Marcus Eugênio Oliveira Lima
07/06/2020
Um dia, durante a época em que fazia doutorado sobre racismo em Portugal, assistia a um programa infantil, quando vi uma cena na qual uma apresentadora branca brincava com crianças num auditório. Ela recebia a criança de uma de suas assistentes, fazia um ligeiro afago, e em seguida a colocava no chão para a brincadeira que se iniciaria. A apresentadora já havia recebido umas seis ou sete crianças brancas uma após a outra, a criança seguinte era uma menina negra. Foi evidente a mudança em todo o seu esquema gestual, além do afago, a apresentadora, que pareceu um pouco desconcertada, beijou a criança duas vezes antes de iniciar a brincadeira.
A cena acima ocorreu em 2001. Dezenove anos depois assisti outra, que vocês talvez achem que não tem nenhuma relação com a anterior, mas que, neste texto, tentarei mostrar que sim. Na última sexta feira, dia 24 de abril de 2020, o Ministro da Justiça Sérgio Moro anunciou sua saída do Governo e fez acusações graves contra o presidente da República. Algumas horas depois, o presidente Jair Bolsonaro fazia uma coletiva de imprensa com o objetivo de “reestabelecer a verdade”. Na coletiva, além do presidente, estavam o vice-presidente, Hamilton Mourão, e mais de 20 outros membros do alto escalão do governo. Ao final da longa e confusa [2] fala do presidente todos, como era de se esperar, aplaudiram. No entanto, chamou a atenção a reação mais entusiasmada do vice-presidente, que foi mais efusivo na sua manifestação de aprovação do discurso, dando muito mais que o aplauso protocolar que a fala talvez merecesse [3].
Importante referir que, dentre as mais de 20 pessoas na cena, duas chamavam especial atenção de todos: o presidente, que tentava se defender das acusações do ex-ministro, e o vice-presidente que, desde a saída de Moro, havia sido objeto de vários “memes” na internet, num dos quais emprestava seu rosto à imagem de um jogador de futebol em aquecimento para substituir alguém numa partida [4]. Não é de estranhar que durante o pronunciamento do presidente, o vice parecia um pouco incomodado, inquieto, talvez até desconcertado como a apresentadora portuguesa, sem saber bem como reagir diante dos holofotes que sabia estarem perscrutando suas emoções mais íntimas.
As duas cenas relatadas podem ser explicadas pelo mesmo fenômeno psicossocial, a amplificação de resposta, que ocorre em situações que envolvem sentimentos e pensamentos simultaneamente positivos e negativos acerca de um mesmo fenômeno ou objeto social. Algo expresso no dito popular: “É melhor pecar por excesso que por omissão”. No caso da apresentadora, a situação de ter no colo uma criança negra, depois de ter recebido e acarinhado várias brancas, possivelmente gerou um conflito entre, por um lado, sentimentos e crenças racistas alimentados pela cultura e muitas vezes interiorizados, e por outro, sentimentos e crenças positivos referentes à justiça e igualdade social presentes na norma antirracista. A ambivalência, então, produziu um exagero na expressão afetiva em relação à criança negra. Esse tipo de atitude é muito estudado na psicologia social do racismo, inclusive inspira uma importante teoria, a do racismo ambivalente [5].
No caso do vice-presidente Hamilton Mourão, que não havia achado positiva a saída do ministro Sérgio Moro [6], o “excesso” de entusiasmo com o discurso do presidente pode ter sido resultado da ambivalência entre, por um lado, sentimentos e pensamentos acerca do perfil que um presidente da República precisa ter, algo do tipo “como um jabuti sobe numa árvore tão alta”, confrontados, por outro lado, com as percepções do papel que cabe a um vice-presidente; ainda mais quando se trata de alguém treinado na ética militar do respeito e fidelidade às hierarquias. Também nesse caso, o exagero da reação comportamental, ou seja, a amplificação da resposta, foi produzida para reduzir a ambivalência entre sentimentos e pensamentos simultaneamente negativos e positivos.
Qualquer objeto social (pessoa, situação, grupo) acerca do qual devamos expressar uma atitude (i.e., avaliação e posicionamento) possui qualidades que podem ser interpretadas como positivas e negativas. Na extensão em que essas inconsistências não sejam resolvidas, o indivíduo pode possuir simultaneamente avaliações antagônicas sobre um mesmo objeto atitudinal. Em outras palavras, a atitude do indivíduo é ambivalente [7]. A ambivalência de sentimentos e atitudes é uma característica fundamental das interações sociais e os seus efeitos têm consequências sobre as mais variadas esferas da vida [8].
A ambivalência pode ser definida como um estado psicológico de instabilidade avaliativa e emocional que gera desconforto. O desconforto, por sua vez, produz reações para reduzir a auto percepção da ambivalência. Uma dessas reações é a “amplificação da resposta”, na qual o comportamento em relação a um objeto de avaliação é exagerado, seja numa direção positiva, seja numa direção negativa. O sociólogo Zygmunt Bauman concebe a ambivalência como uma característica central dos processos de linguagem nas modernas sociedades: “A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma da desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas.” [9]
O conceito de ambivalência atitudinal foi introduzido na psicologia social há, aproximadamente, 50 anos, por Scott (1968) e Kaplan (1972), para descrever a possibilidade de um indivíduo ter simultaneamente atitudes/afetos positivos e negativos em relação ao mesmo objeto atitudinal [10]. As pesquisas mostram que atitudes ambivalentes são menos acessíveis na memória, de forma que, geralmente, não as percebemos, são também mais propensas a mudar quando questionadas e, de modo geral, podem ser menos capazes de predizer os comportamentos a médio e longo prazo quando comparadas com atitudes univalentes [11].
A amplificação de resposta ou exagero comportamental tem como função superar o desconforto reduzindo a ambivalência [12]. De acordo princípios da teoria da dissonância cognitiva de Leon Festinger (1957), as pessoas, nessas situações de sentimentos opostos, seriam motivadas a resolver as avaliações conflitantes pelo exagero. Essa pressão é ainda maior quando as ações do objeto de avaliação (pessoa ou grupo) têm relevância hedônica para o avaliador. Não se espera que o exagero de resposta ocorra em indivíduos não ambivalentes em relação ao objeto de avaliação [13]. Importante referir, ainda, que a ambivalência se relaciona, mas difere substancialmente de uma variedade de outros fenômenos. A ambivalência é sobre oposições, e não simplesmente sobre inconsistências, como a dissonância cognitiva; ou sobre discrepâncias, como a dissonância emocional; ou sobre incertezas, como as ambiguidades; ou sobre o gap entre “falar e fazer”, como a hipocrisia [14].
Há vários tipos de manifestação da ambivalência. A ambivalência de comportamentos, caracterizada pela sobreposição de ações de aproximação-esquiva em relação a uma determinada pessoa ou experiência. A ambivalência de atitudes, referente a avaliações e disposições positivas e negativas simultâneas em relação a um objeto social. A ambivalência emocional, é resultante da vivência simultânea de emoções positivas e negativas acerca do mesmo alvo. As pesquisas mostram que todas essas formas de ambivalência seriam expressões de tensão e de conflito internos, que se manifestariam externamente nas expressões faciais, na postura corporal e no exagero comportamental. A ambivalência altera o tom de voz, produz movimentos corporais ora numa, ora noutra direção, leva as pessoas a mexerem mais suas mãos, a inclinarem a cabeça para frente e para trás. No rosto, ela produz movimentos na sobrancelha para cima e para baixo, com mudanças frequentes na direção do olhar. Todas essas expressões corporais de ambivalência, além do exagero comportamental no aplauso, podem ser observadas no vice-presidente durante o pronunciamento.
Portanto, a noção de ambivalência, junto com sua consequência visível de amplificação de resposta, pode nos ajudar a entender aspectos mais gerais das reações a grupos sociais, presentes no racismo e noutras formas de estigmatização; mas também iluminam aspectos mais específicos, das reações individuais a eventos, pessoas e situações. Quando os indivíduos envolvidos nesses processos são figuras públicas importantes, suas reações merecem ser interpretadas mais a fundo, porque elas podem ter impactos significativos no curso de acontecimentos coletivos.
Ambivalência e amplificação de resposta são um campo muito fértil para novas e boas reflexões psicossociais. Nos links abaixo você encontrará alguns textos para aprofundamento. Boas leituras!
[1] Imagem de Thomas Budach por Pixabay.
[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-faz-defesa-confusa-e-escorrega-ao-responder-a-moro.shtml.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=4dwRrtd_FhQ.
[4] https://portaldozacarias.com.br/site/noticia/nos-memes–mourao-ja-se-prepara-para-assumir-a-presidancia.-veja/.
[5] Katz, I., Wackenhut, J., & Hass, R.G. (1986). Racial ambivalence, value duality, and behavior. In J.F. Dovidio & S.L. Gaertner (Eds.), Prejudice, Discrimination, and Racism (pp. 35-59). Nova York: Academic Press.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/nao-e-bom-diz-mourao-a-folha-sobre-saida-de-moro-do-governo.shtml.
[7] Hogg, M. A. & Cooper, J. (2003). The sage handbook of social psychology. Londres: Sage publications.
[8] Conner, M., & Sparks, P. (2002). Ambivalence and attitudes. European Review of Social Psychology (Vol. 12, pp. 37-70). West Sussex: John Wiley & Sons.
[9] Bauman, Z. (1999). Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
[10] Pillaud, V., Cavazza, N., & Butera, F. (2018). The social utility of ambivalence: Being ambivalent on controversial issues is recognized as competence. Front. Psychol., 9:961.
[11] Jason K. Clark, Duane T. Wegener, & Leandre R. Fabrigar (2008). Attitudinal Ambivalence and Message-Based Persuasion: Motivated Processing of Proattitudinal Information and Avoidance of Counterattitudinal Information. PSPB, Vol. 34 No. 4, April 2008 565-577.
[12] David W. Bell e Victoria M. Esses (2002). Ambivalence and Response Amplification: A Motivational Perspective, PSPB, Vol. 28 No. 8, August 2002 1143-1152.
[13] David W. Bell & Victoria M. Esses (1997). Ambivalence and Response Amplification Toward Native Peoples. Journal of Applied Social Psychology, 1997, 27, 12, pp. 1063-1084.
[14] Rothman, N. B., Pratt, M. G., Rees, L., & Vogus, T.J. (2014). Understanding the dual nature of ambivalence: Why and when ambivalence leads to good and bad outcomes. Academy of Management Annals, 0066. R5. Retirado de https://www.researchgate.net/publication/312586071_Understanding_the_dual_nature_of_ambivalence_Why_and_when_ambivalence_leads_to_good_and_bad_outcomes.
Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. A amplificação de respostas: Efeitos da ambivalência de sentimentos e pensamentos na produção do exagero. Saense. https://saense.com.br/2020/06/a-amplificacao-de-respostas-efeitos-da-ambivalencia-de-sentimentos-e-pensamentos-na-producao-do-exagero/. Publicado em 07 de junho (2020).