UFMG
18/03/2020

Luxor, Egito. [1]

A arqueologia é dessas ciências que povoam nosso imaginário desde a infância. As pirâmides, os sarcófagos e os hieróglifos fazem parte das nossas vidas. Elas estão dentro das nossas casas, em papiros nas paredes ou em amuletos de quartzo. Também estão em tatuagens, adereços e estampas. O Egito antigo é mais presente nas nossas vidas do que a história indígena que inaugurou o povoamento da América, e isso fala muito sobre a ideia de arqueologia que circula entre nós.

Sou arqueóloga, há décadas, e confesso que nunca havia planejado visitar o Egito. Aqui na UFMG, no Departamento de Antropologia e Arqueologia, acabei compartilhando gabinete com o arqueólogo José Roberto Pellini, coordenador do primeiro projeto brasileiro de arqueologia no Egito, o Bape (Brazilian Archaeological Program in Egypt), que hoje conta com participação da Universidade Nacional de Córdoba (UNC), da Argentina, e do Ministério de Antiguidades do Egito. Atualmente, o projeto resiste aos graves cortes de verba de pesquisa no país graças ao apoio da UFMG e da UNC, assim como ao aporte de recursos próprios da equipe. 

Foi por convite do professor Pellini que participei recentemente da expedição 2019-2020 do Bape. Passamos cerca de 40 dias no Egito, período muito intenso em que visitamos pirâmides, templos, tumbas e museus. Rodamos mais de 1 mil quilômetros ao longo do Rio Nilo, do Cairo até Abu Simbel, no limite sul do Egito, perto da fronteira com o Sudão. Passamos quase metade desse período trabalhando diariamente na necrópole tebana, em Luxor, onde está localizada a tumba TT 123, o sítio arqueológico estudado pelo projeto nos últimos anos.

Essa experiência foi absolutamente fascinante para mim e, passadas já algumas semanas do meu retorno, continuo profundamente envolvida com as coisas que eu vi, senti e experimentei no Egito. É óbvio que ver as pirâmides (e entrar nelas!) é muito emocionante; é como se estivesse em um filme. E olhar de perto o tesouro da tumba de Tutankhamon, que está exposto no Museu Egípcio no Cairo, também foi uma experiência incrível. De fato, eu podia ficar mais uns três mil anos dentro do museu!

Perdi as contas de quantas tumbas e templos eu visitei, mas nem por isso deixei de me encantar diante de cada uma delas (e me encantei vezes seguidas com aquelas a que pude retornar). As cores são vibrantes, e os desenhos são tão detalhados que dá para identificar cada espécie de peixe, de pássaro, de planta. Tem pessoas de diferentes cores, formas e tamanhos. Tem registros de cenas de caça, de guerra, de festa, parto, sexo, rituais. Em meio a isso tudo, ainda existem tumbas inacabadas, que nos ensinam detalhes de como eram feitas, dá para ver os rascunhos de desenhos, os erros e as correções. Conhecendo esses lugares dá para sentir a vida pulsante de cinco mil anos atrás. É muito poderoso. Mas é também o grande clichê da arqueologia – e do próprio Egito.

O Egito que conheci e a arqueologia que me interessa vão muito além das pirâmides. Foi ali, na vida cotidiana, caminhando pelas ruas de terra dos bairros afastados do eixo turístico, que encontrei outros lugares de encantamento. Fui recebida em casas de pessoas locais. Tomamos chá, partilhamos silêncios entre sorrisos e palavras soltas, naquela estranha língua que só quem se dispõe a comunicar consegue entender. Deve ser a língua da empatia, do afeto, quando a falta de uma língua falada deixa de ser sentida.

Eu brinquei com crianças e desfilei com adolescentes. Eu amassei pão, fiz cerâmica, pilei temperos. Eu fui levada para os quartos mais íntimos, onde me vestiram e cobriram minha cabeça com lenços delicados. Fui alvo de muitas fotos em celulares, mas nem sempre pude fotografar em reciprocidade, como se o limite das nossas trocas estivesse ainda em avaliação.

Há quem duvide que isso seja pesquisa, ou que seja arqueologia. Quem pensa assim não entendeu ainda que pesquisar é conhecer, mas também é se deixar conhecer. Para mim, não faz sentido fazer pesquisa arqueológica em um lugar e desconhecer o modo como vivem as pessoas daquele lugar. No Egito, onde a arqueologia está em todos os lugares (está até nas nossas casas aqui no Brasil!), criar relações com essas pessoas, ser levada para dentro de suas casas é uma parte essencial do que me interessa como pesquisadora. Ali eu aprendo, aos poucos, a ser gente. Não uma gente genérica, universal, mas uma gente situada, enraizada naquele lugar. Esse movimento, que vem atingindo todas as ciências, constrói críticas contundentes sobre ideias antigas de que existe um conhecimento universal, que esteja desconectado de contextos sociais, políticos, culturais, ambientais. Todo conhecimento – e a ciência é só mais uma forma dele – só existe no emaranhado de onde ele surgiu.

Se o Egito antigo me fascinou com sua exuberância e monumentalidade, foi ao lado dos que lá residem – em casas de adobe na periferia de Luxor – que eu entendi qual arqueologia me interessa praticar no Egito e com o Egito. Não é a arqueologia dos achados fantásticos – ainda que eu seja fascinada por eles, como todo mundo. É a arqueologia dos achados sensíveis, das trocas afetivas. Uma arqueologia no presente, que nos ajude a entender melhor como o passado constrói as nossas vidas hoje. Quem sabe, com arqueologias desse tipo, a gente também aprenda, aqui no Brasil, a construir futuros em que nossos povos originários – os povos indígenas – sejam tão presentes quanto os olhos de Horus tatuados na pele. 

(Mariana Petry Cabral, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich)

[1] Imagem de マサコ アーント por Pixabay.

Como citar este artigo: UFMG. Muito além das pirâmides. Texto de Mariana Petry Cabral. Saense. https://saense.com.br/2020/03/muito-alem-das-piramides/. Publicado em 18 de março (2020).

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