Jornal da USP
14/08/2020
Por Hugo Tourinho Filho, professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto
São vários os males que afetam a humanidade, porém são indiscutíveis o avanço do sedentarismo e as mazelas que o acompanham no terceiro milênio. O sedentarismo está relacionado a 54% das mortes por distúrbios cardíacos e a 50% dos derrames fatais. Os distúrbios cardiovasculares são a principal causa de mortes no mundo – 17 milhões de óbitos –, o equivalente a uma em cada três mortes. Para se ter uma ideia, na década de 60, 65% das vítimas de acidentes cardiovasculares tinham mais de 65 anos. Atualmente, 50% apresentam menos de 55 anos.
Infelizmente, os males acarretados por um estilo de vida sedentário não são um “privilégio” apenas dos adultos, já que as crianças e adolescentes também são alvo dessas anormalidades do novo século.
Com relação à obesidade e sobrepeso infantil, sabe-se que no Brasil houve um avanço de 4% para 14%, fato que se reflete na população adulta brasileira, que já conta com 56,9% classificados com sobrepeso e 20,8% da população já se encontra no patamar da obesidade. Cabe ressaltar que uma criança obesa será fatalmente um adulto obeso.
Mundialmente, estima-se que mais de 22 milhões de crianças menores de 5 anos sejam obesas ou apresentem sobrepeso, e mais de 17 milhões estejam em países em desenvolvimento.
Não se pode negar que o aumento do sedentarismo em âmbito mundial está relacionado, de certa forma, aos avanços tecnológicos. Por mais paradoxal que possa parecer, os mesmos avanços que contribuem para a melhora da qualidade de vida, também podem prejudicá-la, na medida que diminuem, sobremaneira, as possibilidades de movimento do ser humano, casos que podem ser facilmente visualizados com o uso de controles remotos, elevadores, escadas rolantes e o tempo gasto à frente da televisão e de videogames, tanto por parte de adultos quanto de crianças e adolescentes.
Preocupados com a repercussão que tais atividades relacionadas ao sedentarismo poderiam causar na comercialização de seus produtos, a indústria de videogames começou a investir em jogos interativos – mídia interativa –, surgindo alguns modelos bastante interessantes que passaram a agregar o jogo com o movimento.
“Mídia interativa” é a terminologia utilizada para relacionar os conceitos de design de interação, interatividade, interação homem-computador e cibercultura, e inclui casos específicos, como televisão interativa, a realidade virtual e os videogames.
Um dos exemplos dessa nova geração de jogos eletrônicos que se utiliza da interação homem-computador. O projeto visava a criar uma nova tecnologia capaz de permitir aos jogadores interagir com os jogos eletrônicos sem a necessidade de ter em mãos um controle/joystick, inovando no campo da jogabilidade.
O Kinect usa um sensor de movimento para rastrear o corpo inteiro do jogador. Enquanto o jogador está envolvido com o jogo, não são apenas as mãos e os dedos que participam do game, mas ele por completo. Enquanto joga, o Kinect cria um esqueleto digital do avatar do jogador baseado em toda a informação armazenada. Por isso, quando o jogador se mover para a esquerda, para a direita ou pular, o sensor vai processar o movimento e transferir para o jogo, permitindo, dessa forma, uma interação com o jogo e o movimento humano.
Esta tecnologia abre inúmeras possibilidades de utilização para a área de educação física e esporte, principalmente como forma de desenvolver o hábito da prática regular de exercícios físicos entre crianças e adolescentes obesos ou com sobrepeso, que muitas vezes se mostram resistentes à participação em programas de condicionamento físico mais convencionais.
Em tempos de combate ao Sars-CoV-2, o isolamento social mostra-se como uma das estratégias mais eficazes e importantes para se buscar o controle dessa epidemia; no entanto, não se pode negar a preocupação com o avanço do sedentarismo provocado por esse novo estilo de vida imposto pelas atuais circunstâncias.
Crianças são naturalmente ativas e, por esse motivo, talvez as mais prejudicadas com relação às possibilidades de movimento em seu dia a dia. Mantê-las ocupadas e ativas dentro de casa é um desafio enfrentado por pais em todo o mundo.
Nesse sentido, os videogames ativos, também conhecidos por exergames, podem ser uma alternativa interessante para ser usada durante o isolamento social na luta contra o sedentarismo que caracteriza este nosso “novo estilo de vida” – a vida em quarentena.
Desde 2012, a Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP/USP) possui, dentre os seus diversos espaços para pesquisa, o Laboratório de Mídia Interativa e Exercício Físico, que tem como um de seus objetivos investigar o uso dos exergames sobre diversos parâmetros que envolvem a qualidade de vida de crianças e adolescentes, com especial atenção àquelas acometidas pela obesidade.
Definida como uma doença crônica associada ao excesso de gordura corporal, a obesidade apresenta uma etiologia complexa e multifatorial, resultando da interação de estilo de vida, genes e fatores emocionais.
Por esse motivo o Laboratório de Mídia Interativa e Exercício Físico vem, ao longo dos anos, estabelecendo parcerias com diferentes unidades da USP, das quais se destacam o Departamento de Puericultura e Pediatria e o Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP) e o Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP).
Por meio dessas parcerias foi possível desenvolver estudos que nos permitem trazer evidências da importância dos exergames como uma ferramenta fundamental de combate ao sedentarismo e que pode ser usado neste momento de isolamento social não só como forma de exercício físico, mas também como diversão e envolvimento social com toda a família.
Já que a chave para promover atividades sustentáveis na infância é o prazer e que as crianças iniciam e sustentam o brincar tecnológico por ser divertido, emocionante e desafiador, então por que não juntar o útil ao agradável?
Nos estudos desenvolvidos no Laboratório de Mídia Interativa e Exercício Físico da EEFERP foi possível constatar, sinteticamente, que sessões realizadas com os videogames ativos ou exergames por pelo menos duas vezes por semana foram capazes de provocar melhora na autoestima e percepção da imagem corporal, aumento da capacidade de atenção e melhora de socialização com os familiares, aumento da motivação para participar de outras atividades físicas, redução da espessura de dobras cutâneas, redução nos níveis séricos de colesterol total e LDL, redução nos níveis de pressão arterial sistólica e aumento de força de membros inferiores e superiores.
Mais do que as melhoras verificadas em diversos parâmetros relacionados ao processo saúde-doença, programas de exercícios realizados com exergames possibilitam às crianças se autoconhecerem e se familiarizarem com seus corpos por meio de uma realidade virtual e, assim, buscar uma elevação de sua autoestima, o que pode refletir em uma vida adulta mais saudável e com melhores condições emocionais para o enfrentamento de desafios.
E nada mais importante para os tempos que vivemos do que cuidar da nossa saúde emocional a fim de enfrentar os desafios impostos pelo isolamento social utilizado no combate à covid-19.
[1] Imagem: UFSJ.
Como citar este artigo: Jornal da USP. Videogames (ativos) e pandemia. Texto de Hugo Tourinho Filho. Saense. https://saense.com.br/2020/08/videogames-ativos-e-pandemia/. Publicado em 14 de agosto (2020).