UFRGS
15/02/2021
Uma pesquisa da UFRGS demonstrou que é possível reduzir em torno de 50% as lesões causadas por hipóxia-isquemia neonatal, evento caracterizado por um sufocamento do bebê e normalmente causado por complicações na gravidez ou no parto. A hipóxia-isquemia neonatal causa danos às células do sistema nervoso do bebê, o que pode provocar problemas motores, paralisia cerebral e até mesmo levar a óbito. A partir desse quadro, os pesquisadores decidiram testar o lactato como estratégia de tratamento desse acidente perinatal. Lactato é também conhecido como ácido lático, um resíduo produzido nos músculos após atividades físicas que geralmente causa um desconforto. Essa substância era considerada apenas um resíduo metabólico que deveria ser expelido pelo corpo humano, mas novas pesquisas apontaram efeitos positivos dela no sistema nervoso, o que levou à ideia de testá-la no caso da hipóxia-isquemia neonatal. O estudo foi publicado em novembro na revista Neuroscience, sendo inclusive tema da capa. O periódico, mantido pela International Brain Research Organization (IBRO), é referência mundial na área de neurociências.
O fenômeno hipóxico-isquêmico pode ser de difícil diagnóstico, e suas consequências podem se apresentar até os 2 anos da criança. O professor Luciano Stürmer de Fraga, chefe do departamento de Fisiologia da UFRGS, explica que a hipóxia-isquemia não tem necessariamente uma causa principal: há uma falta de trocas gasosas e, portanto, de oxigênio nos pulmões, ocasionando problemas para o bebê. “Uma causa comum é o enrolamento do cordão umbilical”, exemplifica. Isadora Tassinari, pesquisadora do mesmo Programa, acrescenta que são eventos que podem acontecer não só durante o parto, mas também antes e depois.
Como foi feito o estudo
Isadora esclarece que, durante o evento hipóxico-isquêmico, ocorre uma redução de oxigênio e glicose que chegam ao sistema nervoso, o que coloca em risco todo o corpo. Isso mata as células nervosas, que nunca mais se regeneram – daí a seriedade dos danos causados. Na pesquisa, os cientistas usaram lactato para tratar esse acidente, simulando a hipóxia-isquemia em modelo animal, em ratos com sete dias de vida. Esses roedores foram escolhidos por terem um sistema nervoso semelhante ao de um bebê recém-nascido.
Para que os animais fossem submetidos ao evento hipóxico-isquêmico, tiveram sua artéria carótida direita (um vaso sanguíneo na região do pescoço que supre o sistema nervoso) obstruída. Em seguida, foram expostos a uma atmosfera com apenas 8% de oxigênio por uma hora. A ideia era provocar de fato uma lesão no sistema nervoso tal qual esse acidente causaria em crianças. “A gente ocasionou essa lesão nos ratos e então testou possíveis agentes neuroprotetores, que reduzissem essa lesão”, ressalta Luciano. Trinta minutos depois, os ratos foram divididos em dois grupos: um deles recebeu uma injeção de lactato como tratamento; e ao outro não foi ministrado nada. Os pesquisadores testaram o comportamento e o reflexo dos animais, já que episódios de hipóxia-isquemia geralmente causam danos motores – eles verificaram, por exemplo, se o rato conseguia se mover corretamente, ou levantar caso fosse virado de costas para baixo. Após o cálculo do volume das lesões cerebrais, foi constatado que o grupo ao qual foi ministrado lactato teve uma redução de quase 50% no tamanho da lesão em relação ao outro grupo. Além disso, os ratos que receberam a injeção apresentaram menos danos motores que os outros.
A pesquisadora explica que, apesar de ser claro o funcionamento do lactato, esse modelo do estudo não consegue descrever como e com que mecanismos essa substância atua. “O resultado foi empírico: é possível observar melhoras motoras e a redução da lesão, mas não sabemos ainda limites de dosagens ou de tempo para realizar a injeção, além dos parâmetros adotados para esse estudo”, afirma. Luciano complementa que outra pesquisa semelhante, realizada na França, alcançou resultados parecidos, mesmo utilizando dosagens de lactato e tempos diferentes, o que indica uma segurança no uso da substância.
Sobre a hipóxia-isquemia neonatal
O coordenador do PPG Fisiologia afirma que a prevalência da hipóxia-isquemia é bem variável. Artigos científicos divulgados nos Estados Unidos e na Europa indicam algo em torno de um a oito casos a cada mil partos, mas Luciano salienta que esse índice pode ser bem mais alto, de acordo com as condições socioeconômicas do país ou do local analisado. No Brasil, porém, não há dados centralizados sobre a doença. No entanto, é um evento conhecido, apesar de não ser fácil o diagnóstico nem a obtenção de dados sobre o quão comum ele é. O professor acrescenta que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há uma média de 900 mil a 1 milhão de mortes todo ano em função da doença. “Daí a discussão de que qualquer terapia que reduza a mortalidade em 1%, por exemplo, significa salvar a vida de dez mil crianças”, ressalta Luciano. O estudo fez parte do mestrado de Isadora, orientada por Luciano e coorientada por Ana Helena Paz, professora do mesmo Programa.
Os cientistas explicam que o único tratamento atualmente preconizado pela OMS para esse evento é a hipotermia terapêutica, que consiste em resfriar a criança, seja por meio de colchões e travesseiros térmicos ou, sem equipamentos, com um banho gelado, a fim de que diminua a atividade metabólica do bebê e também reduza a necessidade de oxigênio e de energia do corpo dele. O problema é que, além de poucos hospitais terem equipamentos para aplicar esse método, há uma janela de tempo para ser iniciado – em torno de até seis horas após o acidente. Caso essa janela seja excedida, a terapia pode causar ainda mais danos à criança. Luciano explica que há hospitais, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), que só encaminham os pacientes para hipotermia quando a hipóxia-isquemia aconteceu na própria instituição, durante ou após o parto. No caso daqueles que chegam de ambulância, como não é possível saber com exatidão quanto tempo se passou desde o acidente, não se pode aplicar a hipotermia neonatal. Além disso, o neurocientista explica que esse tratamento não tem uma eficácia tão alta.
Isadora conta que os efeitos do lactato no sistema nervoso têm sido estudados há cerca de três décadas, mas em outros parâmetros, como em casos de traumatismo craniano, que inclusive já chegaram a estudos clínicos . “Foi observado que de fato ele é um substrato energético e, inclusive, algumas células preferem o lactato como ‘alimento’”, explica. Então, basicamente, a ideia é suprir a falta de energia do sistema nervoso em função da asfixia e baixa oxigenação com esse resíduo metabólico natural do corpo humano, a fim de reduzir os danos causados pelo acidente.
Os cientistas pretendem testar a substância de outras formas, antes de chegar em estudos clínicos. Eles acreditam que ainda se pode combinar a hipotermia terapêutica com o lactato, testar outras dosagens e observar outros possíveis efeitos. “Foi possível notar que os animais perdiam um pouco o apetite nos dias das injeções, apesar de não termos um dado estatístico para isso, por exemplo”, conta Isadora. “Queríamos estudar a ação da substância no cérebro, mas também notamos efeitos gerais, que podem contribuir para a proteção do sistema nervoso, não sendo necessariamente efeitos colaterais”, contrapõe Luciano. Por fim, a pesquisadora conta que deseja dar sequência ao estudo em seu doutorado, explicando como o lactato agiu precisamente, além de observar os animais por mais tempo. Além disso, há também a ideia de trabalhar com a cultura de células, estudando como elas reagem ao lactato isoladamente, em um cultivo celular de neurônios e demais células do sistema nervoso.
Ser capa da Neuroscience é um reconhecimento, afirmam pesquisadores
Isadora conta que os cortes de verba das pesquisas e a desvalorização da ciência são desmotivadores para os cientistas, mas que ser convidado para a capa dessa revista foi muito importante. “Isso valoriza ainda mais o resultado que tivemos. Foi algo inesperado e é um enorme reconhecimento”. Ela explica que, geralmente, as capas dessas revistas envolvem técnicas muito avançadas que ainda não são feitas na UFRGS ou no Brasil. “Estávamos na expectativa de conseguir publicar o estudo. E então fomos convidados a concorrer pela capa”, comemora Luciano. Para a capa da revista, os pesquisadores tiveram que preparar uma imagem com uma técnica de coloração chamada trifeniltetrazólio (TTC), na qual basicamente se colore a lesão causada pela hipóxia-isquemia no cérebro. [1], [2]
[1] Artigo científico: Tassinari, Isadora et al. Lactate Administration Reduces Brain Injury and Ameliorates Behavioral Outcomes Following Neonatal Hypoxia–Ischemia. Neuroscience, v. 448, 2020. Disponível em: .
[2] Texto de Thiago Sória.
Como citar esta notícia: UFRGS. Pesquisadores da UFRGS encontram nova forma para tratar evento responsável por sufocamento de bebês. Texto de Thiago Sória. Saense. https://saense.com.br/2021/02/pesquisadores-da-ufrgs-encontram-nova-forma-para-tratar-evento-responsavel-por-sufocamento-de-bebes/. Publicado em 15 de fevereiro (2021).