Agência FAPESP
18/09/2019
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – A análise de sedimentos marinhos tornou-se uma ferramenta poderosa para a investigação do paleoclima. Esse material é carregado pelos rios dos continentes para os oceanos e sua composição permite calcular os valores de grandezas como temperatura, regime de chuvas nas áreas continentais e salinidade nos mares. Tal rastreamento do passado é fundamental para aferir a acurácia dos modelos climáticos atuais no contexto da mudança climática global (leia mais em agencia.fapesp.br/25634/ e http://agencia.fapesp.br/23015).
Um novo método de análise de sedimentos foi proposto por Vinícius Ribau Mendes, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em artigo publicado na revista Paleoceanography and Paleoclimatology. Por sua originalidade, o estudo foi selecionado pelos editores para ser divulgado também na seção “Research Spotlights” do periódico Earth & Space Science News.
O estudo foi conduzido durante o doutorado de Mendes, com apoio de bolsa da FAPESP e orientação de Paulo César Fonseca Giannini. Também recebeu financiamento por meio de um Auxílio à Pesquisa – Apoio a Jovens Pesquisadores concedido a Cristiano Mazur Chiessi, coautor do artigo, e de um Auxílio à Pesquisa – Programa Equipamentos Multiusuários de Giannini.
Mendes e colaboradores analisaram colunas de sedimentos marinhos coletadas na costa nordeste do Brasil. Nesses “testemunhos”, como são chamados no jargão dos pesquisadores do paleoclima, encontraram argilominerais, quartzo e feldspato (grupo de silicatos de sódio, potássio, cálcio ou outros elementos), transportados do continente para o oceano pelo rio Parnaíba – o mais importante da região. Qualquer mudança substancial experimentada pelo rio, como as variações no regime de chuvas, é potencialmente registrada nesses sedimentos.
“Para reconstruir as mudanças ocorridas na precipitação continental ao longo dos últimos 30 mil anos, propusemos um novo método, baseado na luminescência dos grãos de quartzo e feldspato. Essa luminescência varia, dependendo da constituição geológica das áreas de origem dos cristais e do tempo que eles ficaram submetidos aos processos de superfície antes de chegar ao fundo oceânico. Um cristal proveniente da cabeceira do rio possui uma assinatura específica, diferente daquela do cristal proveniente da parte média ou final do leito fluvial. Como no caso do rio Parnaíba o aumento do regime de chuvas impacta significativamente a cabeceira, uma maior porcentagem de grãos dessa área no testemunho marinho indica intensificação da precipitação pluvial”, disse Mendes à Agência FAPESP.
A luminescência é a luz emitida por alguns materiais que foram expostos à radiação ionizante e submetidos a um estímulo, como, por exemplo, calor ou luz. Outros estudos descobriram que, para o quartzo, a intensidade da luz emitida ou sensibilidade depende do meio geológico no qual o grão se formou e do tempo que permaneceu exposto ao sol durante sucessivos eventos de transporte ao longo do rio, antes de submergir no oceano. “Comprovamos isso empiricamente, colhendo amostras de quartzo e feldspato ao longo do rio Parnaíba. Verificamos que as amostras da cabeceira são muito diferentes daquelas colhidas no curso do rio”, disse.
O entendimento físico-químico dessa diferença ainda não é completamente explicado. O quartzo, um material mais simples e abundante do que o feldspato nos sedimentos, é constituído basicamente por dióxido de silício: SiO2. Mas pode conter defeitos formados pela incorporação de outros elementos químicos além de silício e oxigênio ou por ausência destes elementos na rede cristalina (vacâncias). A luminescência resulta dessas alterações na rede cristalina. Elas dependem da composição química do meio no qual a rocha se formou. Além disso, depois de formado, o cristal sofre outras influências ao ser transformado em sedimento, como a quebra e redução de tamanho que muda a sua interação com a radiação ionizante do ambiente, exposição à luz solar e maior incidência de raios cósmicos.
Não se conhece exatamente como esses fatores influenciam a capacidade dos defeitos em gerar luminescência, mas um estudo realizado na bacia do rio Amazonas por André Oliveira Sawakuchi, do Instituto de Geociências da USP e colaboradores, demonstrou que, quanto mais tempo o cristal permanece exposto aos processos da superfície terrestre, maior a sua luminescência.
“Essas hipóteses físico-químicas para explicar as diferenças ainda estão em estudo. Não temos uma explicação definitiva. O que podemos afirmar com segurança, porque possuímos os dados empíricos, é que os cristais dos vários locais do curso do rio são diferentes. Então, ao encontrar grãos desses cristais no testemunho marinho, conseguimos determinar, a partir de sua luminescência, onde esses materiais se formaram. E aferir como foi o processo que os levou do continente ao oceano”, disse Mendes.
A medição da luminescência é feita em amostras colhidas, de dois em dois centímetros, ao longo do testemunho. Todas as amostras são expostas ao mesmo tipo e quantidade de radiação ionizante e depois estimuladas por calor ou luz.
“Nosso método complementa outros dois, já consagrados pela comunidade científica. Um deles, que traz a informação mais precisa sobre quantidade de chuvas, baseia-se na medição da proporção dos isótopos de hidrogênio presentes em moléculas muito resistentes de plantas terrestres levadas para o mar. Esses isótopos, que a planta incorpora em suas moléculas, são provenientes da água das chuvas”, descreveu o pesquisador.
Os isótopos estáveis do hidrogênio são o prótio, cujo átomo é composto por um próton e um elétron, e o deutério, também chamado de hidrogênio pesado, composto por um próton, um nêutron e um elétron. O prótio, que é o isótopo mais abundante, ao se combinar com o oxigênio produz a água comum: H2O. O deutério produz a água pesada: D20.
Como as nuvens de chuva na região Nordeste do Brasil se deslocam do oceano para o continente, quanto mais chove, menor a quantidade de deutério despejada no interior do continente, pois a água pesada, por ser mais densa, tende a cair primeiro, ficando pelo caminho.
Assim, a proporção de deutério e prótio nas moléculas das plantas depositadas em diferentes profundidades dos sedimentos marinhos fornece informação muito precisa sobre a variação da quantidade de chuvas ao longo do tempo.
“Apesar de sua precisão, esse método tem o inconveniente de ser muito trabalhoso e caro. Além disso, depende de a matéria orgânica estar preservada no sedimento – o que nem sempre acontece”, ponderou Mendes.
O segundo método baseia-se na análise da composição química do sedimento, a partir da fluorescência de raios X. A técnica consiste em excitar a amostra com raios X e analisar as características do sinal eletromagnético que ela emite como resposta. Como cada elemento químico emite em uma faixa de frequência específica, isso permite determinar os elementos presentes na amostra. O objetivo é determinar a proporção de titânio e ferro, provenientes do continente, em relação ao cálcio, proveniente das carapaças dos animais marinhos. Um aumento no percentual de titânio e ferro sinaliza um maior arraste de material continental em função da intensificação das chuvas.
Esse segundo método é fácil, rápido e barato. Enquanto a determinação dos percentuais de isótopos de hidrogênio leva diversos meses de laboratório para ser feita, o escaneamento do titânio, ferro e cálcio é feito em um dia. O problema é que esse método já não é tão preciso quanto o anterior. Embora a variação do percentual de titânio e ferro indique maior ou menor precipitação pluvial em determinado período, essa variação não é proporcional à quantidade de chuvas, pois é afetada também pelo rebaixamento ou elevação do nível do mar. Se o nível do mar abaixa, a foz do rio fica mais próxima da região de coleta de sedimentos. Se sobe, fica mais distante. Nesse caso, a coluna de sedimentos pode apresentar maior ou menor quantidade de titânio e ferro sem que isso tenha sido causado por mais ou menos chuvas. Então, o que se ganha em rapidez e custo, se perde em precisão.
“O nosso novo método fica entre um e outro. É menos preciso do que o primeiro e mais preciso do que o segundo. Também fica no meio-termo nos quesitos dificuldade e custo. Além disso, como o cristal de quartzo é um material muito resistente, não existe o risco de ele ser degradado na coluna de sedimentos como pode ocorrer com as moléculas orgânicas do primeiro método. E, como se baseia nas propriedades intrínsecas desses cristais, também não existe o risco de ele ser afetado por fatores externos, como a elevação do nível do mar, tal como ocorre com o segundo método. Não se trata de substituir um método por outro. Eles são complementares e devem ser usados conforme as necessidades”, disse Mendes.
O grupo também avalia a possibilidade de construir um escâner de luminescência para testemunhos marinhos.
“Embora o equipamento usado na medição da sensibilidade à luminescência seja sofisticado, o procedimento laboratorial envolvido é relativamente simples e rápido e os minerais alvos são os mais comuns em sedimentos vindos do continente. Com isso, o método desenvolvido pelo Vinícius promete tornar-se, de agora em diante, uma rotina no estudo da paleoprecipitação com base em testemunhos marinhos na área de influência de grandes rios”, disse Giannini.
O artigo Thermoluminescence and Optically Stimulated Luminescence Measured in Marine Sediments Indicate Precipitation Changes Over Northeastern Brazil pode ser lido em https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1029/2019PA003691.
A matéria de divulgação A New Proxy for Past Precipitation, publicada em Research Spotlights, pode ser lida em https://eos.org/research-spotlights/a-new-proxy-for-past-precipitation.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
Como citar esta notícia científica: Agência FAPESP. Novo método de análise de sedimentos marinhos contribui para reconstituição do paleoclima. Texto de José Tadeu Arantes. Saense. https://saense.com.br/2019/09/novo-metodo-de-analise-de-sedimentos-marinhos-contribui-para-reconstituicao-do-paleoclima/. Publicado em 18 de setembro (2019).