UnB
17/08/2020

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Eduardo Bessa Pereira da Silva

Num influente artigo de 2001, Marc Prensky introduziu uma dicotomia que se tornava marcante entre estudantes e seus professores. Ele descreveu como nativos digitais, os estudantes, que haviam nascido já na era dos celulares, da internet e do computador pessoal. Já os imigrantes digitais eram pessoas que descobriram essas tecnologias mais tarde em suas vidas, aprendendo a usá-las depois e de uma forma muito diferente da maneira espontânea que os nativos digitais usavam. Essas diferenças se manifestavam, segundo Prensky, num tipo de forte “sotaque” analógico, o qual tornava os imigrantes digitais quase ininteligíveis aos nativos.

A pandemia da covid-19 introduz, na minha opinião, uma nova categoria, a do exilado digital. Nós, exilados digitais, até recentemente, sabíamos muito bem da existência de um outro mundo de educação digital e tecnológica. Nós apenas adoramos a forma como eram as coisas em nosso “país de origem” analógico, com suas confiáveis lousas e aquele olho no olho dos estudantes que nenhuma tecnologia, temos certeza, jamais irá substituir. Nós exilados digitais somos patriotas. Alguns de nós já tínhamos até visitado esse exótico país da educação tecnológica ou lemos a respeito dele em algum lugar. Admirávamos várias coisas na forma como se vivia ali, mas então voltávamos à nossa pátria analógica e a experiência digital virava um foco de curiosidade, não mudando muito nossa prática diária.

No entanto, como ocorre com tantos exilados, um dia nossa pátria analógica se tornou hostil demais à nossa permanência. Não é que tudo o que nos orgulha nela tenha desaparecido no ar num instante. Ainda lembramos do contato afetivo e personalizado com nossos alunos, de como é mais fácil controlar a atenção deles em nossas aulas, de como o espaço e os recursos das salas de aula de paredes e carteiras nos são familiares. Foram outros fatores que tornaram nossa pátria analógica hostil, aquele contato próximo entre professores e alunos agora ameaça nossa saúde, e a deles. Com isso, cheios de ressentimento e medo, fomos expulsos de nosso paraíso na terra e iniciamos um exílio no país quase desconhecido da educação tecnológica.

Nesse novo país, mais seguro do que nossa pátria analógica no momento, vivemos de forma meio improvisada, numa espécie de acampamento que pretendemos aprimorar com o tempo, de preferência com muitos elementos de nossa pátria de origem. Não entendemos bem a língua que ali se fala e menos ainda os bizarros costumes. A todo momento é necessário lembrar de como era insustentável permanecer no país antigo para não desistirmos de nosso exílio. Algumas vezes nos sentimos discriminados ou achamos que nunca iremos nos adaptar. Somos resistentes aos novos hábitos e saudosistas quanto à forma como eram as coisas em nossa pátria analógica, num tipo de etnocentrismo.

Na pátria digital já existem imigrantes que vieram de nossa pátria analógica, mas estão aqui há mais tempo. Construíram uma vida/didática nova e nos mostram as vantagens e as perspectivas futuras de ter buscado exílio aqui, além de serem generosos em nos ajudar a nos adequar à nova realidade. Também existem nativos simpáticos à nossa causa, compreensivos com nossa inépcia e preocupados em nos elogiar a cada progresso digital. Existem até iniciativas organizadas para tornar nossas vidas de exilados mais fácil, nos ajustar a essa sociedade nova.

Se nos abrirmos a essa nova terra que agora nos recebe, podemos descobrir que as diferentes formas de abordar problemas educacionais são apenas isso, formas diferentes. Nenhuma é melhor ou pior. Como todos que abraçam uma experiência internacional, podemos diversificar nosso repertório cultural e adaptar nossas vidas às experiências de ambas as culturas. Um dia, isso que tornou hostil a nossa pátria analógica vai passar, então podemos até escolher voltar, mas como uma típica jornada do herói, voltar diferentes dessa experiência transformadora. Também podemos decidir ficar por aqui, manter velhos e confortáveis hábitos de nossas vidas analógicas, e abraçar outros hábitos digitais novos. De uma forma ou de outra, esse exílio digital vai enriquecer nossas experiências e mudar para sempre nossa prática pedagógica.

Eduardo Bessa colabora nos cursos de formação docente do CEAD-UnB e está aprendendo a usar o Moodle. Teve seu primeiro e-mail aos 19 anos e é muito feliz pelas redes sociais não existirem quando ele era adolescente. Por outro lado, usa e adora videoaulas e curte descobrir novos gadgets úteis. [2]

[1] Imagem de mohamed Hassan por Pixabay.

[2] Eduardo Bessa Pereira da Silva é professor da Faculdade de Planaltina da UnB. Mestre em Ciências Biológicas (Zoologia) pela USP e doutor em Biologia Animal (Ecologia e Comportamento) pelo IBILCE-UNESP. Redige o blog Ciência à Bessa na rede Scienceblogs Brasil. É membro do comitê educacional da Animal Behavior Society.

Como citar este artigo: UnB. Exilados digitais. Texto de Eduardo Bessa Pereira da Silva. Saense. https://saense.com.br/2020/08/exilados-digitais/. Publicado em 17 de agosto (2020).

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