Jornal da USP
17/07/2020

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Por Eva Alterman Blay, Professora Emérita do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Durante os 20 anos da Ditadura Militar (1964-1985), as mulheres brasileiras buscaram modos de resistir ao patriarcado que as excluía dos direitos civis e políticos. Organizaram movimentos contra a carestia, por creches, pela liberdade dos presos políticos, pela reorganização partidária. Embora pacíficos, eram perseguidos pela polícia e desqualificados (Geisel tentara desmentir as reivindicações, mas foi confrontado pela mídia que filmara as longas listas de mulheres nas ruas coletando um abaixo-assinado).

Foram duas décadas organizando movimentos sociais, propondo a criação de conselhos municipais, estaduais e até um Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Ao se eleger um Congresso Constituinte, as mulheres enviaram uma Carta das Mulheres aos Constituintes propondo que fosse abolida toda e qualquer forma de discriminação; igualdade de direitos entre os homens e as mulheres na família e na sociedade. A maternidade e a paternidade deveriam ser asseguradas pelo Estado; que a mulher tivesse livre opção pela maternidade assim como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo de sua saúde; que se considerasse a “saúde integral” da mulher, em todas as fases da vida; que “a mulher tivesse o direito de conhecer e decidir sobre o seu corpo”. A educação deveria se reger pela igualdade entre os sexos, sem qualquer tipo de discriminação racial e incorporando as relações multiculturais respeitando a composição do povo brasileiro.

Em síntese desenhava-se uma sociedade moderna, antipatriarcal, antirracista, antidiscriminatória.

Aprovada em 1988, a “Constituição Cidadã” – como a chamou Ulysses Guimarães – tornou-se guia para as novas leis. Avançamos em muitos pontos, outros encontraram barreiras, o que é normal numa democracia. Propunha-se um Sistema Único de Saúde (SUS, regulado posteriormente pela lei 8.080 de 1990), que atualmente se mostra fundamental. Foram desenvolvidas várias ações para implantar, nos postos de saúde, políticas para orientar as equipes técnicas e os usuários em todos os passos relativos aos direitos sexuais e reprodutivos. Para mostrar concretamente como os trabalhos se desenrolaram, cito a oportunidade em que acompanhei a dra. Albertina Takeuti em um seminário num hospital municipal onde ela explicaria aos médicos, enfermeiras e a todo o pessoal técnico que após uma relação sexual haveria um prazo de 72 horas para tomar um medicamento que evitasse a gravidez não desejada, assim como para evitar doenças sexualmente transmissíveis. Imagine-se o trabalho quando se ia pessoalmente divulgar esse fundamental procedimento! Do mesmo modo se participava de reuniões internacionais junto à ONU, OMS e OIT, onde se discutiam políticas de direitos nas relações sociais de gênero. Os temas eram aprovados por votação e enfrentavam, naqueles anos, a resistência do Vaticano (que era representado por Malta) e dos países muçulmanos que absolutamente não admitiam qualquer liberdade às mulheres.

O Brasil aprovou e ratificou a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos. No tópico da interrupção da gravidez, limitou-se aos casos aprovados pela legislação brasileira (aborto permitido em caso de estupro, risco de vida da mulher e mais recentemente casos de anencefalia).

Durante os governos Fernando Henrique, Lula e Dilma, as políticas dos direitos humanos e dos direitos sexuais e reprodutivos foram aperfeiçoadas somando-se a elas políticas econômicas como o Bolsa Família. Resultados começaram a aparecer: em 2000, a taxa de mortalidade infantil, que era de 29,02 por 1.000 nascidos vivos, baixou para 13,02 em 2015. Mais mulheres foram para a escola e o mercado de trabalho diversificou-se, apesar de várias crises econômicas no período.

Com altos e baixos, o País avançava até que, em 2018-2019, passamos a enfrentar duas pandemias: a chegada do novo coronavírus e a implantação de um governo contrário aos direitos humanos, especialmente oposto às políticas de gênero. Em relação à covid-19, o Brasil perdeu a corrida, não seguiu nenhuma política cientificamente embasada e sem orientação adequada ou melhor com a participação do governo federal atingiu no dia 12 de julho mais de 71 mil mortes, adotando uma política genocida que mata os mais pobres, não por acaso os negros e os mais velhos. A carência dos serviços de saúde aliada às péssimas condições socioeconômicas ratifica a necropolítica em execução.

O Executivo armou um braço fatal sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, ao instalar nele um grupo religioso pré-iluminista, medieval, autoritário e ignorante. Desmobilizaram-se os serviços existentes de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos demitindo funcionários do Ministério da Saúde, sob pretexto de que eram favoráveis ao aborto; fecharam instituições como o Hospital do Jabaquara, que realizava interrupção de gravidezes permitidas por lei, ampliando a mortalidade de mulheres pobres que passaram a usar métodos inseguros e prejudiciais à saúde. Excluíram a educação sexual e a palavra gênero, tida como “perigosa” para as mulheres, crianças e adolescentes. Estamos emparelhados aos países muçulmanos que subordinam as mulheres, têm como justiça o apedrejamento e impõem a cultura da excisão do clitóris. Feminismo se tornou palavrão. Finalmente agora chegamos à desobediência das leis aprovadas e dos compromissos internacionais, desconsiderando os protocolos aprovados e sancionados pela Câmara e pelo Senado. Não há diálogo com o governo que conta com uma parte do Legislativo e um barulhento segmento popular. Esse cenário é alimentado por uma vocalização contra as instituições democráticas numa clara atitude fascista, ultranacionalista e autoritária. E é incrementado pela exaltação de comportamentos morais conservadores e religiosos. O fascismo veio num crescendo.

Se nos dois últimos anos instituições modernas foram sendo destruídas, novas vozes despontaram. Mulheres jovens ocuparam as ruas apesar da polícia. Grupos de mulheres negras, especialmente intelectuais, têm trazido uma visão anticolonial, revendo a história brasileira. Homens jovens têm reagido à pressão da masculinidade “tóxica” buscando novos caminhos que os livre da insuportável concepção com a qual foram educados.

Distinguem-se reações e mais uma vez as mulheres enfrentam o autoritarismo. A luta já começou e uma nova carta está em circulação: a “Carta das Mulheres Brasileiras Feministas, Antirracistas, Antifascistas em Defesa da Democracia”.

Espero que a mudança seja mais rápida desta vez.

Nota:
Hoje, no País, o índice de mortalidade materna é de 64,5 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos — número bem acima da meta firmada com a Organização das Nações Unidas (ONU), que é de 30 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos até 2030, conforme os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Apesar do cenário, o Ministério da Saúde divulgou um número otimista: em 27 anos — de 1990 a 2017 —, a mortalidade materna sofreu uma redução de 55%. No entanto, os números mostram que o índice voltou a crescer lentamente desde 2013, passando de 62,1 para 64,5 óbitos maternos a cada 100 mil nascidos vivos, em 2017. (Fonte: https://revistacrescer.globo.com/Voce-precisa-saber/noticia/2019/07/mortalidade-materna-brasil-esta-cada-vez-mais-longe-da-meta-internacional.html)

[1] Imagem de Clker-Free-Vector-Images por Pixabay.

Como citar este artigo: Jornal da USP. Duas pandemias.  Texto de Eva Alterman Blay. Saense. https://saense.com.br/2020/07/duas-pandemias/. Publicado em 17 de julho (2020).

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