UnB
10/01/2020
Reuber Brandão
Olhe
com atenção para o aparelho que você tem em frente ao seu rosto. Seja ele um
notebook ou um celular, ele possui diversas capacidades, extremamente
valorizadas por você. Este equipamento permite que você veja fotos, se conecte
com a rede mundial de computadores, assista a centenas de filmes, que você ouça
suas músicas preferidas, receba notícias, mantenha contato com pessoas
distantes. Por ele, você se alegra, se inspira, se manifesta, se entristece, se
apaixona. Certamente, não é apenas uma máquina. É algo mais, ao qual você se
apega fortemente.
Agora, imagine que você desmonte, com zelo, minúcia e cuidado, o seu
equipamento, peça por peça. Você pega todos os componentes – do parafuso mais
ordinário ao processador mais complexo – e coloca cada uma dessas peças em uma
caixa. Agora, você olha para a caixa com atenção. Você não tem mais acesso à
internet, não escuta músicas, não recebe a ligação de pessoas queridas. Apesar
de todas as peças estarem ali, definitivamente, você não tem um computador ou
smartphone.
O som, a imagem, a luz, o processamento, a conectividade e diversas outras
funções executadas são propriedades emergentes de seu sistema computacional.
Propriedades emergentes surgem como resultado da interação de diferentes partes
de sistemas complexos. Elas nos mostram a importância da interação entre os diferentes
componentes do sistema, pois o resultado dessa interação é maior que a simples
soma das partes.
A emergência de propriedades inesperadas é uma das principais características
dos sistemas complexos. Uma pessoa que vê um computador pela primeira vez é
simplesmente incapaz de compreender todas as possibilidades do aparelho olhando
apenas para a aparência das peças. No entanto, o computador terá todas as suas
funcionalidades disponíveis, mesmo que você não saiba quais são essas
possibilidades.
Agora, imaginemos que, por alguma razão, você resolva eliminar algumas peças de
seu computador. Tirando alguns dos parafusos que seguram a carenagem, pouca
coisa acontece. Dependendo da quantidade de peças que você remove e do que você
retira, ele já apresenta problemas. Assim como computadores, os ecossistemas
também dependem da estrutura, função e composição de seus componentes para
produzirem suas propriedades emergentes.
Diversos estudos têm se ocupado em mensurar a escala de grandeza e a valorar
serviços ecossistêmicos tais como a polinização, a produção de solo, a
infiltração e evaporação de água, o controle de pragas. No entanto, diversas
pessoas que eventualmente leem a palavra “polinização” não percebem a real
dimensão dessa propriedade dos ecossistemas. A polinização envolve a atividade
e o complexo ajuste entre diversas espécies de aves, morcegos, insetos e
plantas. Segundo um relatório produzido pela Plataforma Brasileira de
Biodiversidade e Serviço Ecossistêmicos, apenas a atuação dos polinizadores geraram
para a agricultura nacional mais de R$ 40 bilhões em 2018.
Agora vamos imaginar que fôssemos capazes de separar todos os elementos dos
ecossistemas, um a um. Esses elementos desassociados já não serão capazes de
realizar nenhum serviço ecossistêmico. Mesmo coleções de organismos vivos, como
observamos em zoológicos ou orquidários, por exemplo, são praticamente
incapazes de exercer qualquer serviço ecossistêmico. O ecossistema vai produzir
propriedades emergentes quando suas peças interagirem na captura,
transformação, armazenamento e transmissão de energia em um sistema amplamente
interconectado.
Olhe novamente para o seu computador. Imagine que ele perdeu 10% de todas as
peças. O que você espera da capacidade desse equipamento continuar
“trabalhando”? Não muito, acredito eu. No entanto, é exatamente essa
porcentagem de peças que a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e
Serviços Ecossistêmicos estima estar ameaçada de desaparecimento no planeta. Se
existe na Terra algo em torno de 10 milhões de espécies, estamos falando no
desaparecimento de 10% das plantas e animais do planeta. Não se sabe quais
serão os efeitos da perda desses componentes nas propriedades emergentes dos
ecossistemas naturais e na manutenção da qualidade da vida humana e não-humana
em futuro próximo.
No entanto, nenhuma analogia é perfeita. No caso de um computador com
problemas, podemos adquirir peças novas no mercado. Embora possamos atuar,
através de técnicas de manejo, no funcionamento dos ecossistemas, não podemos
simplesmente ir no mercado e comprar um predador topo de cadeia. Tal situação é
ainda mais alarmante quando pensamos do ponto de vista de falência de sistemas
agrícolas. É estimado que apenas a polinização responda por US$ 577 bilhões por
ano na produção agrícola mundial, mas cerca de 16% dos animais polinizadores
estão ameaçados de desaparecimento.
Alguém pode perguntar: “Mas porque o colapso dos ecossistemas ainda não
aconteceu?”. Essa é uma boa pergunta e envolve também propriedades emergentes.
A regeneração de áreas degradadas, a depuração da poluição em rios e mares, a
migração, a colonização e até mesmo a adaptação são propriedades emergentes dos
ecossistemas e, em diferentes escalas, são responsáveis por evitarem que ocorra
o imediato colapso dos ecossistemas naturais.
O fato de um computador incompleto ligar quando colocado na tomada não
significa que ele vá funcionar a contento. Da mesma forma, é comum ouvirmos
pessoas equivocadas dizerem que os ecossistemas naturais com os quais têm
contato estão funcionando pela presença de alguns elementos naturais. Você pode
chegar em um ambiente e ver plantas e animais e achar que a natureza está em
“equilíbrio”, quando os componentes que você enxerga são espécies invasoras em
um ambiente degradado ou apenas os últimos indivíduos de uma população sofrendo
constante declínio populacional em um ecossistema esquálido.
Humanos são conhecidos pela capacidade de adaptação a diferentes condições.
Vejamos como iremos nos adaptar à perda das propriedades emergentes sobre as
quais construímos nossos ecossistemas artificiais. [2]
[1] Imagem de enriquelopezgarre por Pixabay.
[2] Reuber Albuquerque Brandão é graduado em Biologia (1995) e doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (2002). Foi Analista Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), onde atuou na coordenação de criação e regularização fundiária de unidades de conservação e na coordenação de gestão do conhecimento da Diretoria de Ecossistemas. É professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade e Brasília, coordena o Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação e orienta nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Florestais e Zoologia. Possui experiência em políticas públicas de conservação e experiência científica em Ecologia.
Como citar este artigo: UnB. Computadores e serviços ecossistêmicos. Texto de Reuber Albuquerque Brandão. Saense. https://saense.com.br/2020/01/computadores-e-servicos-ecossistemicos/. Publicado em 10 de janeiro (2020).