UFRGS
27/11/2020

Vestibular UFRGS (Foto: Gustavo Diehl – Arquivo/Secom)

Vou convidá-lo para um exercício mental. Se você estiver no trabalho ou na aula, dê uma olhada a sua volta. Se estiver em casa, pense no seu ambiente de trabalho e na sua sala de aula. Quantos dos seus colegas são negros? Você consegue lembrar quantos colegas negros fizeram parte da sua trajetória acadêmica e profissional? A minha experiência é chocante! Nenhum em toda a minha caminhada acadêmica, nenhum do ensino médio à universidade. Na profissão, consigo contar nos dedos de uma mão quantos profissionais negros atuaram comigo em uma redação.

Ao fazer essa observação, nós nos deparamos com uma realidade cruel: além de segregados racialmente , os negros no Brasil são excluídos social, econômica, educacional e profissionalmente. Ao nascer branco, naturalmente você já nasce com privilégios. A cor da sua pele lhe dá oportunidades e lhe blinda de situações de preconceito, assédio, violências policial e sexual.

No Novembro Negro , o UFRGS Ciência se propõe a discutir a branquitude lançando um desafio: vamos exercer a autocrítica? Vamos refletir se a escravidão, algo instituído pelos brancos, deu origem aos preconceitos vivenciados ainda hoje pela população negra, indígena e quilombola? Vamos nos olhar no espelho e refletir sobre o fato de que sermos brancos nos dá privilégios?

Na UFRGS, algumas pesquisas têm surgido para debater e lançar o olhar sobre a branquitude. O que é isso? Cleber Teixeira Leão, professor de História da rede estadual de ensino e mestre em Ensino de História pela UFRGS, homem preto de periferia (como se define) defendeu este ano a dissertação Entre o visível e o invisível: a branquitude e as relações raciais nos conteúdos curriculares de ensino de História. Para ele, a branquitude é um local de privilégios do branco: “Branquitude é ter poder, é definir o branco racialmente através dos seus privilégios. Na perspectiva da história, o branco e a sua identidade racial são construídos historicamente ao mesmo tempo em que ele se invisibiliza enquanto raça e passa a racializar o outro. Assim, o branco não é raça, não é cor; o outro que é o preto, o mestiço, o aborígene, o indígena”.

Ao se tornar universal por conta da sua construção social ao logo dos anos, o branco adquire um superpoder: ser invisível. Bruna Moraes Battistelli, psicóloga, mestra e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS não pesquisa branquitude, mas, na condição de mulher branca de periferia, considera fundamental debater esse assunto. Há 13 anos frequenta o Instituto de Psicologia como estudante e aponta que mexer no pacto narcísico da branquitude é tirar “os travesseiros confortáveis” dos brancos, citando o texto Fragilidade branca, de Robin Diangelo. “Precisamos mexer naquilo que os brancos colocam embaixo do tapete. É desconfortável e arriscado falar disso? Sim, mas o meu corpo não é violentado, da mesma forma que uma mulher indígena ou negra. Se eu não assumo o risco de criar/sustentar o conflito, eu me mantenho no lugar confortável da branquitude. A branquitude se sustenta quando evitamos o conflito racial, quando nos calamos em relação a atitudes racistas de outras pessoas brancas”.

Por definição, Lourenço Cardoso, historiador e sociólogo, autor da obra O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil, explica que a branquitude enquanto conceito “significa a pertença étnico-racial atribuída ao branco. Podemos entendê-la como o lugar mais elevado da hierarquia racial, um poder de classificar os outros como não brancos, colocando-os, assim, como inferiores aos brancos. Ser branco se expressa na corporeidade, isto é, a brancura, e vai além do fenótipo. Ser branco consiste em ser proprietário de vantagens/privilégios raciais simbólicos e materiais. Por exemplo, os pesquisadores negros e negras são aqueles que possuem, a partir dos anos 1990, uma produção quantitativa e qualitativa melhor para tratar da questão racial. No entanto, os meios de comunicação acabam por optar em convidar o branco tanto para falar de negritude quanto de branquitude. Isso colabora para invisibilização da produção científica negra. O irônico é que muitos pesquisadores brancos aprenderam sobre os temas de raça, negritude e África, em geral, a partir das pesquisas dos seus orientandos negros e negras. E eles também colaboram de forma não proposital ou proposital para o silenciamento da produção científica negra. Quando isso acontece de forma planejada, trata-se da efetivação do pacto narcísico, um pacto entre brancos para manutenção das suas vantagens raciais”. (Declaração publicada na reportagem Lourenço Cardoso: “Temos potencial para abolir o racismo e todas as outras formas de opressão”, do El País, de 30 de novembro de 2019. Confira o texto completo em https://brasil.elpais.com/brasil/2019-11-30/lourenco-cardosotemos-potencial-para-abolir-o-racismo-e-todas-as-outras-formas-de-opressao.html).

A branquitude e a academia

Bruna e Cleber representam uma leva de pesquisadores que estão provocando o debate e o confronto sobre a branquitude na academia. O que Cardoso fala acima sobre silenciar a produção científica negra é vivenciada por Bruna na construção da sua tese. Mesmo não pesquisando o assunto, a acadêmica pensa a respeito do enfrentamento à supremacia branca do ponto de vista dos autores a serem usados no seu trabalho e reflete sobre como a academia ainda valoriza a produção intelectual brancocentrada. “A Universidade é um lugar de privilégios, da branquitude, de fortalecimento e uso de narrativas europeias e norte-americanas. Protegemos e reproduzimos obras de intelectuais franceses e estadunidenses em detrimento de intelectuais negros e brasileiros”, frisa ela, revelando uma frase que já ouviu na academia. “Você precisa descolonizar o seu trabalho, então leia (Gilles) Deleuze, (Michel) Foucault e (Giorgio) Agamben”.

É como se pensadores oriundos da América Latina, da África, do Caribe não existissem, fossem apagados propositalmente ou tivessem a sua produção científica e intelectual reduzidas por conta da cor da sua pele. Neste modelo de construção do que é conhecimento válido e o que não é, o negro e o indígena ficam no campo do folclore, do exótico, do cultural, não conseguindo transcender a barreira da capacidade de produzir conhecimento intelectual. “É gritante que, na maioria dos cursos, 80% dos autores estudados são europeus. Esquecemos que existem trabalhos maravilhosos no Caribe, na África, e eles não são usados porque se compra um discurso de que a escola europeia, principalmente a francesa, ainda é o primordial”, diz Cleber.

É papel da Universidade reconhecer esse espaço brancocêntrico e a produção de conhecimento nesse lugar de privilégios, ainda dominado pelos brancos. A reflexão de Cleber na sua dissertação aborda o modelo de ensino de História a partir do ensino fundamental da rede pública. Trazer esse tema para dentro da UFRGS faz com que a comunidade acadêmica reflita sobre como se dá a sua própria produção de conhecimento. “O ensino é branco porque se deslocou, primeiro na Europa depois nos Estados Unidos, locais formadores da base social e cultural. Hoje o nosso padrão mostra que queremos ser europeus, estadunidenses, porque a branquitude está lá. Isso se reflete na Universidade ao trabalhar autores do eixo Europa-Estados Unidos. Precisamos desconstruir isso”, frisa Cleber.

Bruna reforça esse ponto de vista a partir do ensino da Psicologia, em que a formação desse profissional ainda é muito elitista, branca e racista, além de homofóbica, transfóbica e machista.

“O meu estudo no doutorado na UFRGS é sobre políticas de pesquisa e cuidado, porém vejo que é fundamental pensar a supremacia branca e os autores usados na academia durante as minhas reflexões e escolhas. Se eu não fizer isso, o meu conhecimento vai continuar servindo para alimentar essa roda que gira e que mói vidas”.

A doutoranda cita Bell Hooks, que instiga o leitor a pensar a supremacia branca como um lugar de vantagens, como sustentação de todo o aparato da sociedade (educação, universidade, políticas públicas, mídia); uma reflexão necessária para a quebra do privilégio epistêmico existente dentro da academia. Se isso não for feito, a Universidade se manterá como um campo de produção colonizador, branco, masculino e cis- heteronormativo . “Escolhemos fazer aliança com homens franceses de fala complicada e pelas bandas de cá nos deslumbramos. Óbvio que eles têm o que dizer, o problema é serem tomados como a única epistemologia possível.”.

Um exemplo da alegação de Bruna  está no apontamento de Cleber, quando ele alerta que Lourenço Cardoso tem menor lugar de fala do que Lia Vainer Schucman pelo simples fato de ser preto. “A Lia tem um trabalho essencial, que é referência neste campo, mas percebemos que o fato de ela ser branca faz com que seja referência no tema branquitude, que na verdade foi melhor definido por Cardoso. O negro pesquisando o branco, ou seja, o objeto agora observando o observador, é um problema e causa tensões. Quando o branco faz pesquisa sobre negros e indígenas é algo natural, mas o inverso parece ser uma espécie de revanchismo. Academicamente falando é desejável que o pesquisador se desloque para outros olhares”.  

Debater a branquitude na ciência no Novembro Negro é necessário e essencial. Isso porque pensar a branquitude vai além de pensar essa data somente sob a perspectiva do negro, seja na produção intelectual, na resistência, na igualdade. É preciso deslocar a tensão e analisar quem tem privilégios, quais são eles e quem tem o poder de mudar isso. “Discutir branquitude é ampliar e aprofundar o debate para que não fique vinculado apenas às questões do negro e do indígena, mas sim se coloque mais um elemento, que, para mim, é o principal: o branco”, enfatiza Cleber.

A crítica aqui está em se falar de negro, do preconceito racial, dos privilégios apenas no Novembro Negro. Por que não trazer problematização da branquitude e de todos os problemas estruturais que ela vem provocando ao longo da nossa história enquanto sociedade nos textos acadêmicos, com autores para além do eixo Europa-Estados Unidos? Por que não valorizar a produção de conhecimento feita pelos intelectuais negros, indígenas, quilombolas brasileiros? Por que não inserir nos currículos outros pontos de vista? Bruna lembra bem um episódio de ocupação no Instituto de Psicologia, em que estudantes negras/os solicitavam a leitura de Maria Aparecida Bento (psicóloga, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT – e ativista brasileira) em todas as disciplinas. “Não é estudando raça uma vez por semestre que vamos arrancar a branquitude do conforto, que vamos mexer/superar supremacia branca. O que esses estudantes queriam era que as pessoas brancas olhassem o que elas produzem quando pactuam entre si narcisicamente, queriam que as mudanças começassem nas relações em sala de aula. Ler Maria Aparecida Bento é olhar para o supremacista branco que mora em nós, que mora em mim, que mora em você, que mora nas nossas ações, nos nossos textos, é lê-la para além do conceito de branquitude, mas repensar como olhamos as instituições e as organizações. Maria Aparecida Bento é referência para pensar como as instituições se organizam”.

Pare, olhe, leia, reflita!

A desconstrução do preconceito racial

Construída em cima de preconceito, a sociedade se molda de acordo com os discursos, mas isso não quer dizer que todas as pessoas estejam tomando posições preconceituosas. A fala, a piada, a escrita, os gestos são carregados por expressões de uma identidade socialmente construída sobre pilares preconceituosos. Isso está enraizado na nossa sociedade, e para quebrar esse paradigma são fundamentais a autocrítica e o exercício diário de reflexão.

“O racismo e, por consequência, o pacto narcísico da branquitude moldam a sociedade. Se você é branco, você se privilegia do racismo que impera em nosso país. E isso não quer dizer que você é uma pessoa má. Pensando no que Lourenço Cardoso afirma, não basta ter um posicionamento público crítico ao racismo, é preciso que outras práticas cotidianas sejam constituídas”, reflete Bruna.

A Universidade é um lugar propício para isso. Dela saem conhecimentos diversos que nos fazem repensar posturas e pensamentos. Cabe a ela, também, ampliar seus horizontes, investigar novos pensadores e cientistas, refletir sobre as políticas de inclusão e permanência dos estudantes negros, indígenas e quilombolas. A aposta aqui seria nas relações humanas e na mudança de comportamento de cada pessoa branca, como coloca Bruna: “Eu já ouvi, mais de uma vez, em sala de aula ‘acho muito legal os alunos negros, eles me ajudam com o que eu tenho que melhorar’ ou ‘eu sou antirracista, eu trabalho com bolsistas negros’. Se as pessoas brancas não entenderem o racismo dessas afirmações, não sei como podemos prosseguir. E essas frases não são exceções, são a realidade de um lugar que até bem pouco tempo era um reduto protegido branco”.

Na sua investigação científica, Cleber leva a pesquisa sobre branquitude para salas de aula do ensino fundamental em um bairro de periferia em Porto Alegre. De maneira crítica e interativa, usando a internet e o livro didático, o pesquisador trabalhou, em cinco encontros, aspectos da branquitude, para que os estudantes refletissem e chegassem ao conceito por si sós. Um dos achados mostra que o currículo de História no Brasil não usa o termo branco. O ser branco fica escondido em termos como europeu, trabalhador, homem, mulher, dando um caráter universal ao se falar do branco. Já quando se fala do negro e do indígena, eles são pontuados racialmente: o trabalhador negro, o escravizado negro, o trabalhador indígena, a mulher indígena, a cultura indígena. Ou seja, sempre que o texto fala de cultura e arte remente ao branco, não há o peso racial.

“O branco é posto de maneira universal e isso é um grande problema dentro dos conteúdos de História, porque se mostra o que realmente não é. Estamos falando da cultura do branco, somente”, elucida Cleber. 

A desconstrução dessa marca ideológica e racial passa pela conscientização. Nas escolas em que Cleber aplicou a pesquisa, os estudantes exercitaram a autocrítica e a auto-observação e entenderam por si sós o que é ter privilégios por conta da sua cor. “Eu queria mostrar como o branco é retratado no livro didático que usamos todos os dias, e os alunos captaram muito rápido. Foi uma das coisas que mais me surpreendeu, eles entenderam muito racionalmente o que é ter privilégios ou não, principalmente dentro de alguns nichos: grupos LGBTs, por exemplo, por serem discriminados desde muito cedo conseguem entender muito facilmente o que é privilégio e a falta dele, assim como as meninas, que problematizavam e tensionaram a questão, se posicionaram. A escola precisa se repensar.”


Repensar e refletir, tensionar e criticar, enfrentar e aprofundar o debate. Olhar para si e pensar coletivamente. Esses são os principais desafios em tempos de polarização e individualismo. Você não é o culpado pela escravidão, mas colhe os frutos de um mundo construído a partir da perspectiva do preconceito racial. Isso é branquitude! O seu privilégio precisa ser questionado. Até que ponto você, branco, está disposto a pensar a equidade racial e abrir mão de certos confortos? Agora, mais do que nunca, é preciso repensar esses privilégios. 

Saiba mais sobre branquitude na pesquisa acadêmica assistindo ao debate online promovido pela Comissão Permanente de Combate ao Racismo Institucional da UFRGS (CPCRI).

Acesse: https://www.youtube.com/live/YWBSRQi0538?si=QfcPvoW95F1U3NWI.

Acesse a dissertação de Cleber Leão ‘Entre o visível e o invisível: a branquitude e as relações raciais nos conteúdos curriculares de ensino de história’ em https://lume.ufrgs.br/handle/10183/213391. [1]

[1] Texto de Nicole Trevisol.

Como citar esta notícia científica: UFRGS. Branquitude: privilégio branco e a raiz do preconceito racial. Texto de Nicole Trevisol. Saense. https://saense.com.br/2020/11/branquitude-privilegio-branco-e-a-raiz-do-preconceito-racial/. Publicado em 27 de novembro (2020).

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