UnB
31/08/2020
Benedetta Bisol
Em um artigo recente, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, apresentei uma reflexão entorno ao racismo tomando como referência teórica e fonte de inspiração um breve ensaio do filósofo francês Emmanuel Levinas, intitulado “Algumas reflexões acerca do hitlerismo”. O texto de Levinas foi publicado originalmente em 1934, pouco meses antes da nomeação de Adolf Hitler a Reichskanzler, na Alemanha. Liderado por Hitler, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães ganhara as eleições de forma legítima, embora já tivessem sido denunciadas irregularidades no andamento do processo eleitoral. O texto levinasiano não é, contudo, uma análise das conjunturas, mas sim uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos da ideologia nacional-socialista. Giorgio Agamben, autor do prefácio à sua tradução italiana, o considera “a única tentativa da filosofia do século XX que conseguiu dar conta do evento político decisivo do século: o nazismo” (AGAMBEN, 1996 – tradução minha).
De acordo com Levinas, o cerne teórico do hitlerismo consiste em um modo peculiar de exaltação da dimensão corpórea do ser humano, cuja natureza se determina como uma espécie de acorrentamento dos indivíduos à própria corporeidade, entendida como um vínculo sem resolução histórica, determinado pela herança de sangue. A centralidade do sentimento do corpo, percebido como sentimento elementar, revelador de potências e impulsos primitivos, toma o lugar, no hitlerismo, do desejo e da possibilidade de libertação dos vínculos do biológico, disposição teórico-prática central na tradição do pensamento ocidental, a partir das suas raízes cristã e judaicas.
No artigo mostrei quanto o antissemitismo de matriz nacional-socialista reaproveita um modelo conceitual de raça que se desenvolve no começo da modernidade na Península Ibérica, concretizando-se no programa de perseguição e expulsão dos judeus pelo Tribunal da Inquisição espanhola. Examinei em seguida em que medida o mito da democracia racial no Brasil apresenta analogias com o discurso racista europeu. Como Queiroz Júnior (1999, p. 10), no prefácio a um texto de Munanga, a mestiçagem “serve bem para projetar o mulato, dissimulando o preto e ampliando arbitrariamente o branco”.
Abordei por fim o problema da construção teórica do pensamento antirracista brasileiro contemporâneo, defendendo a tese que o hitlerismo hoje, fenômeno genuinamente mediático, se manifesta no corpo branco como ilusão da liberdade e no negro, como condena a renunciar a sua corporeidade para participar, de modo sempre deficiente, de uma “igualdade” branca. Por outro lado, questionei se a ênfase excessiva na identidade negra, em vez de contribuir para sua justa valorização, não se pode se tornar um instrumento de discriminação, que acaba operando segundo os mecanismos racistas.
Para compreender o racismo e elaborar estratégias de luta antirracista eficazes, trata-se de ter em vista que a reconfiguração da estrutura social desencadeia processos em que igualdade e diferença deveriam ser constantemente negociadas por todos, e não apenas por uma parte da sociedade. O tensionamento entre corpo e liberdade é, do ponto de vista filosófico, o núcleo conceitual que permite pensar essa negociação.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Introduzione. In: LEVINAS, E. Alcune riflessioni sulla filosofia dell’hitlerismo. Macerata: Quodlibet, 1996
QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo. Prefácio. In: MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. (Identidade Brasileira). [2]
[1] Imagem de raydem9314 por Pixabay.
[2] Benedetta Bisol é professora adjunta de Filosofia da Educação do Departamento de Teoria e Fundamentos (Faculdade de Educação, UnB, Brasília). Possui láurea em Filosofia (Università degli Studi di Padova, Itália – 1998), doutorado em Filosofia (Ludwig-Maximilians-Universität München, Alemanha, 2008) e habilitação para a docência de filosofia moral (abilitazione scientifica nazionale, Itália – 2014). bisol@unb.br.
Como citar este artigo: UnB. Racismo, corpo e liberdade: a filosofia do hitlerismo no Brasil hoje. Texto de Benedetta Bisol. Saense. https://saense.com.br/2020/08/racismo-corpo-e-liberdade-a-filosofia-do-hitlerismo-no-brasil-hoje/. Publicado em 31 de agosto (2020).