Marcus Eugênio Oliveira Lima
07/08/2020

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Há algum tempo são apresentadas na TV brasileira cenas nas quais acontecem violentos acidentes com pessoas reais, retratando situações grotescas de quedas, encontrões; enfim, eventos que expõem aspectos trágicos da vida privada. Esses “episódios” são chamados em alguns canais de TV de “videocassetadas”, sendo veiculados também via streaming. Vendo tais cenas muitas vezes nos perguntamos: “Será que morreu?”. Mas, mal esboçamos essa “preocupação”, somos bombardeados com a imagem seguinte, na qual outra vítima inocente passa novamente por uma situação de risco.

Se nas palatáveis videocassetadas há a chance de os personagens principais não terem morrido, existe, noutro modelo televisivo congênere, também de grande audiência, [2] a certeza da morte ou pelo menos de grande sofrimento de outrem. Trata-se de programas que abordam crimes num formato mórbido, defendendo a punição exemplar dos “culpados” e detalhando as violências perpetradas com dedicada sanguinolência. São emblemáticos desse formato os programas “Aqui e agora” (SBT), o “190 Urgente” (CNT), o “Cadeia” (CNT), o “Brasil Urgente” (Band), o “Cidade Alerta” (Record), dentre outros. A lógica, nesse formato de programa, é a de que quanto mais violência melhor. Pode-se dizer que neles: “Não existe pudor em apresentar corpos queimados, traficantes baleados, poças de sangue e execuções frias” [3].

Esse tipo de formato mórbido nos coloca uma questão fundamental: por que tantas pessoas assistem e gostam desse tipo de programa, que retrata somente o sofrimento extremo e a morte dos outros. Uma das possíveis explicações para esse fenômeno é a hipótese da Crença no Mundo Justo (CMJ), e dos correlatos processos de vitimização secundária ou revitimização.

Nas décadas de 1960 e 1970, Melvin Lerner, psicólogo social norte-americano, começou a formular a hipótese de que as pessoas têm dificuldade em aceitar as injustiças da vida cotidiana e, por isso, tendem a acreditar que o mundo é justo, em alguma medida. A hipótese da CMJ foi sistematizada e publicada no início dos anos 80 no livro “The Belief in a Just World: A Fundamental Delusion” (1980). Como se nota no título, todos sabemos que o mundo não é justo, ainda mais em um país como o Brasil; trata-se, pois, mais de uma ilusão fundamental de controle do que de uma percepção objetiva da realidade das coisas [4].

O princípio psicológico que sustenta a CMJ é a ideia de que, assumindo que o mundo é justo, pode-se ter algum controle sobre os resultados que se obtém, ou seja, não vivemos num mundo aleatório [5]. Expectativa que pode ser assim expressa “se faço o bem, então o bem retornará a mim” ou, ao contrário, “quem planta vento, colhe tempestade.” Em certa medida, trata-se de uma ilusão positiva, pois protege as pessoas das frequentes injustiças da vida real, resguardando sua saúde mental [6]. A literatura psicossocial mostra que a Crença no Mundo Justo (CMJ) varia de pessoa para pessoa, sendo mais forte nos menos escolarizados e naqueles com forte vinculação religiosa [4].

A CMJ prevê que, quando somos confrontados com uma injustiça, geralmente, somos motivados a restaurar a justiça, e isso se dá de duas formas: agindo para compensar a vítima ou, pelo contrário, nos convencendo de que a vítima merece sofrer. Nos seus estudos iniciais, Lerner mostra que quando não se pode recompensar a vítima de um sofrimento injusto e a injustiça permanece, tendemos a puni-la e, sobretudo, a culpá-la pelo seu sofrimento. A culpabilização da vítima é a consequência mais importante da CMJ. Esse fenômeno se chama revitimização ou vitimização secundária. Nele, a vítima passa a ser, simultaneamente, vítima do infortúnio e vítima da culpa por ele ter acontecido.

As vítimas são desvalorizadas e responsabilizadas pelo sofrimento porque tendemos ou, talvez, precisemos, acreditar que cada um é merecedor daquilo que lhe acontece, sejam coisas boas, sejam coisas más. Essa ideia da CMJ fica bem sistematizada no seguinte estrato de Fritz Heider (1958):

“A relação entre bondade e felicidade, entre maldade e punição é tão forte que, dada uma dessas condições, a outra é frequentemente assumida. Infortúnio, doença, acidente são frequentemente tomados como sinais de maldade e culpa. Se “X” é infeliz, é porque ele cometeu algum pecado ou erro.” (p. 235) [6].

 A revitimização pode ser dirigida contra um indivíduo ou contra toda uma categoria ou grupo social. É muito comum justificar tratamentos injustos e violentos contra grupos desfavorecidos alegando que eles merecem o seu destino [7]. A desvalorização das vítimas de sofrimento dependerá de um conjunto complexo de fatores, com destaque para os processos de identificação social (se elas pertencem ao meu grupo ou ao grupo do outro), do quanto seu sofrimento é distante ou próximo em relação ao observador e do fato de a vítima ser vista como responsável (culpada) ou não pelo seu sofrimento.

Quando a vítima é percebida como responsável pelo seu sofrimento a tendência a desvalorizá-la é menor, pois o próprio infortúnio que ela vivencia já permite restaurar a CMJ do observador. Quando a vítima não é vista como responsável, ou seja, é inocente, a sua desvalorização dependerá de pelo menos duas condicionantes: 1) quando as vítimas gozam de alto status ou prestígio social os observadores preferem desvalorizar seus comportamentos (“deslizes”), ao invés de buscar falhas no seu caráter e 2) quando o observador imagina que poderia estar passando pela mesma situação da vítima (empatia), ele foca mais as forças externas que provocaram o sofrimento da vítima, sem desvalorizá-la [7].

Em um estudo realizado no Brasil, Modesto e Pilati contaram a estudantes universitários uma história de alguém que era atingido por uma bala perdida, ficando em estado grave. Para metade dos participantes, se dizia que a vítima da bala perdida era um estudante universitário, para a outra metade, informava-se que se trata de um usuário de drogas ilícitas. Os autores verificaram que o suposto usuário de drogas foi considerado mais culpado pelo seu infortúnio que o estudante universitário. Além disso, a CMJ dos participantes do estudo foi mais ameaçada no caso da vítima do seu grupo (estudante universitário) que no caso da vítima do exogrupo (usuário de drogas), confirmando que as pessoas se sentem mais abaladas pelo que acontece nos “seus mundos” [8]. Outros estudos mostram que níveis de adesão a essa crença se associam ao apoio a punições mais severas para membros de grupos estigmatizados e punições mais brandas para membros de grupos majoritários. Por exemplo, Costa Silva e colaboradores verificaram que pessoas brancas com muita CMJ foram mais tolerantes à violência policial contra um suspeito negro do que contra um suspeito branco [9].

Mas será que a hipótese da Crença no Mundo Justo pode nos ajudar a entender a audiência dos programas que retratam cenas mórbidas, de violência e crime, com vítimas inocentes e supostos culpados sendo presos, agredidos e até linchados?

Pensamos que sim! É provável que tais cenas sirvam para recarregar as baterias de CMJ dos cidadãos comuns, mais pobres e menos escolarizados, justamente aqueles que encontram menos chance de acreditar na justiça da vida real, e por isso, são levados a apostar mais fichas nessa “ilusão fundamental”. Outro indício importante que corrobora essa nossa interpretação é o de que as vítimas que aparecem nesses programas, geralmente, são pessoas que pertencem ao mundo dos espectadores, aquelas que quase nunca aparecem na TV, sendo também minorias sociais. Essa identificação social pode ativar os necessários gatilhos da revitimização dos “inocentes” e de culpabilização catártica dos “algozes” previstos na CMJ. Como vimos, a CMJ afirma que, diante das injustiças, tenderíamos ou a compensar a vítima ou a revitimizá-la, a fim de restaurar nosso senso de justiça. Numa situação real, assistindo a um desses programas de TV mencionados, o telespectador se depara com a narrativa lacrimosa de vítimas de crimes e com a descrição impiedosa das “maldades” do agressor.

A hipótese da CMJ nos ajuda a entender, a partir da noção de revitimização, como lidamos com as vítimas, mas diz menos sobre como reagimos aos agressores. Ainda adotando a CMJ, mas em um caminho pouco trilhado nas pesquisas, podemos afirmar que, muito provavelmente, ocorre uma identificação inicial com o agressor, pois ele é do mesmo mundo do telespectador. Trata-se de uma identificação de tipo diferente, por contraste, “ele é o que eu não sou”, uma vez que a identidade não é apenas sobre quem somos, mas também sobre o que podemos nos tornar [10]. Tal identificação pode despertar emoções prazerosas em relação ao sofrimento do culpado, recarregando novamente as baterias de CMJ do telespectador e legitimando suas “escolhas” pelo caminho do “bem”, uma vez que reforça a crença de que o mal não somente é perpetrado pelos maus, mas também acontece com os maus.

Assim, podemos supor que quanto maior a Crença no Mundo Justo de um indivíduo, mais ele se sente capturado por Programas como os referidos neste texto. Todavia, não devemos esquecer que, não obstante as pessoas precisarem acreditar na existência de justiça no mundo, e de essa crença afetar suas reações ao sofrimento de outras pessoas, estamos diante de um fenômeno complexo, causado por muitos outros fatores. Em que pese essa complexidade, a hipótese da CMJ parece muito válida para ajudar nessa empreitada de interpretação do mundo real. Alguns dos textos indicados poderão ajudar nessa tarefa, assim esperamos! Boas leituras!

[1] Imagem de mohamed Hassan por Pixabay.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq101133.htm.

[3] Marcela Rochetti ARCOVERDE. Bandidos na TV: a morte pela audiência. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Belém – PA – 2 a 7/09/2019.

[4] Rubin, Z. & Peplau, L. A. (1975). Who believes in a just World? Journal of Social Issues, 31, 65-89.

[5] Brown, Roger (1981). Social Psychology. 2ª ed. London: The Free Press.

[6] Correia, I. & Vala, J. (2003). When will a victim be secondarily victimized? The effect of observer’s belief in a just world, victim’s innocence and persistence of suffering. Social Justice Research, 16, 379–400.

[7] Lerner, M. J. & Miller, D. T. (1978). Just World Research and the Attribution Process: Looking Back and Ahead. Psychological Bulletin, Vol. 85, No. S, 1030-1051.

[8] Modesto, J. G. & Pilati, R. (2017). Not All Victims Matter”: Belief in a Just World, Intergroup Relations and Victim Blaming. Trends in Psychology / Temas em Psicologia, Vol. 25, nº 2, 775-786. DOI: 10.9788/TP2017.2-18En.

[9] Costa Silva, K. da, Torres, A. R. R., Álvaro, J. L. E., Garrido, A. L., & Linhares, L. V. (2018). Journal of Experimental Social Psychology, 74, 317–327.

[10] Spears, R., Jetten, J., & Doosje, B. (2001). The (il)legitimacy of ingroup bias: From social reality to social resistance. In J. Jost & B. Major (Eds.), The psychology of legitimacy: Emerging perspectives on ideology, justice, and intergroup relations (pp. 332–362). Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Crença no Mundo Justo e Violência na TV. Saense. https://saense.com.br/2020/08/crenca-no-mundo-justo-e-violencia-na-tv/. Publicado em 07 de agosto (2020).

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