Jornal da USP
15/12/2020
Por Adilson Paes de Souza, mestre pela Faculdade de Direito da USP e doutor pelo Instituto de Psicologia da USP
Norberto Bobbio, filósofo italiano, define polícia como sendo uma das funções do Estado (Dicionário de Política, UnB, 2008). Polícia é apenas uma das maneiras pelas quais ele faz-se presente na vida das pessoas. Pode parecer redundante tal afirmação, mas não é. É muito comum, quando da ocorrência de fatos graves envolvendo policiais, que se traduzem em graves violações de direitos humanos, determinada autoridade pública vir a público manifestar profundo desagrado e pesar pelo ocorrido e procurar omitir a sua responsabilidade, atribuindo eventual responsabilidade para a polícia, algo difícil de controlar, cujo universo é difícil acessar. Polícia, nesta visão, é uma organização que desfruta de autonomia e liberdade de ação, difícil de controlar.
A diluição de responsabilidades atribuíveis aos agentes encarregados de prover a segurança da população e que atuam em nome do Estado, ante os abusos verificados com uma constância relevante, é uma prática comum. Ao perpetuar tal prática estimula-se a violência policial, pois um sentimento de apoio e de impunidade se estabelece e se sedimenta.
O universo policial é inacessível à sociedade. Desde o estabelecimento de critérios para a seleção dos candidatos no concurso público de ingresso, passando pela política educacional e pelo desenrolar da atividade policial no dia a dia, após formados, nada disso contém o selo da transparência e do efetivo controle social. Vale dizer, a sociedade, principal cliente, para utilizar uma expressão do mercado, é impedida de conhecer, de participar e de avaliar. Sequer é assegurado o direito de reclamar, há uma aura de falta de transparência na apuração dos desvios de conduta, apurações que se estendem em demasia no tempo para dar em nada; as sucessivas tentativas, muitas delas com êxito, de desqualificar as vítimas, tornando-as culpadas pelo próprio infortúnio, muitas vezes traduzido na morte.
A militarização de seus agentes é evidente. Desde o ingresso nas escolas de formação, a pessoa é despida da sua condição de civil, buscando quebrar os vínculos havidos antes, para a formação da identidade do guerreiro, com o estabelecimento de vínculos entre seus pares. Opera-se a morte do eu civil para o surgimento do eu militar. O que falar de um ambiente baseado na virilidade, nos ritos de passagem calcados na humilhação e na submissão a sessões de castigos físicos que aviltam o ser, num ambiente onde a onipotência e a supremacia perante todos aqueles que não ostentam a mesma condição são enaltecidas a cada momento?
Mas não para por aí. A militarização se expandiu para além da polícia militar. Há pesquisas que apontam que prevalece a impunidade nas apurações sobre mortes praticadas por policiais militares. A Polícia Civil, o Ministério Público e o Judiciário, possíveis órgãos de controle da atividade policial, segundo pesquisas, buscam comprovar as alegações dos policiais envolvidos, muitas vezes desprezando os laudos periciais (Michel Misse. Quando a Polícia Mata. NECVU/ Booklink, 2013). A vítima é assassinada pela segunda vez, na sua reputação. Seus familiares, parentes e entes queridos são agredidos mais de uma vez. Consuma-se, sob a decisão de arquivo dos processos, a despersonalização do ser, ele é rebaixado no status humano, novamente, para algo descartável, nocivo para a sociedade e que não merece a guarida da lei. Como diz Orlando Zaccone (Indignos de Vida, Revan, 2015), estas vítimas recebem a chancela oficial de indignos de vida e ressalta: não temos a pena de morte no Brasil, temos a morte sem pena. A presença da Doutrina de Segurança Nacional está assegurada e, com ela, há a sedimentação do discurso de eliminação do inimigo da nação. O sistema que requer a existência de guerreiros, necessita de inimigos para serem eliminados. Somente no Estado de São Paulo, mais de 70% das vítimas da letalidade policial são negras e moradoras das periferias. No Brasil, a maior parte dos ocupantes do sistema prisional são negros, pobres e com baixa escolaridade. O racismo faz-se presente com força avassaladora, explicitando quem é o inimigo.
O Brasil errou e paga o preço por um processo constituinte peculiar. Com o advento da nova Constituição, estruturas concebidas na ditadura permaneceram intactas. A da segurança pública é uma delas. Note que o decreto-lei 667 de 1969 que reorganizou as polícias militares brasileiras, cujo fundamento expresso é o AI-5, continua muito bem vivo. Algo embasado no AI-5 sobrevivendo à Constituição cidadã? Como resultado, é prática recorrente a aniquilação de pessoas classificadas, por critérios bem próprios e arbitrários, como inimigas da sociedade. A falta de transparência nos mais variados aspectos da segurança pública é prática recorrente e a impunidade é, também, prática recorrente. Pedro Aleixo estava certo: o guarda da esquina fez e faz mau uso dos poderes que lhe foram e são atribuídos.
Mas, novamente, não para por aí. Além da falta de transparência e da impunidade, há a “máquina de criar monstros” (triste, porém lúcida constatação de Rodrigo Nogueira, no livro de sua autoria Como nascem os monstros, Topbooks, 2013) atuando em pleno vapor. As pessoas que ingressam na polícia são submetidas a atividades pedagógicas nefastas, a saber: ingestão de vômito de colegas; privação de água, alimento e sono; castigos físicos e psicológicos, verdadeiras torturas; exposição constante à ideologia de guerra e de eliminação dos inimigos, medo, terror. Há um evidente sofrimento vivenciado pelos alunos policiais e que continua presente nas unidades onde irão trabalhar. A subcultura policial, pouco estudada no Brasil, atua com força, subvertendo corações e mentes, cooptando novas pessoas para as hostes letais. O homicídio praticado pelo policial é um importante rito de passagem. Muitas vezes, para ser aceito no grupo e desfrutar do conceito de ser bom policial, deve matar. Caso contrário, será excluído pelo grupo. Quem mata é tido como exemplo de conduta. A subcultura policial pode ser definida como um conjunto de valores e normas amplamente compartilhados entre os policiais, que creem serem hábeis para auxiliá-los a lidar com os problemas no ambiente de trabalho. Ela é mais forte que as normas oficiais e determinam cursos de ações. Há estudos, realizados com polícias fora do Brasil (SKOLNICK, J. Deception by Police. Criminal Justice Ethics. 1982), demonstrando que as instituições policiais sabem da existência da subcultura policial, mas adotam uma disposição para enganar a sociedade, fingem que não sabem e negam sua existência. Precisamos falar e estudar mais a presença e atuação da subcultura policial no Brasil.
Busquei demonstrar aspectos da falência do nosso sistema de segurança pública. Busquei evidenciar que o desafio para mudá-lo é muito maior do que se pode imaginar. Não é uma questão de somente (e emprego esta expressão sem qualquer intenção de diminuir a sua importância) combater a impunidade. Há muito mais a ser feito. Falo do que denomino determinantes sociais, institucionais e subjetivas da letalidade policial. Policiais matam. Policiais morrem assassinados, mais de folga do que em serviço. Policiais consumam suicídio em números alarmantes. Não há vencedores.
Tudo, por óbvio, ignorado pelas autoridades e por segmentos da sociedade. A fábrica de monstros (e de monstruosidades) continua operando com plena força e muito bem!
Como citar este artigo: Jornal da USP. A insegurança pública nossa de cada dia. Texto de Adilson Paes de Souza. Saense. https://saense.com.br/2020/12/a-inseguranca-publica-nossa-de-cada-dia/. Publicado em 15 de dezembro (2020).