UnB
04/02/2020

Foto: marco monetti, Flickr, CC BY-ND 2.0

Lourdes Maria Bandeira

Foi criada a Lei 13.104, de 09 de março de 2015, que alterou o código penal brasileiro para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, o feminicídio, isto é, quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Definido no § 2º, o crime ocorre em duas hipóteses: a) no caso de violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher; isto é, o assassinato de uma mulher cometido por “razões da condição de sexo feminino“, cuja pena prevista nesses casos é de 12 a 30 anos de reclusão. Assim posta, a Lei entrou em vigor, no Distrito Federal e demais Brasil. A lei por si mesma tem potencialidade de mudança?

Os crimes presentes no Distrito Federal – Uma das muitas manchetes publicadas pelo do Correio Braziliense – Cidades, assim se expressou, em 12/09/2019:[1]Em 2019, uma mulher foi vítima de feminicídio no DF a cada 13 dias.

A situação que ocorre no Distrito Federal, em relação ao crime de feminicídio é bastante peculiar, ou seja, um ano após a publicação da lei (2016) já foram registrados 21 casos, de janeiro a dezembro, isto é, 3,5% do total de homicídios ocorridos no DF (603 vítimas de homicídio). Em 2017, ocorreram 18 crimes de feminicídio, no período de janeiro a dezembro, equivalente a 3,5% do total de homicídios ocorridos no DF (508 vítimas de homicídio). Tratando-se de um número expressivo destes crimes foi o que levou, em boa medida, a Polícia Civil a acatar a recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir da publicação: Diretrizes Nacionais Feminicídio. Investigar, Processar e Julgar com perspectiva de Gênero as mortes Violentas de Mulheres (Abril, 2016), no sentido de desenvolver a investigação com sensibilidade voltada para observar as relações de gênero, centradas nas relações de poder e de misoginia que vem caracterizando este tipo de crime, quando se trata de relações interpessoais ou de conjugalidade.

A partir de 2017 toda a morte de mulher, no Distrito Federal inicialmente, passa a ser nominada de crime de feminicídio até ser concluída a investigação, o que  nem sempre é confirmada. Ocorreu recentemente que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) entrou com recurso pedindo novo julgamento de crime feminicídio, em um caso ocorrido no Gama (2019); pois, apesar do acusado “ter sido denunciado por homicídio triplamente qualificado, incluindo feminicídio, o réu foi condenado a uma pena de oito anos de prisão em regime semiaberto, por lesão corporal seguida de morte. Os jurados desclassificaram o crime para homicídio culposo, quando não há intenção de matar”.[2] Tal posicionamento indica como estes jurados representam a predominância de traços patriarcais nas relações interindividuais, isto é, de relações de poder e ‘dominação masculina’, cuja situação de subordinação e de opressão das mulheres acabou por predominar.

A consequência é que cerca de 70% dos assassinatos de mulheres ocorridos em 2017 estão postos na vala de crimes letais comuns, sendo investigados sem a qualificadora de gênero, o que agravaria a pena daqueles condenados pelo crime.[3] Fato que acabou de ocorrer no Distrito Federal.

Em 2018, foram registrados 28 crimes de feminicídio, o que representa no período de janeiro a dezembro um percentual 6,2% do total de homicídios ocorridos no DF (453 vítimas de homicídio).[4] Por fim, em 2019, foram assassinadas 32 mulheres (de 04/01 a 23/11/2019), cujo percentual, provavelmente aumentou em relação ao número de homicídios cometidos, no DF, ainda não contabilizados.

Na leitura dos crimes ocorridos em 2019, no DF, destaca-se o que é transversal nas 32 situações tipificadas de feminicídio. Em relação ao seu enquadramento midiático, fonte destas informações, pode-se observar que há semelhanças quanto ao modus operandi usado nos crimes, a saber: via de regra, predomina o uso de arma branca, sobretudo da faca presente em (45%) dos crimes, cujo número de facadas vai de uma a cinco, praticadas nos corpos femininos; segue-se o número elevado do uso de armas de fogo (26%) com disparos de tiros no rosto, tórax e nas parte íntimas dos corpos; somado o restante (29%) envolvem a junção do uso de asfixia, enforcamento, estrangulamento, seguido da queima de parte os corpos das mulheres. A maioria das ‘vítimas’ são esposas-mães, casadas com até 20 anos de união, seguidas por idosas, avós, irmãs e filha(s)/filho(s). Aproximadamente 30% destes crimes foram cometidos na presença de filhos e filhas menores, e mais de 50% ocorreram no interior do espaço familiar-doméstico. Das informações presentes nas notícias, estas mulheres deixaram um total de 24 filhas e filhos órfãos.

Quem são as ‘mulheres que morrem’? – Destas 32, chama atenção a idade, pois, verificou-se que:  i) de 20 a 30 anos: 34,3 % (11 casos); ii) de 31 a 50 anos: 43,8% (14 casos); iii) + de 50 anos: 21,9% (7 casos). A precocidade da morte indica que são mulheres que tem a vida ceifada ainda jovens que estão em plena ativa reprodutiva e também a maioria está engajada em algum tipo de atividade ou de trabalho.

Quem são ‘os homens que matam’? –  Em mais de 50% são maridos, companheiros, namorados, amantes e todos os ex. Poucas são as informações ou características explicitadas sobre os criminosos. Menos de um quinto são homens ‘estranhos’ ou ‘desconhecidos’ e ainda não foram identificados. A condição racial/étnica também não é registrada, nem em relação às mulheres mortas, e nem em relação aos suspeitos ou criminosos.

As motivações ou razões dos crimes presentes nas notícias analisadas são perpassadas por relações de poder, seja de maneira direta ou indireta, que apesar de não explicitadas, caracterizam crimes de ódio e misóginos. As ‘causas’ noticiadas para justificar a motivação do crime, que na maioria das vezes, reproduz as informações policiais, informam como as mais frequente: –  a não ‘aceitação da separação’, ou seja, a mulher é vista como se fosse um objeto material de pertencimento, que o homem pode dispor da maneira que lhe agradar, e portanto, não aceita que queira romper com a relação. Nesses casos é anulada a vontade própria da mulher, sendo ela coagida a permanecer com o marido, companheiro ou namorado, embora se recuse a manter a relação: consequência, que acaba por ser morta, na maioria das vezes.

Dos 32 crimes acima, quatro delas realizaram B.O. na DEAM, o que efetivamente não resolveu, pois acabaram sendo mortas. Ciúmes, adultério, traição, desonra masculina, terrorismo patriarcal têm sido outros fatos mencionados como causadores do crime. No entanto, destaca-se que em mais de 50% destes crimes, as mulheres vivenciaram [e vivenciam] uma ‘trajetória’ de violências, agressões e humilhações, tanto em relação à família de origem como à atual. Pois, quando chega-se as vias de fato, é porque uma ‘série’ de outras violências já havia ocorrido. Violência psicológicas, sexuais, como físicas, todas, de alguma maneira, já atingiam as condições de sua integridade com reflexos na sua saúde, como no seu desempenho profissional.

Portanto, o que chama atenção é a intensidade do fenômeno que vem ocorrendo no DF, o que ocasionou a instalação pela Câmara Legislativa do DF da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Crimes de Feminicídio (CPI) no Distrito Federal, em novembro de 2019. Vale registrar que a CPI resultou da mobilização da sociedade civil para exigir ações mais enérgicas de combate aos crimes de violência de gênero. Pois, para exemplificar a tragédia brasileira, no decorrer da década (2006 a 2016), segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2018) foram registrados 48.701 homicídios de mulheres (4,87 por 100 mil mulheres), o que não quer dizer que todos estes crimes podem ser tipificados como crimes de feminicídio.

Assim, a violência contra as mulheres recentemente tipificada pelo crime de feminicídio, a qual representa o assassinato de mulheres, por serem mulheres, viola sua integridade física e emocional, seu direito à vida, à liberdade, e, é no combate a esta tragédia que a instalação da CPI poderá abrir uma esperança para erradicar esta violência de gênero no Distrito Federal. [5]

[1] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/09/12/interna_cidadesdf,782082/a-cada-13-dias-de-2019-uma-mulher-foi-vitima-de-feminicidio-no-df.shtml. Acesso: 24/01/2020).

[2] Disponível em: http://radios.ebc.com.br/reporter-nacional-brasilia/2020/01/o-ministerio-publico-entrou-com-recurso-para-que-seja-realizado. Acesso em 22/01/2010.

[3] Disponível em: https://epoca.globo.com/apenas-3-em-cada-10-assassinatos-de-mulheres-sao-legalmente-enquadrados-como-feminicidio-no-brasil-22966910. Acesso 25/01/2020.

[4] Estes dados de 2016 a 2018 foram retirados do Relatório de Análise de Fenômenos de Segurança Pública nº. 001/2019 – COOAFESP/SGI- Data: 11JAN2019. Título: CRIMES DE FEMINICÍDIO TENTADO E CONSUMADO NO DISTRITO FEDERAL – Acompanhamento desde a edição da Lei de Feminicídio (março/2015) e especialmente o comparativo do ano de 2018 com o mesmo período do ano anterior. Os dados relativos ao ano de 2019 foram coletados pela autora, nos veículos de comunicação do DF.

[5] Lourdes Maria Bandeira é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Mulher – NEPEM/UnB. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Sociologia pela UnB, doutora em Antropologia – Université René Descartes e pós-doutora na área de Sociologia do Conflito na École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS. Atua nos temas: conflito, violência nas relações de gênero, cidadania, mulheres, feminismo e políticas públicas. Ex-secretária de Planejamento e Gestão e ex-secretária adjunta da Secretaria de Políticas para Mulheres-SPM/PR.

Como citar este artigo: UnB. Crimes de feminicídio ocorridos no Distrito Federal em 2019. Texto de Lourdes Maria Bandeira. Saense. https://saense.com.br/2020/02/crimes-de-feminicidio-ocorridos-no-distrito-federal-em-2019/. Publicado em 04 de fevereiro (2020).

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