Marcus Eugênio Oliveira Lima
07/11/2020
No filme “Bastardos Inglórios” de 2009, dirigido por Quentin Tarantino, há uma cena que se passa numa taverna no interior da França, durante a 2ª Guerra Mundial, na época da invasão dos nazistas. Trata-se de uma trama na qual o exército britânico planeja um ataque contra os nazistas, que poderá matar Hitler e pôr um fim à guerra. Interessa-nos dessa cena uma pequena passagem, que ocorre quando um major do exército alemão, chamado Dieter Hellstrom, começa a investigar quem são os britânicos disfarçados de soldados nazistas. No primeiro momento o major, que se autointitula especialista em sotaque, desconfia da forma de falar alemão dos britânicos disfarçados. Em seguida, o atento oficial percebe que um dos soldados disfarçados, ao pedir “três uísques”, utilizou os três dedos médios. Tal gesto destrói o disfarce dos britânicos, pois os alemães usam o polegar, o indicador e o dedo médio para representar visualmente o número “três”. Graças à enorme capacidade de detecção de “não alemães” do major nazista, a cena termina com um grande tiroteio, em que morrem quase todos que estavam na taverna.
Vamos, então, visualizar outra cena, a de Gisele Barreto Fetterman, brasileira, carioca, branca, vivendo nos Estados Unidos, rica e casada com o vice-governador da Pensilvânia. Ela, a fim de “se sentir uma pessoa normal”, dispensa seus seguranças e vai ao mercado comprar kiwis. Tudo se passa num domingo, 11 de outubro de 2020. Na fila do caixa, nossa personagem é reconhecida por uma senhora que grita: “Ali está aquela negra casada com Fetterman. Você não pertence aqui, ninguém te quer aqui.” A tal senhora ainda acompanha Gisele até o carro, chamando-a de “nigger” e ladra. Na fotografia da reportagem, você verá que não é tarefa fácil classificar Gisele como negra, pelo menos para nós brasileiros [i]. Mas, se mesmo assim quiser classificar, cuidado! Poderá estar sendo vítima do fenômeno que retrataremos neste texto.
O que há de comum nas duas cenas relatadas? O enorme interesse, preocupação e capacidade que membros dos grupos dominantes têm para definir quem pertence e quem não pertence a seus grupos; sendo para isso capazes de perceberem detalhes que pessoas comuns nunca notariam. Tal fenômeno se espraia para outras esferas: Quem você acha que é mais competente para reconhecer um homossexual assim que o vê? Quem é mais especialista em identificar judeus? Negros? Muçulmanos? Evangélicos? Nordestinos? Esquerdistas? Direitistas? De forma mais ampla, quem é o campeão em classificação de pertencimentos grupais a partir de indícios mínimos e, muitas vezes, indícios nenhuns? Neste texto vamos apresentar, brevemente, algumas teorias da psicologia social que tratam de um fenômeno chamado “efeito da super-exclusão”(overexclusion effect, no original).
A super-exclusão foi formulada, pela primeira vez, como explicação para fenômenos como os acima relatados, logo depois da 2ª Guerra Mundial. Naquela época, alguns pesquisadores queriam saber se os rostos dos judeus eram reconhecíveis além do nível do acaso e se alguns juízes eram melhores nessa tarefa do que outros. Estudos mostraram, utilizando fotos de rostos ou sobrenomes de judeus e não judeus, que os participantes mais preconceituosos (antissemitas) eram mais capazes de detectar os judeus do que os não preconceituosos. Esse fenômeno ocorreria porque as pessoas mais preconceituosas tenderiam a ser mais atentas e vigilantes em relação a membros do grupo que não gostam, o que lhes fariam adquirir maior conhecimento de suas características e maior preocupação em classificá-los como “externos” aos seus próprios grupos de pertencimento.
Mais tarde, as pesquisas constataram que a super-exclusão se referia mais ao julgamento de quem poderia entrar no grupo de pertencimento do avaliador (endogrupo), do que para os que estavam fora, em outros grupos (exogrupos) [ii]. Sumarizando, quando as pessoas são confrontadas com a percepção ou avaliação de outra pessoa que é um candidato potencial a pertencer ao seu grupo, elas tendem a ser mais cuidadosas e preocupadas com seus julgamentos, do que quando julgam um candidato desconhecido que pertence a outro grupo [iii].
Vamos trazer a teoria abstrata mais para perto de nós. Numa situação hipotética, em que você precisa tomar uma decisão, o que lhe parece mais relevante decidir, se a “Pessoa X” faz parte da família do seu vizinho ou se ela faz parte da sua? A ideia é que nossos grupos e categorias sociais de pertencimento, ainda que só os percebamos quando em contraste com os grupos dos outros, são psicologicamente centrais para nós em termos de interesse: “vivemos neles, por eles e, às vezes, para eles” [iv]. Alguns estudos mostram que a necessidade de perceber o grupo de pertencimento como uma entidade homogênea e excludente dos outros diferentes é maior entre os membros que possuem baixo status e, ao mesmo tempo, se sentem mais identificados, isto é, ligados psicologicamente) ao grupo [v].
As percepções sobre inclusão/exclusão acontecem sempre em um ambiente no qual os outros grupos e indivíduos são uma estrutura referencial de comparações. Algumas comparações de status social são mais “seguras”, por exemplo, a diferença de status físico entre atletas profissionais e monges sedentários; enquanto outras comparações são “inseguras”, tais como a diferença de performance entre dois times de futebol, o que venceu o campeonato e o segundo colocado [vi]. Das comparações do primeiro tipo resultariam as “identidades seguras”, das do segundo as “inseguras” [vii]. Os mais preocupados com o controle das “fronteiras” dos seus grupos, ou seja, com a super-exclusão, seriam os com identidade mais insegura, porque se sentem mais ameaçados de deixar de pertencer ao grupo.
Assim, o efeito da super-exclusão faz com que membros do grupo, sobretudo os de mais baixo status e com identidade mais insegura, sejam mais “zelosos” em protegerem seus grupos de “maus candidatos” e mais suscetíveis em excluírem os “membros ruins”. Um fenômeno que facilita o funcionamento da super-exclusão é aquele que a literatura em cognição social chama de “black sheep effect”. Quando um membro falha em manter padrões exigidos pelo grupo, mostrando-se dissidente ou “inadequado”, ele é isolado, violentamente depreciado e, às vezes, excluído, como a “maçã podre do cesto”. Tal processo de expiação pública de membros “anômalos” serviria para “curar” o grupo das suas faltas e proteger as identidades que lhe estruturam. Nesses casos, os membros dissidentes seriam julgados mais severamente pelos seus colegas de grupo que pelos membros de outros grupos.
Modernamente falando, estaríamos diante de um “cancelamento social”, só que dentro das fronteiras do grupo. Uma ilustração do efeito “black sheep” no âmbito da super-exclusão, vem do campo do debate político nacional. Um estudo recente mostrou que a deputada Federal Tabata Amaral (PDT), que possui posições mais à esquerda no espectro político, se sentia mais violentamente atacada em portais da esquerda nas redes sociais do que a deputada de extrema-direita Carla Zambelli (PSL): “em um ano e meio, havia 65 menções negativas a mim contra 4 menções à deputada Carla Zambelli (PSL-SP), cujas visões de mundo, aí sim, são diametralmente opostas às dos curadores dessas páginas” [viii]. Também sabemos que o mesmo processo de linchamento do membro dissidente já aconteceu nas hostes da extrema-direita contra personagens que foram relevantes em algum momento, a exemplo de Janaína Paschoal e Joice Hasselmann.
Em termos psicológicos, o mecanismo da super-exclusão atua da seguinte forma: os indivíduos com identidade mais insegura e menor status adotam de maneira mais indiscriminada as normas do grupo, a fim de serem aceitos e de aumentarem a sua distintividade social, isto é, sua capacidade de se perceber e ser percebido como diferentes dos membros “externos” e parecidos com os membros “internos”. Como consequência, tornam-se mais obcecados com as fronteiras do seu grupo e, assim, com a inclusão e exclusão de outros membros.
A super-exclusão conduz a uma “obsessão pelas pequenas diferenças”, como fica evidente em vários acontecimentos sociais. Por exemplo, em abril de 2013, quando duas bombas explodiram perto da linha de chegada da Maratona de Boston, matando três pessoas e ferindo 280, o FBI divulgou os nomes de dois irmãos suspeitos do atentado: Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev. Uma imagem complexa começou a se formar na mente de parte dos estadunidenses naquela altura. Embora os nomes e o sobrenome soassem pouco usuais para a maioria dos norte-americanos, os suspeitos moravam nos Estados Unidos há muitos anos e possuíam origem étnica do norte do Cáucaso, a mesma região que deu nome ao termo “caucasiano”. Pronto! Bastou isso para tornar a questão sobre se os dois irmãos eram ou não “brancos” a mais importante na mídia e nos debates públicos para os brancos do país. Uma equipe de psicólogos sociais, que realizou um estudo dois dias depois do atentado, constatou que a percepção social de “brancura” da pele dos dois suspeitos foi de 64 pontos, numa escala que variava de 0 (“não brancos”) a 100 (“brancos”). Mais importante, quanto menos os suspeitos eram percebidos como “brancos”, mais os participantes eram a favor de um tratamento severo das autoridades policiais contra eles e de ofensivas violentas do Estado contra o terrorismo [ix].
O efeito da super-exclusão pode, portanto, nos ajudar a entender uma série de eventos nos quais os julgamentos sociais de quem pertence “ao meu grupo” e quem não pertence, se tornam importantes, podendo desencadear emoções fortes e comportamentos violentos. No caso da brasileira Gisele, aparentemente branca, mas “essencialmente” negra na visão da senhora que a perseguiu, o racismo associado à identidade insegura e ao baixo status da americana branca e pobre (se comparada a Gisele), fez com que um indício mínimo, “uma pequena diferença”, a grossura das sobrancelhas ou mesmo a pele mais bronzeada, levasse à super-exclusão e à manifestação da discriminação racista; supostamente para “proteger” as fronteiras do seu grupo que ela, possivelmente, pensa estar ameaçado. O mesmo fenômeno atua para explicar porque os heterossexuais mais inseguros na sua identidade de gênero são também, na maior parte das vezes, os mais homofóbicos e mais preocupados em cerrar as fronteiras do seu grupo.
Podemos dizer que em quase todas as formas de preconceito opera o efeito da super-exclusão. Contudo, é importante lembrar que a literatura em psicologia social demonstra, igualmente, que a defesa das fronteiras dos nossos grupos não precisa implicar no ataque aos grupos dos outros. Esse triste desenlace ocorre em situações específicas, com condicionantes próprias, algumas das quais destacamos nessa breve análise, mas existem várias outras [x]. Esperamos que alguns dos links deixados possam ampliar seu conhecimento sobre os fenômenos relacionados à percepção social, ao preconceito e à exclusão dos diferentes.
[i] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/carioca-vice-primeira-dama-de-estado-dos-eua-e-atacada-por-racista-no-mercado.shtml.
[ii] Leyens J.-P. & Yzerbyt, V. (1992). The ingroup overexclusion effect: Impact of valence and confirmation on stereotypical information search. European Journal of Social Psychology, 22, 549-569.
[iii] Yzerbyt, V. Y., Leyens, J.-Ph., & Bellour, F. (1995). The ingroup overexclusion effect: Identity concerns in decision about group membership. European Journal of Social Psychology, 25, 1-16.
[iv] Yzerbyt, V., Castano, E., Leyens, J.-P., & Paladino, M.-P. (2000). The Primacy of the Ingroup: The Interplay of Entitativity and Identification, European Review of Social Psychology, 11, 257-295.
[v] Doosje B., Ellemers, N., & Spears, R. (1995).Perceived intragroup variability as a function of group status and identification. Journal of Experimental and Social Psychology, 31, 410-36.
[vi] Tajfel, H. (1974). Social identity and intergroup behavior. Social Science Information, 13, 65-93.
[vii] Turner, J. & Brown, R. (1978). Social status, cognitive alternatives and intergroup relations. In H. Tajfel (ed.), Differentiation Between Social Groups: Studies in the Social Psychology of Intergroup Relations. London: Academic Press, pp. 201-234.
[viii] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tabata-amaral/2020/09/o-gol-e-para-o-outro-lado.shtml?origin=folha.
[ix] Kteily, N., Cotterill, S., Sidanius, J., Sheehy-Skeffington, J., & Bergh, R. (2014). “Not One of Us”: Predictors and Consequences of Denying Ingroup Characteristics to Ambiguous Targets. Personality and Social Psychology Bulletin, 40, 1231–1247.
[x] Brewer, M. (1999). The psychology of prejudice: Intergroup love or outgroup hate. Journal of Social Issues, 55, 429-444.
Como citar este artigo: Marcus Eugênio Oliveira Lima. Efeito da super-exclusão ou quem entra e quem não entra no meu grupo. Saense. https://saense.com.br/2020/11/efeito-da-super-exclusao-ou-quem-entra-e-quem-nao-entra-no-meu-grupo/. Publicado em 07 de novembro (2020).