Jornal da USP
06/04/2020
Por José Ernesto Belizário, professor colaborador no HCFMUSP
Os vírus são e continuam a ser uma grande ameaça para a humanidade. Temidos por povos e governantes, os vírus são mais poderosos e letais que arsenais de armas nucleares e mais exterminadores que os tiranos e terroristas da era arcaica e contemporânea. Ao longo dos séculos, aprendemos a prever e lidar com as grandes catástrofes mais primitivas da natureza, como terremotos, incêndios e tsunamis. Ainda temos muito a aprender com as catástrofes biológicas, como epidemias, pestes e doenças causadas por infecções viróticas e bacterianas. E a explicação é simples: a mente humana ainda não é capaz de assimilar e compreender o comportamento evolutivo de certos fenômenos biológicos, cujos princípios poderiam ser aplicados na previsão ou prevenção.
A inteligência artificial (AI) poderia ser uma solução para avaliar a previsibilidade de fenômenos naturais se pudesse aprender coisas novas sem informações prévias. Segundo o matemático Thomas Hobbes (1588-1679), “a previsão é muitas vezes a principal causa do acontecimento previsto”. No momento estamos enfrentamos uma realidade e não uma ficção científica, e a situação atual nos fez criar novos paradoxos e, assim, podemos agora dar um passo adiante.
Os vírus são considerados parasitas e só sobrevivem no interior de células de organismos vivos: humanos, animais e plantas. Vírus são usados para manipular e investigar funções nas células, inclusive para curar células doentes (terapia gênica). Existem dois tipos de vírus, os vírus de DNA e os de RNA, que são as moléculas que operam no interior das células humanas, apoderando-se da sua maquinaria para replicar milhares de novas cópias de DNA, RNA e das proteínas necessárias para o encapsulamento de novos pacotes de vírus funcionais, prontos para infectar outras células.
A forma mais simples de combater os vírus é a imunidade, que de uma maneira simplificada é a capacidade das células de defesa do organismo em reconhecer elementos estranhos nas proteínas virais e gerar proteínas com grande especificidade de ligação contra elas, os denominados anticorpos. Antes desse período de síntese de anticorpos específicos (a partir da terceira semana), células de defesa, como células dendríticas (DC) e linfócitos natural killer (NK), entre outros, reconhecem e matam as células infectadas, através da liberação de substâncias citotóxicas, enzimas e proteínas que interferem na replicação viral, como o fator de necrose tumoral (TNF), granzimas e interferons.
Essa capacidade de defesa inata e primeira frente de combate pode ser suficiente para eliminar completamente uma infecção viral em uma pessoa sadia. Mas essa defesa inata pode se tornar insuficiente em pacientes com algum tipo de doença preexistente e os imunodeficientes. Os vírus podem viver transitoriamente dentro das nossas células e serem completamente eliminados após algumas semanas ou meses. Porém, certos vírus (isto é, seu DNA/RNA) podem ser incorporados ao DNA das células e, dessa forma, permanecer para sempre.
O nosso genoma está repleto de fragmentos de milhares de fósseis de vírus ancestrais denominados retrovírus, que felizmente são inativos. É interessante que as bactérias também armazenam fragmentos de vírus bacterianos (bacteriófagos), e que são úteis no combate à reinfecção viral através do sistema de imunidade adquirida denominado CRISPR/cas 9 (clustered regularly interspaced short palindromic repeats).
O que acontece quando um vírus se torna residente ou aquilino das nossas células? Vamos a um caso bem comum, os vírus da herpes. A grande maioria da população está infectada pela forma latente de um ou mais dos oitos tipos do vírus herpes. Quando reativado, o herpes simplex (uma das formas) causa lesões na boca e genitais, que desaparecem em uma semana. Já o herpes zóster causa a varicela em crianças. Para herpes zóster temos uma vacina bem eficaz, e muitas vezes as lesões da varicela nos vacinados podem nem chegar a ser notadas e diagnosticadas. No caso do vírus da zica, a sequela mais grave é a microcefalia congênita e irreversível. A estimativa de chance de o bebê nascer com microcefalia é da ordem de 6% a 12% dos casos de mães infectadas.
Em 1911, Payton Rous descobriu que um vírus, chamado de vírus do sarcoma de Rous, era o agente transmissor de câncer em galinhas. Logo em seguida foram descobertos vários tipos de vírus que causam câncer nos humanos. O papilomavírus humano (HPV) é uma família de mais de 40 vírus que infecta pele ou mucosas (oral, genital ou anal), tanto de homens quanto de mulheres, provocando verrugas anogenitais. Após a infecção, fragmentos de DNA do vírus são incorporados em vários locais do genoma humano. Esses pedaços de vírus podem ser reativados, produzindo proteínas que interferem com a divisão celular. Esse defeito proporciona a oncogene, um processo longo que leva à formação do câncer do colo do útero nas mulheres, e vários outros tipos de câncer em homens e mulheres. São dezenas os vírus que podem causar câncer em animais e humanos. Os exemplos de grande interesse médico são: HPV, hepatite B e C, HTLV-1, HIV, HHV-8, EBV e CMV. A taxa de mortalidade de pacientes com câncer induzidos por oncogenes virais é ainda assustadora apesar dos recentes progressos no diagnóstico, prevenção e na terapia.
Gripes e resfriados são infecções respiratórias brandas a moderadas de curta duração causadas por uma série de vírus diferentes, entre os quais o vírus da família influenza e da família coronavírus[1]. Existem sete espécies de coronavírus originados de animais silvestres que, após sofreram mutações, passaram a causar doenças em humanos. As quatro primeiras espécies (HCoV-229E e HCoV-NL63, HCoV-OC43, HCoV-HKU1) causam apenas resfriados leves. SARS-CoV identificado em 2002 em Guangdong, China, é o agente causador da síndrome respiratória aguda severa; MERS-CoV, identificado em 2012 na Arábia Saudita, da síndrome respiratória do Oriente Médio; O SARS-CoV-2, isolado em 2019 na cidade de Wuhan, é o agente causador da doença covid-19 (corona virus disease 2019), uma doença pulmonar que causa febre, tosse, dificuldade para respirar e outras complicações que sabemos pouco. A infecção por SARS-CoV-2 (covid-19) é menos letal quando comparada ao SARS-CoV, que teve uma taxa de mortalidade ~10%.
É interessante mencionar que estudos genéticos apontam que a praga de Justiniano, uma pandemia ocorrida no Império Bizantino, reinado do imperador Justiniano I (r. 527-565), e a peste negra, ocorrida na Eurásia, entre os anos de 1346 e 1353, ambas causadas pela bactéria Yersinia pestis, teriam origem na China.
O que vai acontecer com as pessoas infectadas pelo coronavírus? Quais serão as sequelas provocadas pelo vírus? Até o momento, a sequela mais severa é o comprometimento dos pulmões. A função pulmonar pode cair de 20% a 30% no indivíduo curado. A cicatriz (fibrose) deixada no tecido pulmonar parece ser irreversível. Ainda é cedo para estimar outras sequelas no coração e rins, órgãos também afetados, e quais os métodos de prevenção e tratamento.
A gripe espanhola causada pelo vírus da influenza, da pandemia de 1918-1920, matou principalmente adultos jovens. Entre 1918 e 1919, aproximadamente 99% das mortes por influenza pandêmica nos Estados Unidos ocorreram em pessoas com menos de 65 anos e quase metade dos falecidos eram adultos jovens de 20 a 40 anos. A hipótese é que os idosos poderiam estar protegidos devido à exposição prévia aos antígenos virais durante pandemia de gripe de 1889 a 1890, conhecida como gripe russa. É exatamente o contrário o que está ocorrendo com a pandemia do coronavírus em 2020. Uma diferença fundamental entre o vírus da influenza e o coronavírus é o receptor na superfície da membrana que permite a entrada do vírus para dentro das células. No caso da influenza, o receptor é a proteína hemaglutinina, enquanto no caso do coronavírus é a enzima conversora de angiotensina (ACE-2). Existe uma grande variação na glicosilação (adição de açucares) em células senescentes (células envelhecidas) que poderia explicar a eficiência da infecção em idosos. Por outro lado, a constante mutação evolutiva do genoma viral leva à perda de sítios de glicosilação das glicoproteínas antigênicas (por exemplo, a proteína spike), que pode alterar a efetividade (transmissão da doença) e a intensidade da resposta imunológica.
Sem uma vacina a curto prazo, temos que acreditar nos resultados clínicos com o uso da combinação de cloroquina, um fármaco antimalária, e azitromicina, um antibiótico usado para tratar infecção pulmonar bacteriana[2]. A cloroquina inibe a síntese de ácido siálico, um componente da estrutura da proteína ACE-2 presente no epitélio que cobre as vias aéreas, evitando a absorção do vírus. A cloroquina também aumenta o pH das vesículas contendo os vírus, inibindo a fusão da membrana celular e viral e a entrada para dentro da célula. Quais são as bases genéticas e bioquímicas para a eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19? Isso só saberemos com a experiência, provinda à luz das boas pesquisas científicas, e práticas clínicas, sem a intervenção da fé ou autoridade.
As vacinas baseadas no vírus da influenza (vírus inativado ou atenuado) têm sido eficazes no controle de surto de gripe[3]. Entretanto, morreram entre 290 mil a 650 mil por doenças respiratórias relacionadas à influenza no último ano (OMS, março 2019). Sem uma vacina contra as espécies de coronavírus já descritas e ativas, podemos investigar a resposta imunológica adquirida à covid-19 na população que sobreviveu após a infecção[4]. A dosagem de sorotipos (ou anticorpos) é usada para avaliar a resposta imunológica a vacinas ou infecção. A técnica é baseada na afinidade de ligação dos anticorpos ao seu alvo (determinante antigênico) e na sua capacidade de neutralizar os sintomas clínicos da doença e indução da memória imunológica. A imunização passiva com anticorpos da subclasse IgG neutralizantes é uma modalidade de terapia usada contra doenças infecciosas. A transferência de soro de pacientes curados para pacientes que estão desenvolvendo a forma grave da doença ainda não está aprovada.
Foram identificados apenas quatro sorotipos para as espécies de coronavírus causadores de resfriados leves (229E, OC43, NL63 e HUK1)[5]. Porém, ainda são poucas as informações de existência de reatividade cruzada desses sorotipos e a possível proteção para as formas graves de coronoviruses. Será possível que os anticorpos de doadores chineses ou italianos curados serão capazes de proteger os brasileiros infectados? Não sabemos. Dessa forma, esperamos contar com a generosidade e a solidariedade de brasileiros jovens infectados, que em breve passarão de um milhão, e da sensibilidade e especificidade de um teste diagnóstico rápido da presença de anticorpos neutralizantes.
A imunização passiva poderá reduzir o número de mortes dos mais idosos (pais, tios e avós), que são aqueles que nos levaram na infância ao posto de vacinação para tomar as gotinhas que salvam vidas. Por fim, talvez estas simples explicações possam alterar nossos pontos de vista, estimar o tamanho da nossa ignorância e reduzir as incertezas dessa pandemia.
[1] International Committee on Taxonomy of Viruses (ICTV). Virus Taxonomy: 2018b Release. Preprint at, https://talk.ictvonline.org/taxonomy/ (2019).
[2] Gautret et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial [2020 Mar 20]. Int J Antimicrob Agents. 2020;105949.
[3] Zheng & Perlman. Immune responses in influenza A virus and human coronavirus infections: An ongoing battle between the virus and host. Curr Opin Virol. 2018 February; 28: 43-52.
[4] Idem.
[5] Idem.
[1] Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Por que a covid-19 causa tanto medo? Texto de José Ernesto Belizário. Saense. https://saense.com.br/2020/04/por-que-a-covid-19-causa-tanto-medo/. Publicado em 06 de abril (2020).