UFRGS
15/07/2019

A Melipona quadrifasciata é uma abelha sem ferrão nativa do Brasil – Foto: Lucas Kehl

Todos os anos, no fim do verão, uma síndrome acomete colônias da abelha Melipona quadrifasciata, mais conhecida como mandaçaia, no Rio Grande do Sul. Em variadas regiões do estado, os insetos apresentam tremores, começam a rastejar, perdem a capacidade de voar e de se mover. Colmeias inteiras chegam a morrer. A mandaçaia é a segunda espécie de abelha nativa mais cultivada no Brasil, mas, apesar de sua inegável importância tanto para a produção de mel quanto para a polinização, ainda é pouco estudada na área acadêmica. Não se tem um registro exato do início dessa síndrome, tampouco se sabe com precisão o número de colônias que vêm sendo afetadas ano após ano. Alguns melipolinicultores (criadores de abelhas sem ferrão, como a mandaçaia) dizem que observam o fenômeno há 50 anos, e há relatos de sintomas semelhantes em abelhas de Minas Gerais e Santa Catarina.

Identificar as causas do adoecimento e da morte dessas mandaçaias é o objetivo da pesquisa de doutorado de Lílian Caesar, aluna do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da UFRGS. O trabalho é feito em colaboração com cientistas da UFRGS e da PUCRS, além de contar com o apoio de melipolinicultores. Conforme explica a professora do Instituto de Biociência da UFRGS Karen Luisa Haag, orientadora de Lílian, apesar de muitos dos criadores apontarem que os sintomas eram similares aos de intoxicação, essa hipótese logo foi descartada. A síndrome afeta abelhas de áreas muito distintas – a vegetação e os tipos de cultivos do entorno variam bastante –, não havendo, portanto, algum agente potencialmente tóxico comum a todos esses locais que pudesse justificar essa possibilidade.

“Então começamos a avaliar diversas coisas. Primeiro, iniciamos a procurar por bactérias que pudessem estar causando isso”, comenta Karen. Ao não encontrarem diferenças significativas entre as bactérias de abelhas doentes e saudáveis, passaram a trabalhar com a hipótese de infecções virais. “E o que a Lílian fez agora foi investigar os vírus, porque os sintomas observados são similares a sintomas de infecções virais conhecidas na Apis mellifera, que é a abelha importada da Europa”, complementa a professora.

“O interessante do nosso trabalho é que fizemos uma abordagem um pouco diferente do que vinha sendo feito nos trabalhos que buscavam por vírus em abelhas aqui no Brasil”, ressalta Lílian. Enquanto a maioria dos estudos do tipo procura pela presença de vírus específicos, já conhecidos, a pesquisa dela descreveu o viroma, toda a comunidade de vírus que existe nas mandaçaias analisadas. Essa, aliás, foi a primeira vez que foi caracterizado o viroma de uma abelha sem ferrão no Brasil.

Foram comparados os vírus presentes em insetos saudáveis e doentes de duas colônias diferentes de um mesmo meliponário (coleção de colmeias de abelhas sem ferrão). Além de detectarem uma grande quantidade de vírus nos animais doentes (enquanto nos saudáveis havia pouquíssimos), elas observaram diversos vírus novos, nunca antes descritos. “Ou seja, se a gente tivesse usado aquela abordagem tradicional que todo mundo usa de procurar algum vírus que já existe, talvez não tivesse achado nada, porque nesse viroma a gente não viu nenhum vírus já conhecido”, destaca a doutoranda. “Os vírus conhecidos de abelhas foram descritos para a Apis mellifera europeia. Os vírus da fauna de insetos daqui, a gente não conhece. Então, a princípio, se a gente quiser entender as doenças que circulam aqui, tem que usar essas abordagens de pegar tudo às cegas. Essas metodologias são proporcionadas pelo sequenciamento de nova geração. A gente pega e sequência tudo o que encontra ao mesmo tempo. É uma metodologia que requer bastante uso de informática”, acrescenta Karen.

Dentre os vírus encontrados nas abelhas doentes, foram selecionados os sete mais abundantes para a etapa seguinte. Para verificar a relação deles com a síndrome, as pesquisadoras investigaram sua presença em mais três meliponários, localizados em áreas bem diferentes entre si: um fica ao lado de várias estufas agrícolas; outro, perto da Mata Atlântica; e o terceiro, em uma área urbana. Em comum, apenas a manifestação anual da síndrome. Nenhum dos vírus, contudo, foi encontrado em todas as abelhas doentes, o que indica que não são eles que provocam a alta mortandade.

“De maneira geral, o que concluímos foi que, primeiro, existe uma diversidade gigantesca de vírus nas abelhas daqui que ainda não é explorada, e, provavelmente, se fizermos o viroma de outras espécies de abelhas nativas, vamos encontrar outros vírus novos também. Segundo, percebemos que os vírus não são a causa da síndrome, mas eles ainda podem ter alguma relação com os sintomas ou podem se dispersar mais no período da síndrome, uma vez que, quando ela ocorre, as colônias se enfraquecem”, explica Lílian. As pesquisadoras acreditam que a síndrome está relacionada ao enfraquecimento do sistema imunológico dos animais. Aproveitando-se dessa debilitação, os vírus têm mais facilidade de se espalhar entre as abelhas – o que explica a grande quantidade de vírus encontrados nos insetos doentes. Entre outros pontos, esses resultados, alerta Karen, reforçam a necessidade de melipolinicultores se atentarem a boas práticas de manejo e de transporte. O deslocamento ou a comercialização de abelhas sem o devido cuidado pode levar à dispersão desses vírus e de outros patógenos.

Os estudos agora prosseguem com a análise da expressão gênica, processo pelo qual a informação contida no DNA de uma célula é decodificada em produtos funcionais, como proteínas ou RNA. “O primeiro passo depois da descrição do viroma foi fazer o transcriptoma, que é um tipo de sequenciamento em que os dados nos mostram os genes que estão sendo expressos na abelha. Então, a gente compara os genes expressos em abelhas doentes e saudáveis, e consegue ver mudanças. Por exemplo, eu consigo ver se, nas abelhas doentes, algum gene está sendo superexpresso ou se está sendo menos expresso”, esclarece Lílian. A partir desses dados, elas puderam observar mudanças que ocorrem de maneira mais acentuada em dois genes: um ligado ao sistema imune e outro que exerce um papel importante em processos de desintoxicação.

Nessa etapa, são estudadas seis colônias irmãs, localizadas em dois melipolinários diferentes – um que apresenta abelhas doentes todos os anos e outro que nunca registrou a síndrome. “Geneticamente essas colmeias são iguais. Então, se existe algo que provoque alguma diferença entre elas, essa diferença não é genética, é ambiental”, comenta Karen. A coleta ocorre mês a mês, desde setembro do ano passado até março deste ano, época em que ocorre a síndrome. “Agora que já escolhemos os genes que estavam diferentemente expressos nas abelhas doentes e nas saudáveis, nós vamos avaliar ao longo do tempo, antes da síndrome até depois da síndrome, colônias que ficaram e que não ficaram doentes para ver, baseadas na expressão desses genes, alterações na resposta imune. E também vamos ver a flutuação da carga viral desses vírus que nós descrevemos no primeiro artigo. Vamos verificar quantas partículas virais têm nessas abelhas. Isso vai poder nos dar uma ideia se existe uma falha no sistema imune que já começou lá em setembro ou se é uma coisa que acontece só perto da síndrome, ou mesmo se não tem nada a ver com o sistema imune”, afirma Lílian.

Mortandade mundial de abelhas

Conforme salienta Karen, a mortandade das mandaçaias não parece ser um fenômeno isolado. Ao que tudo indica, está diretamente vinculada à redução das populações de abelha em escala mundial. Fatores como o uso excessivo de agrotóxicos, o aumento do desmatamento e as mudanças climáticas estão levando ao desaparecimento desses insetos e, consequentemente, pondo em risco a produtividade agrícola e a manutenção da biodiversidade do planeta. Afinal, eles são os principais agentes polinizadores da maioria dos ecossistemas. Somente entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas em quatro estados brasileiros, segundo levantamento da Agência Pública e do Repórter Brasil. Foram 400 milhões no Rio Grande do Sul, 7 milhões em São Paulo, 50 milhões em Santa Catarina e 45 milhões no Mato Grosso do Sul.

“Essa redução das populações de abelha em escala mundial tem a ver com os mesmos fatores que causam essa mortalidade anual das mandaçaias provavelmente”, reitera a professora. Ela exemplifica o argumento com o desaparecimento das Apis mellifera observado especialmente nos Estados Unidos e na Europa. Diferentemente do que ocorre com as mandaçaias, que são encontradas mortas em frente às colmeias ou mesmo dentro delas, aquelas começaram a ir embora, provavelmente para morrer em outro local. O fenômeno foi denominado de Colony Collapse Disorder (ou Distúrbio do Colapso das Colônias, na tradução para o português), e os cientistas não conseguiram relacioná-lo a nenhum patógeno ou agrotóxico específico. “Provavelmente é essa situação também em que uma combinação de fatores faz com que a imunidade das colmeias se reduza, e aí elas ficam mais suscetíveis a diversos patógenos diferentes. Por isso, é uma doença multifatorial. Acreditamos que aqui essa síndrome anual é uma coisa parecida”, afirma Karen.

Artigos científicos

CAESAR, Lílian et al. The virome of an endangered stingless bee suffering from annual mortality in southern Brazil. Journal of General Virology, 2019. DÍAZ, Sebastián et al. Report on the microbiota of Melipona quadrifasciata affected by a recurrent disease. Journal of Invertebrate Pathology, 2017. [1]

[1] Esta notícia científica foi escrita por Camila Raposo.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Pesquisadores investigam causas de síndrome que mata abelhas mandaçaias no RS. Texto de Camila Raposo. Saense. https://saense.com.br/2019/07/pesquisadores-investigam-causas-de-sindrome-que-mata-abelhas-mandacaias-no-rs/. Publicado em 15 de julho (2019).

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