Agência FAPESP
08/01/2020
Carlos Fioravanti | Pesquisa FAPESP – A agrônoma austríaca Ana Maria Primavesi chegou ao Brasil com o marido, Artur, em 1948, depois de o governo da Áustria ter confiscado a propriedade rural de que cuidavam, na divisa da República Tcheca com a Polônia. Uma vez em terras brasileiras, começou a abrir caminho para a agricultura ecológica, também chamada de orgânica, biológica e biodinâmica, que pressupõe cuidados intensivos da vida do solo e o manejo adequado de plantas, dispensando o uso de defensivos químicos (agrotóxicos). Reconhecida como uma autoridade internacional nessa área, Primavesi morreu no dia 5 de janeiro de 2020, aos 99 anos. Deixa três filhos, Odo, Carin e Artur (já falecido), seis netos e sete bisnetos.
Ela escreveu nove livros como única autora – um deles traduzido para o espanhol e outro para o alemão – e dois com o marido. Em seu livro de maior impacto, Manejo ecológico do solo: A agricultura em regiões tropicais (Nobel, 1980), ela reuniu conceitos defendidos por professores de seu curso de agronomia em Viena, na Áustria, e por professores alemães. Na obra, Primavesi apresentou as conclusões sobre as técnicas de manuseio de solos de climas tropicais, que, a seu ver, deveriam ser diferentes das empregadas em áreas sob clima temperado, até então adotadas no Brasil, com o uso intensivo de fertilizantes químicos. Primavesi argumentava que não era necessário aerar o solo a profundidades de até 25 centímetros, como se fazia na Europa para degelar o solo após o inverno, e, diferentemente do que se praticava no Brasil, a terra deveria ser revolvida o mínimo possível.
“Ela sempre dizia: ‘O solo é um organismo vivo’”, relembra seu filho, o engenheiro-agrônomo Odo Primavesi, pesquisador aposentado da Embrapa Pecuária Sudeste, em São Carlos, interior paulista. “Com isso, ela queria destacar a importância dos microrganismos e das interações biológicas, desvalorizadas na Revolução Verde”, explicou. Revolução Verde é como foi chamado o conjunto de práticas adotadas na década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa para aumentar a produção agrícola, com base em sementes híbridas, fertilizantes químicos e mecanização. “Nos embates com professores que tinham a visão tradicional, ela não brigava, mas apresentava respostas científicas para mostrar as relações entre solo, microrganismos, plantas e microclima. Ela tinha uma visão de conjunto”, diz ele.
Em suas apresentações para agrônomos e agricultores – era uma palestrante assídua nos encontros anuais da Associação de Agricultura Orgânica, da qual foi uma das fundadoras –, Primavesi explicava os benefícios da biodiversidade. Segundo ela, quanto mais espécies vegetais em uma área, maior seria o número de espécies de organismos, sem oportunidade para se desenvolver uma dominante, que acabaria se tornando prejudicial – uma praga – para as plantações. Em ambientes sadios, ela argumentava, não haveria pragas ou doenças.
Primavesi sugeria mexer o mínimo possível no solo. “Os nutrientes deveriam ser aportados aos poucos, de forma menos concentrada e menos solúvel”, recorda o engenheiro-agrônomo Manoel Baltasar Baptista da Costa, professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – onde ajudou a criar o curso de agricultura ecológica –, que atualmente leciona no Centro Universitário Hermínio Ometto (Uniaras), em Araras, interior paulista. “Uma das técnicas que ela difundia para proteger as plantas contra pragas e doenças era o uso de um biofertilizante feito com esterco bovino fermentado durante 30 dias, aplicado sobre as folhas.”
Costa trabalhou com Primavesi a partir da década de 1970 organizando cursos para agricultores, por meio do Grupo de Estudos de Agricultura Alternativa da Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado de São Paulo. “Ana Maria concebeu um tipo de agricultura que não era ensinado no Brasil. Ela convencia agricultores porque tinha experiência prática e formação científica sólida”, diz ele.
Primavesi e o marido, que conheceu no curso de agronomia em Viena, após chegaram ao Brasil, trabalharam inicialmente com cana-de-açúcar em Passos, Minas Gerais. Depois, de 1952 a 1961, aplicaram os conceitos de agroecologia para recuperar terras degradadas e cultivar trigo sem ferrugem, uma doença comum a essa cultura, nos municípios paulistas de Sorocaba e Itaberá. “Esses trabalhos validaram suas ideias sobre o ambiente tropical”, diz Oto.
Em seguida, como professores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, criaram o primeiro curso de pós-graduação em agricultura orgânica em base ecológica. Depois que o marido morreu, em 1977, ela se mudou para um sítio em Itaí (SP), onde novamente aplicou seus preceitos agrícolas. Em três décadas, recuperou as nascentes, as matas e as áreas agricultáveis, antes muito erodidas. Ali viveu até poucos anos antes de morrer.
Sua biógrafa, a geógrafa Virgínia Mendonça Knabben, autora do livro Ana Maria Primavesi: Histórias de vida e agroecologia (Expressão Popular, 2016) e de um artigo publicado na revista Estudos Avançados, em maio/agosto de 2019, a descreve como criativa e habilidosa, que cozinhava e costurava bem, sempre ao lado do marido, que ajudava no preparado das plantações, na manutenção das máquinas e na redação. Também gostava de dançar valsas vienenses.
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Como citar esta notícia: Agência FAPESP. A guardiã dos solos. Texto de Carlos Fioravanti. Saense. https://saense.com.br/2020/01/a-guardia-dos-solos/. Publicado em 08 de janeiro (2020).