapartida, a agricultura familiar, que produz alimentos diretamente para humanos, produziu 71 milhões de toneladas. Vejam a desproporção! E ainda não está incluído aí a emissão pelo transporte dessa produção. Cada alimento, para chegar à mesa, passou por pelo menos 10 viagens, desde a semente até o supermercado. Se os vegetais passam por 10 etapas, os alimentos de origem animal exigem 20, o que implica em mais queima de combustível fóssil. Uma alimentação centrada em animais é muito mais poluidora.”
No Brasil, onde o agronegócio é a principal atividade econômica, a produção de alimentos de origem animal representa cerca de 70% da emissão total de gases de efeito estufa. “Todas as outras atividades antrópicas, toda a indústria pesada, inclusive a metalurgia, representam apenas 29% das emissões. E se considerarmos só o setor alimentício, a produção de alimentos de origem animal gera 95% das emissões de CO2 no Brasil. Os alimentos vegetais destinados aos humanos representam apenas 5% dessas emissões”, expôs a pesquisadora.
A pecuária tem um papel preponderante no efeito estufa pelo processo de digestão dos bovinos, que libera gás metano. Os dejetos desses animais também seguem emitindo metano e óxido nitroso. “Os oceanos absorvem 90% de todo o calor produzido pela emissão desses gases. Essa é a razão pela qual as águas oceânicas estão mais quentes, o que significa com menos oxigênio e mais acidez. A acidificação dos oceanos é a causa da morte dos recifes de corais ao redor do mundo. É dos corais que a vida marinha se alimenta prioritariamente. Na cadeia alimentar, pelo menos 60% da vida marinha que existe hoje não terá condições seguir existindo se os corais branquearem e morrerem. Quanto mais quente e mais ácida a água dos oceanos, menos vida haverá.”
O Brasil tem o segundo maior rebanho bovino do mundo, com 232 milhões de cabeças de gado registradas em 2018 — o que ultrapassa o número de humanos, uma vez que nossa população hoje é de 210 milhões de indivíduos. Em Santa Catarina são 4,6 milhões de bois e 7 milhões de pessoas. “Isso sem contar todos os outros animais criados para alimentação. Somos 2,7% da população mundial, mas abatemos em território brasileiro 10% de todos os animais no mundo. Enquanto temos uma média per capita mundial de 9 animais mortos a cada ano para consumo humano, no Brasil são 34 animais mortos per capita. Um boi consome e excreta o equivalente ao que consome e excreta de 20 a 26 humanos. Se para cada boi temos os excrementos de pelos menos 20 humanos, imaginem a quantidade de dejetos que estamos lançando para o meio ambiente dar conta! O planeta definitivamente não consegue administrar todo esse volume de fezes e urina.”
Mais um aspecto sobre o qual pouco se fala, mas que gera poluição significativa, é todo o sangue que jorra do corpo dos animais no momento do abate, conforme apontou a professora: “Ninguém fala disso porque o sangue tem um componente moral. Se você fura intencionalmente o corpo do outro e o faz sangrar, você não quer vê-lo vivo, você quer a morte dele. Em termos de contaminação, o sangue é uma das matérias animais com maior dificuldade de biodegradação. Ele exige uma grande quantidade de oxigênio para poder ser digerido pela terra. E das canaletas dos abatedouros por onde esse sangue escoa, vem junto pelos, pedaços de chifre, gordura, fezes, testículos e muitas outras sujeiras que nem imaginamos.”
Outro grande impacto da agropecuária é o consumo de água doce. Considerando toda a cadeia produtiva, para gerar 1kg de carne bovina são necessários 140 mil litros de água. Para a carne suína, 6.814 litros; para o frango, 1.707 litros. Além disso, esse sistema envolve não apenas o uso da água, mas também sua contaminação com agrotóxicos e fertilizantes. “Quatro culturas utilizam 75% de todo o veneno que é consumido no Brasil: soja, milho, cana de açúcar e algodão. Esses quatro alimentos representam a dieta básica dos animais mortos para servir nossos pratos. E todo esse veneno aplicado na agricultura não fica lá, ele se espalha pelo ar, pela água, penetra o solo, vai para os lençóis freáticos, para os leitos dos rios, e chega até os oceanos.”
Esse uso intensivo de agrotóxicos também gera a morte de milhares de outros animais. “Não é pouca matança que nosso prato centrado em queijos, carnes e ovos representa nesse planeta. Entre os insetos mais devastados estão as abelhas, que já foram praticamente dizimadas no Brasil. A razão dessas mortes em massa, denominada ‘síndrome do colapso das colônias’, é o envenenamento coletivo. No Brasil, apenas entre dezembro de 218 e fevereiro de 2019 foram encontradas mortas, ou melhor, foram assassinadas com venenos 400 milhões de abelhas no Rio Grande do Sul; 50 milhões em Santa Catarina; 45 milhões no Mato Grosso do Sul e 7 milhões em São Paulo. Isso é o que temos registro. O resto do Brasil não entrou nas estatísticas. Coincidentemente é nesses estados onde mais se cultiva soja transgênica, que requer grandes quantidades de veneno.”
Sônia alertou para a responsabilidade de cada um no fomento dessa indústria que gera tantos prejuízos ambientais. “As pessoas às vezes dizem: ‘Como só um pouquinho de carne.’ Mas esse ‘pouquinho’ passa por todo um sistema que está destruindo o planeta. Mesmo sendo ‘pouco’ ela contribui para o funcionamento dessa engrenagem. Para um bife de apenas 100 gramas, o animal consumiu 14.451 litros de água e 11 kg de comida vegetal; emitiu o equivalente a 17 kg de CO2 e deixou cerca de 29 kg de excrementos. Quando alguém compra 100g de carne, não leva junto a excreta. Isso deveria ser obrigatório, assim as pessoas saberiam a quantidade de excrementos que aquele ‘bifinho’ gerou. Nós, que moramos na cidade, não sentimos o cheiro, não sabemos o que é a catinga de um lugar onde produz galinhas, porcos, vacas, bois.”
Além das carnes, os derivados também têm enorme impacto ambiental. A produção de um único litro de leite consome 1.913 litros de água; para 1 kg de queijo são necessários 17.545 litros de água; e para um ovo, 163 litros. “Apenas 2 kg de queijo emitem tanto CO2 quanto alguém que é vegano consome ao longo de um ano, incluindo tudo: comida, transporte, roupas, livros.” Sônia, como todos os veganos, não consome nenhum tipo de alimento ou qualquer outro produto (vestuário, cosméticos etc) que seja de origem animal. O veganismo ultrapassa a esfera alimentícia, sendo uma postura política baseada em escolhas éticas e benéficas para todos os envolvidos: animais, seres humanos, meio ambiente.
“Se olharmos para o tanto de água e de comida que damos para os animais, além de tudo que devastamos para cultivar esses alimentos, vemos que não faz sentido. Poderíamos estar alimentando diretamente os humanos. Além disso, é justamente dos vegetais que os animais retiram os aminoácidos que formam a cadeia protéica. A proteína que está no queijo ou no bife vem do vegetal. O cálcio também tem origem nos vegetais, nas folhas verdes escuras. E também o ferro, o zinco… Por que, então, em vez de cultivamos toneladas de comida para os animais, não podemos cultivar alimentos adequados para nós?”, argumentou Sônia.
No artigo da Science, os autores afirmam que mesmo a opção por alimentos de origem animal que impactem menos o meio ambiente (orgânicos, criação livre etc) é consideravelmente mais danosa do que a escolha por substitutos vegetais. Eles constatam que, para seja viável alimentar a população mundial crescente, uma mudança de dieta faz-se necessária. E para Sônia, não há dúvidas de que essa seja a forma mais eficiente de diminuirmos a emissão de gases de efeito estufa, o desmatamento, a poluição das águas e dos solos. “As mudanças climáticas estão em curso e vão representar o extermínio de milhões de vidas humanas e bilhões de vidas animais. Isso já começou a se manifestar com muita força nos últimos anos. A única coisa que está em nosso poder para pararmos esse processo de devastação do planeta é adotarmos uma dieta vegana.” [2]
[1] “Cortando la carne”by LuisCarlos Díaz is licensed under CC BY-NC-ND 2.0
[2] Esta notícia científica foi escrita por Daniela Caniçali.
Como citar esta notícia científica: UFSC. Nossa dieta está levando o planeta à ruína. Texto de Daniela Caniçali. Saense. https://saense.com.br/2019/06/nossa-dieta-esta-levando-o-planeta-a-ruina/. Publicado em 17 de junho (2019).