Jornal da USP
29/09/2020

(Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay)

Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo, mestre e doutor pelo ProlamUSP e pós-doutorando na FEA-RPUSP

“Tupi or not tupi, that is the question.”

Oswald de Andrade, um dos mais visionários pensadores e artistas brasileiros, condensou sua visão da arte nacional nessa frase lapidar, inscrita entre as sentenças do Manifesto Antropofágico, há quase 100 anos. Sim… 100 anos e continuamos dando voltas ao redor de nós mesmos.

O texto de Oswald se inscrevia dentro da proposta radical do movimento modernista, especialmente em sua vertente paulista: era necessário mergulhar nas profundezas do país para emergir com uma arte renovada.  Seria um verdadeiro descobrimento do Brasil pelas cidades arrogantes e dominadas por elites intelectuais cosmopolitas e, ao mesmo tempo, bizarramente provinciais… ou bregas mesmo, talvez disséssemos hoje.

Mas a questão de fundo, por trás da ideia de uma cultura brasileira é: existe mesmo um Brasil a ser descoberto? Afinal, um povo é sempre muitas coisas e muito mais complexo que qualquer versão que se propague sobre ele, seja ela a estatal/oficial, seja a de um movimento artístico. A resposta a essa pergunta é um capítulo enorme na história das ideias sobre o Brasil. Vale a pena lembrar a primeira página dele, escrita por um naturalista da Bavária em meados do século XIX.

Era a década de 1840. O recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) promovia um concurso. Os candidatos deveriam apresentar um texto com o seguinte tema: “Como se deve escrever a História do Brasil”. Se hoje, com quase 200 anos de Estado independente, esse tema não é nada simples, naquela época era ainda mais complexo. Com apenas duas décadas de independência, o Brasil era um país marcado pela escravidão. Uma elite formada por traficantes e proprietários de escravos detinha os assentos no poder. Já havia um Estado brasileiro, mas como falar em “povo brasileiro” quando a maior parte dos habitantes desse país era escravizada e, claro, excluída?  Por outro lado, a população que era livre, mas pobre, seria parte desse novo povo?

A vida nas cidades litorâneas espelhava essa contradição de nascimento que sustentava a grande lavoura. Por outro lado, as imensas solidões dos espaços interiores eram povoadas por homens e mulheres dispersos por sertões infinitos. Por qualquer ângulo que se olhasse, a diversidade humana (e as aberrações da violência social cotidiana) não refletiam a unidade territorial reivindicada por aquele Estado surgido em 1822 e mesmo essa unidade só seria consolidada, a ferro e sangue, durante o transcurso do século XIX.

Outra contradição nesse novelo de contradições: os povos originários, os “índios”, na década de 1840 eram ainda o obstáculo, o inimigo desse Estado brasileiro. E habitavam a maior parte do território reivindicado pelo governo central. Para se ter uma ideia, um mapa elaborado na década de 1860 mostrava a maior parte do atual estado de São Paulo como “terreno dominado por índios ferozes”. Estariam incorporados ao Brasil? O Romantismo se esforçou para dizer que sim (todos nos lembramos de Alencar descrevendo os lábios de Iracema e de Gonçalves Dias imortalizando as lutas entre timbiras e tupis no I-Juca Pirama). Mas a realidade era de exclusão (e ainda é!).

Como escrever a história de um país assim naquele momento de fundação?

O vencedor do concurso não foi um “brasileiro” – conceito bastante vago à época, como se percebe. Karl Friedrich Phillipp von Martius desembarcara no Rio de Janeiro em 1817 e, acompanhado do também naturalista Johann Baptist von Spix, percorreu milhares de quilômetros pelo interior. Suas obras compõem o cânone clássico da chamada “literatura de viajantes”. Foi por meio desses olhares estrangeiros que gerações de futuros brasileiros construíram interpretações sobre a natureza e a formação do país…

Martius apresentou ao IHGB a tese vencedora: o fator histórico original do Brasil, o elemento que deveria ser central na análise de sua história, era justamente o fato de ser formado por europeus, indígenas e africanos. No lugar daquele caos de povos violentados – esse moinho de moer gente, na expressão de Darcy Ribeiro –, Martius enxergou um elemento de unidade e, principalmente, de originalidade: a miscigenação.

Claro, existe uma pesada crítica a essa interpretação, muito por ela ajudar a diluir a violência no mito da convivência harmônica, do país pacato. Mas o que nos interessa agora é que aqui nascia a ideia mais longeva de explicação do Brasil e dos brasileiros: somos mestiços, somos muitos, somos diversos. Uma cultura propriamente brasileira necessariamente expressa essa característica de nascença.

Oswald de Andrade e os modernistas dos anos 20 beberam também nessa fonte. Pensando em nossa multiplicidade, eles anunciaram como projeto cultural uma brasilidade que expressa a capacidade de deglutir, assimilar o que vem de fora para então reelaborarmos a partir de nós mesmos.

O que eles negavam e combatiam não era a existência de influências estrangeiras nas realizações culturais no Brasil (o que seria um contrassenso), mas sim a “consciência enlatada”, a atitude covarde dos que se recusam ou não querem dar o passo ousado do “antropófago”. Mais que meramente reproduzir de forma admirada o que vem de longe, a arte brasileira deveria ir além: atacar, engolir, absorver quaisquer referências, de onde quer que fossem, para reelaborá-las e devolver ao mundo uma obra nova. Esse é o espírito da “antropofagia”. Isso é o que está incrustado na formação do Brasil.

“Tupi or not tupi”… Oswald escreve em inglês, parafraseia Shakespeare, brinca com o pensamento angustiado de Hamlet, para colocar diante da cultura brasileira uma encruzilhada que é nossa. Antropofagia! Falamos sempre a partir do Brasil, mesmo quando não falamos do Brasil.

Ser patriota é muito mais do que apenas usar verde e amarelo em algo. E quantas obras nós não conhecemos que são exatamente assim? Podemos e devemos, sim, conceber histórias, ilustrações, HQs sobre sarracenos, castelos medievais, vikings, dinastias chinesas, samurais, super-heróis… e podemos também aceitar a oferta generosa dessa ideia e dar o salto criativo que incorpora tudo isso e apresenta não uma obra reproduzida, mas nova, concebida desde nosso próprio chão histórico e linguístico. Essa é a brasilidade.

Então, diante de qualquer referência, de qualquer lugar do mundo, de qualquer arte ou ciência, digamos sem receio e com a consciência tranquila de brasileiros: lá vem a nossa comida pulando!

Como citar este artigo: Jornal da USP. Lá vem nossa comida pulando!  Texto de Alexandre Ganan de Brites Figueiredo. Saense. https://saense.com.br/2020/09/la-vem-nossa-comida-pulando/. Publicado em 29 de setembro (2020).

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