Hendrik Macedo
11/06/2019
Se existe uma obra artística impossível de tirar da cabeça é a da pintura surrealista “La persistència de la memòria” (1931) do mestre catalão Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech. Sabe aquela com os relógios derretidos e uma paisagem com mar no horizonte? Tenho ela na mente desde garoto. Um dia fui procurar pela explicação da obra nas palavras do próprio Dalí: “Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialista fúria da precisão”. Ah, tá! :/
Agora, imaginem o próprio Dalí e todo o seu jeito bem peculiar de ser e falar, pronunciando essa frase… Na verdade, nem precisamos mais imaginar, podemos vê-lo e ouvi-lo, ao vivo, no Museu Dalí (St. Petersburg, Florida, E.U.A.), pronunciando essa e outras frases bem mais contemporâneas e interagindo conosco; o cara usa até smartphone para tirar uma selfie com os visitantes. Tudo isso é possível graças a uma iniciativa da empresa Goodby Silverstein & Partners of San Francisco (GS&P), que aplicou de forma magistral a tecnologia do Deep Fake à figura de Dalí especialmente para o museu em questão [2] (já escrevi mais detalhadamente sobre o Deep Fake no artigo “A impressionante habilidade de se criar vídeos falsos artificialmente”; confiram lá!). A equipe de desenvolvedores treinou uma rede neuronal convolucional a partir de mais de 6 mil quadros de imagens históricas de Dalí. A Inteligência Artificial treinada aprendeu cada aspecto do rosto e feições do pintor e as sobrepôs no corpo de um ator com características físicas gerais semelhantes. Para fazê-lo falar com autenticidade e desenvoltura sobre temas atuais, sua personalidade foi resgatada a partir de citações extraídas de velhas entrevistas, livros e cartas pessoais. Todo o processo de treinamento do modelo exigiu mais de mil horas de aprendizado de máquina. O resultado são mais de 190 mil diferentes possibilidades de interação com os visitantes; interações essas que chegam a mudar a depender do dia e de aspectos como o clima. No link da citação anterior é possível ver um vídeo do resultado do trabalho. Fantástico!
Quase no mesmo momento em que tomei conhecimento desse trabalho, me deparei com um outro recentemente desenvolvido pelo grupo de pesquisa da OpenAI (Califórnia/E.U.A.): trata-se de um novo algoritmo de aprendizagem profunda, denominado de MuseNet, que consegue gerar automaticamente músicas originais [3]. A coisa é capaz de criar novas composições musicais de 4 minutos de duração fazendo uso de até 10 instrumentos diferentes e combinando diferentes estilos musicais. De acordo com um estilo musical e conjunto de instrumentos desejados pelo usuário, a IA gera a nova música, porém, respeitando o perfil de um determinado compositor. É como se Beethoven acordasse no século 21 e, mantendo sua assinatura musical, criasse uma nova sinfonia numa pegada pop à lá Bon Jovi com uso de bateria e guitarra, ou, o Mozart modificasse progressões de acordes, instrumentos e aplicasse seu estilo à canção “Poker Face” de Lady Gaga, utilizada como ponto de partida. 🙂 A MuseNet consiste de uma rede neuronal de 72 camadas que foi treinada com os kernels recomendados e já otimizados da rede neural profunda Sparse Transformer [4], que foi concebida para ser capaz de prever o que virá em seguida em uma sequência de dados sejam eles do tipo texto, áudio ou imagem. Centenas de milhares de arquivos MIDI de variadas fontes foram coletados para o treinamento da rede que foi ensinada a descobrir padrões de harmonia, ritmo e estilo musical.
Não é preciso muito esforço para perceber as possibilidades maravilhosas da junção dos dois trabalhos acima, certo? Ou sou só eu que gostaria de poder assistir “ao vivo” a uma nova performance de Tom e Elis ou dos Beatles ou de Chopin, com música boa e …original?!
Em seu último pronunciamento público em janeiro de 1989, Dalí disse: “Quando você é um gênio, você não tem o direito de morrer.”. De fato. Sendo assim, diante da possibilidade de corrigirmos o curso das coisas, “ressuscitando” alguns dos maiores gênios que a humanidade já produziu e que tanto nos inspiram ou emocionam, ainda que sob a ameaça concreta da proliferação de montagens sedentas de desgraça alheia e caos, criadas e motivadas por loucos, prefiro que encaremos de frente o risco dessas tecnologias por acreditar que sobre “genialidade” e “loucura”, apesar de bem tênue a linha, somos bem mais numerosos no primeiro lado dela.
[1] Crédito da imagem: Tanya Dobraya, Pixabay License. https://pixabay.com/pt/illustrations/el-salvador-dali-illustrator-889515/.
[2] Goodby Silverstein & Partners, May. 2019, https://goodbysilverstein.com/work/dali-lives-4.
[3] Payne, Christine. “MuseNet.” OpenAI, 25 Apr. 2019, openai.com/blog/musenet.
[4] Child, R., Gray, S., Radford, A., & Sutskever, I. (2019). Generating long sequences with sparse transformers. arXiv preprint arXiv:1904.10509.
Como citar este artigo: Hendrik Macedo. “Tragam-nos de volta os gênios!”. E os gênios foram trazidos. Saense. https://saense.com.br/2019/06/tragam-nos-de-volta-os-genios-e-os-genios-foram-trazidos/. Publicado em 11 de junho (2019).