Jornal da USP
23/08/2019
Uma bactéria geneticamente modificada pode ser uma grande aliada em terapias médicas, mas ainda é preciso mais conhecimento para que essa frase se torne uma realidade cotidiana na medicina. Um esforço nesse sentido foi descrito em um artigo recente que saiu na publicação especializada ACS Synthetic Biology. Liderado pelo professor Rafael Silva Rocha, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, um grupo de pesquisadores usou bioinformática e engenharia reversa para criar um sistema biológico bem regulado no qual uma bactéria Escherichia colitransgênica responde à presença de aspirina no ambiente. Para desenvolver a E. coli transgênica, os pesquisadores tiveram antes que entender como proteínas da espécie doadora dos genes modificados reconhecem certas substâncias presentes no ambiente.
O desenvolvimento desse sistema é o primeiro passo para testar possíveis aplicações. “Alguns grupos de pesquisa, inclusive empresas sérias, estão investindo em criar espécies de probióticos reprogramados que possam ser usados numa aplicação no ser humano. Reprogramação de microbiota, terapia para tentar atacar células cancerígenas, etc. Nesse contexto, é preciso ter um organismo que seja seguro, mas que também tenha uma via ‘engenheirada’, para que ele possa ter induzida uma condição de interesse”, explica Silva Rocha.
“Então, a nossa premissa é: conhecendo a relação estrutural desses químicos, será que nós podemos de alguma maneira, utilizando ferramentas de biologia sintética, de biologia computacional, desenhar sistemas de expressão [genética] que respondam a drogas que possamos usar no ser humano?”, emenda o professor, que desde o doutorado trabalha no campo da biologia sintética.
O foco da pesquisa foi a busca por fatores de transcrição do DNA que respondessem a substâncias seguras para uso in vivo em mamíferos. Fatores de transcrição são proteínas que, nas bactérias, funcionam como “sensores” do ambiente. Na presença de determinadas substâncias, elas se conectam a regiões do DNA e ajudam a dar o pontapé inicial ao processo de transcrição do DNA em RNA. A ideia é que, por meio de engenharia genética, seria possível utilizar os fatores de transcrição como uma espécie de “interruptor” para que a bactéria produzisse algo de interesse humano.
O grupo de Silva Rocha partiu de uma bactéria de solo que tem a habilidade de se “alimentar” de ácido benzoico, entre outras substâncias. A Pseudomonas putida é parente de uma bactéria causadora da fibrose cística, mas, diferente do patógeno que ataca humanos, ela é uma versão ambiental que interage com raízes de plantas. “Ela tem uma diversidade metabólica muito interessante e isso serve para a gente como se fosse bloquinho de construção. Podemos pegar um gene, um regulador de interesse, colocar numa outra bactéria que não tem essa capacidade e a partir daí tentar criar um organismo com características melhoradas”, explica o coordenador da pesquisa.
Fechadura molecular
Os pesquisadores utilizaram ferramentas de bioinformática para procurar na bactéria doadora possíveis ligantes para a molécula de ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina. Como eles conheciam o genoma da Pseudomonas putida e as funções dos seus genes, com a ajuda do computador foi possível estimar quais fatores de transcrição poderiam encaixar na molécula da aspirina.
Isso é importante porque os fatores de transcrição só vão entrar em ação quando encontram uma molécula com a combinação certa. É como se a molécula do ambiente fosse uma chave. Nessa analogia, o fator de transcrição, que é uma molécula grande e cheia de sulcos e cavidades, seria a fechadura. A chave para essa fechadura também é chamada pelos cientistas de indutor.
Na P. putida, a equipe identificou dois fatores de transcrição bastante parecidos, chamados BenR e XylS. Apesar das similaridades, eles respondem a compostos diferentes; um degrada apenas benzoato e o outro degrada também outros compostos parecidos. Os pesquisadores encontraram nesses fatores de transcrição oito aminoácidos candidatos à interação com os compostos de interesse e, comparando com outras bactérias, viram que dois deles pareciam mudar em organismos diferentes, levando a respostas diferentes.
No artigo, os autores detalham a estrutura, a posição dos aminoácidos e o mecanismo de reconhecimento e acoplagem das proteínas BenR e XylS aos seus indutores. Para Frederico Gueiros, professor do Instituto de Química (IQ) da USP que investiga os controles de crescimento e divisão das bactérias, esse é um dos aspectos mais relevantes do trabalho. “Para várias proteínas, a gente sabe que elas reconhecem (o indutor), só que não sabe exatamente como reconhecem”, diz Gueiros, que não participou da pesquisa. O principal, no entanto, foi usar essas informações para criar um novo fator de transcrição.
Engenheiros da biologia
Os pesquisadores da FMRP utilizaram a descrição estrutural dos fatores de transcrição da mesma forma como um grupo de engenheiros que desmontasse uma máquina para entender como funciona. Com esse conhecimento, puderam isolar as regiões dos genes de interesse da Pseudomonas putida para fazer mutações. No BenR, as alterações levaram a uma perda da função da proteína. Mas, no XylS, o resultado foi o oposto. “Descobrimos uma região específica que, ao ser alterada, permitia que esse sistema no regulador respondesse à aspirina, coisa que ele não fazia antes”, diz Silva Rocha. O gene mutado foi transferido para a E. coli, uma velha conhecida dos cientistas que é mais fácil de ser manipulada do que a Pseudomonas, e validada em novos testes.
Essa não é a primeira vez que cientistas conseguem fazer com que uma bactéria responda à aspirina. Em 2007, um grupo de pesquisadores espanhóis publicou em uma revista do grupo Nature um artigo relatando a montagem de um sistema responsivo ao ácido acetilsalicílico que se baseava em bactérias do gênero Salmonella. “Eles utilizaram outro regulador que respondia a um composto semelhante à aspirina e fizeram uma bactéria que atacava uma célula cancerígena. Quando recebia a droga que eles (os cientistas espanhóis) ministravam, ela expressava uma proteína que matava esse tumor. Só que eles tiveram que usar um sistema de expressão que na época não era tão bom”, conta o professor da FMRP, advertindo que uma regulação ruim pode levar à destruição de células boas, junto com as células doentes.
Sem tirar o mérito da pesquisa do grupo de Ribeirão Preto, Gueiros observa que a E. coli transgênica criada na cidade do interior paulista não é um organismo plenamente sintético, já que os cientistas ainda precisam de informações da natureza para criar novas proteínas.
“O desafio da biologia sintética é criar moléculas biológicas com propriedades novas e com isso expandir o repertório de atividades ou sensores que os seres vivos possam ter. Ainda temos muita dificuldade de conseguir produzir, por exemplo, sensores de uma coisa completamente diferente, nova, que não existe parecida (na natureza). Hoje em dia ainda não conseguimos ‘do nada’, simplesmente ir no computador inventar uma proteína que responda à ação da aspirina ou de uma molécula qualquer que a gente escolha”, comenta o docente do IQ.
A pesquisa da FMRP teve apoio financeiro da Fapesp, por meio do programa Jovem Pesquisador.
Reportagem: Silvana Salles/Jornal da USP
Como citar esta notícia científica: Jornal da USP. Bactéria transgênica funciona com “interruptor” à base de aspirina. Texto de Silvana Salles. Saense. https://saense.com.br/2019/08/bacteria-transgenica-funciona-com-interruptor-a-base-de-aspirina/. Publicado em 23 de agosto (2019).