Jornal da USP
22/07/2020
Um medicamento em última fase de testes clínicos contra o câncer mostrou-se eficaz no tratamento de sintomas causados pelo zika vírus. A droga, que por enquanto tem o nome de HP163, não só reverteu a microcefalia em filhotes de camundongos previamente infectados pelo patógeno, como também diminuiu a quantidade desses microrganismos presentes em órgãos importantes, como cérebro, olhos, baço e placenta. Os resultados foram publicados nesta segunda-feira (20) na revista científica Nature Neuroscience.
A pesquisa, realizada em parceria com a USP, Universidade de Buenos Aires, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Escola de Medicina Monte Sinai, em Nova Iorque, além da Escola de Saúde Pública da Universidade de Boston, partiu de uma hipótese que intriga cientistas desde que surgiram no Brasil as primeiras ocorrências de síndrome congênita do zika vírus, em 2014. Durante a epidemia, foram reportados casos de mulheres que, mesmo infectadas, geraram bebês sem microcefalia. “Isso indica que existe uma lacuna de resistência e suscetibilidade nessas mulheres, e o nosso ponto de partida foi tentar entender o que rege essa lacuna”, explica Jean Pierre Schatzmann Peron, coordenador do Laboratório de Interações Neuroimunes do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
O desenvolvimento de terapias efetivas contra a zika ainda requer um melhor entendimento da interação dos fatores do hospedeiro, ou seja, as características que afetam a suscetibilidade a doenças em comparação com outros indivíduos. Por isso, a primeira fase do estudo, realizado na Argentina como parte do doutorado de Federico Giovannoni, teve o objetivo de identificar mecanismos moleculares associados à replicação do vírus.
Trabalhando com hipóteses
O aril hidrocarboneto (AHR) é um receptor celular e está presente no citoplasma da célula. Quando ativado por um de seus vários ligantes presentes na natureza, ele migra para o núcleo e pode ativar ou desativar genes.
Estudos anteriores mostraram que o AHR é também um biomarcador para câncer. Níveis elevados do receptor foram encontrados em pacientes com leucemia, linfomas e também em cânceres de ovário e de pulmão.
Baseados nessas evidências, os pesquisadores queriam saber se o AHR também desempenhava um papel importante durante a síndrome congênita do zika. Eles infectaram células hepáticas – HepG2 – e precursoras neurais – as NPCs, que mais tarde vão dar origem aos neurônios -, e as compararam a dados disponíveis em bancos de dados internacionais. Foi utilizada uma técnica chamada de RNA-seq, que identifica, além de outras coisas, mutações e níveis de expressões gênicas. “Percebemos que o AHR estava ativo nessas culturas ”, diz Carolina Manganeli, biomédica do Laboratório de Interações Neuroimunes do ICB. “Partimos, então, para elucidar por quais mecanismos isso acontecia”, explica.
Os resultados das análises subsequentes mostraram que, quando o vírus entra na célula, o zika bloqueia a produção de duas substâncias usadas pelo sistema imune: intérferons do tipo 1 e a PML, que está envolvida em processos de morte celular programada, de expressão gênica e de supressão de tumores.
Zika em camundongos
Peron foi um dos participantes do estudo pioneiro, liderado por pesquisadores brasileiros, que comprovou a relação entre o vírus zika e o aumento de casos de microcefalia em bebês. Na época, o imunologista infectou camundongos e acompanhou a evolução da doença em filhotes até o nascimento. Os resultados, inéditos até então, mostraram que o zika tem tropismo para células precursoras neurais – as que mais tarde vão se transformar em neurônios. Tropismo é propensão que um vírus tem em infectar determinado tipo de célula ou tecido.
Por essa experiência anterior, Jean foi procurado para dar segmento à pesquisa com o AHR. A primeira fase dos estudos in vivo caracterizou-se por infectar camundongas prenhes e analisar se o receptor AHR estava ativado nesses animais. “Verificamos que a AHR estava funcionando, assim como os genes-alvos dela”, diz Peron. “Partimos, então, para a fase de acompanhamento da evolução da doença durante a gestação.”
Duas drogas foram utilizadas: a CH223191, a mesma utilizada nos experimentos in vitro; e outra, que por enquanto, é conhecida como HP163 e está na última fase de testes clínicos em pacientes com câncer. Esses dois medicamentos são antagonistas de AHR, ou seja, bloqueiam a atividade do receptor celular.
Os animais foram tratados um dia antes de serem infectados e, diariamente, recebiam doses dos medicamentos. A CH223191 reduziu a microcefalia e a carga viral do zika no cérebro e baço em alguns filhotes recém-nascidos. “Já os resultados com a HP163 foram gritantes”, comemora Carolina.
A administração da droga em camundongas prenhes reverteu a microcefalia, diminuiu a quantidade de vírus no cérebro, no olho, na placenta e no baço dos animais. “Além disso, os animais tratados ficaram exatamente do tamanho dos controles”. Carolina explica, ainda, que quando há infecção, o tamanho do animal é menor, assim como o peso e todas as medidas cranianas.
Pacientes com microcefalia apresentam, ainda, aumento do córtex e do ventrículo cerebral. “Analisamos, também, a histologia dos filhotes e percebemos que os animais que receberam a droga têm tamanho normal de ventrículo, enquanto que os infectados possuem ventrículo bem grande”, completa Carolina.
Por meio de análise de imunofluorescência, os cientistas encontraram um aumento de nestina, que indica maior presença de células precursoras neurais. A morfologia dessas células também chamou a atenção. Quando estão em repouso, elas têm um formato mais ‘espraiado’ e, quando ativadas, ficam mais redondas. “ Isso quer dizer que a microglia [células imunológicas do cérebro] dos camundongos com zika está ativa, ou seja, se defendendo”, relata Carolina.
Próximas etapas
Carolina diz que o grande achado deste trabalho foi, além de reverter a microcefalia dos filhotes de camundongos, conseguir inibir a multiplicação do vírus e diminuir todos os sintomas da zika. “Além disso, como a HP163 já está disponível, a aceitação dela poderá ser mais fácil”, explica a biomédica, se referindo aos testes toxicológicos e de segurança a que uma droga é submetida antes de ser aprovada para uso medicinal.
Como próximos passos, Peron diz que seria interessante testar a droga em macacos. “Não percebemos nenhum efeito deletério em camundongos, mas precisaríamos testar em primatas para realmente termos certeza da segurança da HP 163”, conclui.
Mais informações: e-mail jeanpierre@usp.br, com Jean Pierre Schatzmann Peron. [1]
[1] Texto de Fabiana Mariz.
Como citar esta notícia: Jornal da USP. Droga em teste contra o câncer reverte microcefalia em camundogos. Texto de Fabiana Mariz. Saense. https://saense.com.br/2020/07/droga-em-teste-contra-o-cancer-reverte-microcefalia-em-camundogos/. Publicado em 22 de julho (2020).