UFC
16/06/2019

Durante suas viagens, o Prof. Abreu Matos fazia registros não apenas do uso medicinal relatado popularmente, mas também compilava informações botânicas através da coleta de espécimes vegetais (foto: Ribamar Neto/UFC)

Pesquisadora mergulha nos relatórios das expedições científicas do Prof. Abreu Matos e descobre informações inéditas sobre o uso popular de plantas medicinais da caatinga

“A planta do lugar para o povo daquele lugar.” Com esse lema, o Prof. Francisco José de Abreu Matos (1924-2008), idealizador do Programa Farmácias Vivas, pautou toda sua carreira científica. Atravessando gerações, o valor da pesquisa desenvolvida por ele continua a ser redescoberto mesmo após sua morte, como agora em que a importância de seu acervo ganha um novo capítulo. Um grupo de pesquisadores, liderado por Karla Magalhães, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Inovação Tecnológica de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará, acaba de ter um artigo publicado no importante periódico holandês Journal of Ethnopharmacology (periódico de Qualis A1 pela classificação da CAPES) sobre os registros das viagens científicas do Prof. Matos.

Nesta terça-feira, dia 21 de maio, quando se comemora o aniversário de nascimento do Prof. Matos e o Dia Estadual da Planta Medicinal, a pesquisadora e servidora da UFC aproveita para homenageá-lo ao defender tese sobre o tema. Intitulada Plantas medicinais da caatinga do Nordeste brasileiro: etnofarmacopeia do professor Francisco José de Abreu Matos, o trabalho contou com a orientação da Profª Mary Anne Medeiros Bandeira, que, por sua vez, foi orientada pelo Prof. Matos em suas pesquisas e hoje é a curadora do acervo do pesquisador na UFC. A aluna destaca as colaborações da Profª Mirian Parente, do Departamento de Farmácia, e do bioquímico nigeriano Sikiru Olaitan Balogun.

Confira abaixo a matéria também em áudio, produzida em parceria com a rádio Universitária FM:

A apresentação ocorre às 14h, no auditório do Horto de Plantas Medicinais FJA Matos, localizado no Campus do Pici Prof. Prisco Bezerra, no bloco 941. O cientista, que percorreu o sertão brasileiro por mais de 40 anos em busca de saber como o homem nordestino se valia da flora local para tratar os problemas de saúde da comunidade, é retratado na pesquisa como alguém genial.

Veja outras imagens do Horto de Plantas Medicinais no Flickr da UFC

Através do resgate e análise dos dados dessas expedições etnobotânicas (saberes locais sobre as plantas e seus usos) realizadas entre 1980 e 1990 por Matos e o inseparável companheiro, o botânico Afrânio Fernandes, da UFC, a tese apresenta um compêndio de documentações populares e dos conhecimentos tradicionais associados (material até então inédito) contendo as informações botânicas, fitoquímicas e etnofarmacológicas. De acordo com Karla, a partir do mergulho nos relatórios de viagens, é possível perceber que o professor utilizava técnicas de análise etnobotânica quantitativa sobre as plantas medicinais mesmo quando essas práticas ainda eram muito incipientes  no Brasil.

“O que nos surpreendeu foi o fato de que, apesar de o Prof. Matos não ter alcançado tais técnicas, ele as aplicava de forma intuitiva, e várias das indicações por ele anotadas foram sendo comprovadas em ensaios farmacológicos ao longo dos últimos 30 anos”, revela Karla. O ineditismo do trabalho se deve à aplicação dessas técnicas a um acervo pessoal, com o objetivo de analisar as informações anotadas pelo professor. Além disso, a tese sugere algumas plantas medicinais da caatinga com potencial de bioprospecção farmacêutica.

RECLASSIFICAÇÃO

O primeiro passo para a aplicação das técnicas foi a revisão da nomenclatura botânica das plantas pelo sistema APG (do inglês, Angiosperm Philogeny Group), moderno sistema de classificação das plantas com flor, atualmente em sua quarta versão. “Pegamos o acervo, catalogamos, organizamos isso de forma cronológica e passamos a checar a classificação. E começamos a verificar se essas plantas, depois de avaliadas geneticamente, mudaram de nome”, detalha.

A aroeira, por exemplo, planta medicinal usada popularmente para tratar inflamações e a mais citada para o tratamento de doença no acervo de Matos, sofreu uma alteração de nomenclatura: passou de Astronium urundeuva para Myracrodruon urundeuva. Isso porque a classificação botânica se relacionava apenas a características como a forma das folhas e a existência de frutos. A partir da APG, houve um mapeamento genético que resultou na reclassificação. No acervo do Prof. Matos, das 272 espécies, 84 foram reclassificadas.

“O que nos surpreendeu foi o fato de que, apesar de o Prof. Matos não ter alcançado tais técnicas, ele as aplicava de forma intuitiva, e várias das indicações por ele anotadas foram sendo comprovadas em ensaios farmacológicos ao longo dos últimos 30 anos”

O clado filogenético (grupo de organismos originados de um único ancestral comum exclusivo) tem como base os chamados marcadores fitoquímicos (compostos de natureza química produzidos por vegetais). No caso da Myracrodruon urundeuva, sabe-se que é conhecida por conter chalconas e taninos, substâncias com atividades farmacológicas já comprovadas. Isso a enquadra em um clado específico. A partir daí, são aplicadas técnicas estatísticas e de análise etnobotânica quantitativa que conferem valor científico àquela informação popular anotada.

“A pessoa diz que usa para inflamação de mulher. Então, eu tenho de classificar na categoria de uso ‘problemas ginecológicos’. Essa informação será avaliada de acordo com informações fitoquímicas do clado filogenético em que a M. urundeuva está classificada. Por que isso me valida cientificamente a informação popular? Porque, através desse cálculo, eu posso dizer o seguinte: se eu tenho uma forte indicação de uso de Myracrodruon urundeuva, que está no clado A, para problemas ginecológicos e já é conhecido que chalcona tem atividade anti-inflamatória, eu confiro valor científico a essa informação popular”, descreve.

EXPEDIÇÕES À CAATINGA

Das 272 plantas identificadas pelo Prof. Matos, 153 (56,3%) são nativas do Brasil, das quais 36 (23,4%) são endêmicas da caatinga. Esse bioma exclusivamente brasileiro foi pouco estudado até o ano 2000. “A caatinga sofreu durante muito tempo a ideia preconceituosa de que, devido à escassez hídrica, seria pobre em biodiversidade; era, digamos assim, uma flora homogênea, não tinha uma grande variedade, e isso levou a que muitas pessoas a negligenciassem, concentrando-se muito na Amazônia e na mata atlântica, mas o Prof. Matos, não”, situa Karla.

Durante as viagens, Matos e Afrânio Fernandes faziam registros não apenas do uso medicinal relatado popularmente, mas também compilavam informações botânicas através da coleta de espécimes vegetais e do depósito de exsicatas (amostras de plantas prensadas com detalhes sobre o vegetal e local de coleta, levadas ao herbário para a identificação da espécie) em herbários nacionais e internacionais. “É como se fosse uma identidade, porque uma mesma espécie, coletada em locais diferentes, tem exsicatas diferentes. As plantas produzem compostos secundários oriundos de seu metabolismo – em geral, responsáveis por suas atividades farmacológicas – e a quantidade desses metabólitos pode sofrer influências ambientais”, explica a pesquisadora.

O Horto de Plantas Medicinais do Pici foi construído com base nessas coletas durante as viagens etnobotânicas. “As espécies são preservadas geneticamente há mais de 30 anos. Sua replicação é feita por meio de estaquia, método de reprodução assexuada, ou seja, a espécie não se mistura com outras. Isso confere a característica de manutenção do germoplasma da planta”, explica a doutoranda. O banco de germoplasma do Horto de Plantas Medicinais da UFC é um dos únicos do Brasil.

Nas viagens ao sertão, Matos ainda incluía em sua rotina algo desenvolvido, segundo Karla, somente a partir da década de 1990 no mundo: o cálculo do valor de uso de uma espécie. “Um dos meios usados para definir esse valor é entrevistar mais de uma vez os chamados informantes-chave, aquelas pessoas que se dizem detentoras do conhecimento sobre as plantas, para que se possam confrontar as informações”, afirma. Para chegar aos informantes, o pesquisador costumava visitar os mercados públicos e as feiras populares.

SAIBA MAIS

Francisco José de Abreu Matos graduou-se, em 1945, na Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará. Livre-docente e professor emérito da UFC, em 1983 criou as Farmácias Vivas, um programa de assistência social farmacêutica baseado no emprego científico de plantas medicinais e fitoterápicos, organizado sob a influência da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Nessa época tomei conhecimento de que apenas 20% da população dos países do Terceiro Mundo tinha recursos para comprar medicamentos. Aí a gente faz umas continhas fáceis: o Nordeste tem 50 milhões de habitantes, 20% são 10 milhões, 10 milhões de habitantes têm dinheiro para comprar remédio e os 40 milhões o que é que vão fazer? A única opção que têm é buscar medicamentos na natureza ou nos mercados públicos, nos vendedores de ervas”, conta o Prof. Matos, em vídeo de 2004, da Coleção Santo de Casa, da Seara da Ciência.

A ideia de Matos era levar às comunidades a preparação de fitoterápicos, prescrição e dispensação (entrega de um medicamento para o paciente sob orientação farmacêutica) na rede pública de saúde, além de informar sobre o uso correto de plantas medicinais e preparação de remédios caseiros. Seu trabalho serviu de exemplo para a construção de uma Política Nacional de Plantas Medicinais Fitoterápicas, que começou ainda em 1997, quando as Farmácias Vivas foram institucionalizadas pela Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA). Em 2009, finalmente, um ano após sua morte, foi assinado o Decreto nº 30.016, que dispõe sobre o cultivo, a preparação de fitoterápicos e sua dispensação no âmbito do Sistema Público de Saúde, em consonância com a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) (Decreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006). [1], [2]

[1] Fonte: Karla Magalhães, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Inovação Tecnológica de Medicamentos da UFC – e-mail: karlafarmufc@gmail.com.

[2] Esta notícia científica foi escrita por Síria Mapurunga da Agência UFC.

Como citar esta notícia científica: UFC. Onde a ciência e o saber popular se encontram. Texto de Síria Mapurunga. Saense. https://saense.com.br/2019/06/onde-a-ciencia-e-o-saber-popular-se-encontram/. Publicado em 16 de junho (2019).

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