IPT
31/03/2021

Laboratório Cultivo de células tronco (Foto: Cecília Bastos/USP Imagem)

Animais vertebrados possuem três tipos distintos de tecidos musculares: o muscular liso, que aparece em órgãos, olhos, pele e vasos do sistema circulatório, é responsável por movimentos involuntários; o muscular esquelético se encarrega das contrações voluntárias do corpo em tecidos aderidos aos ossos através dos tendões; e, finalmente, o tecido muscular estriado cardíaco – ele é composto de células individuais chamadas cardiomiócitos, que têm contração involuntária e formam as paredes do coração.  

As pessoas que sobrevivem a um infarto do miocárdio ou têm hipertensão, por exemplo, podem desenvolver uma doença crônica, que é a insuficiência cardíaca. Parte dos tecidos do coração morre e não se regenera, deixando uma ‘cicatriz’ no lugar afetado. Com o tempo, o coração não consegue compensar esta perda e uma série de sintomas começa a aparecer. Em caso de um ataque cardíaco, as estimativas apontam que mais da metade dos pacientes morrem após cinco anos ou têm a qualidade de vida severamente afetada.  

Produzir células cardíacas em laboratório a partir de células-tronco pode ser uma das opções de tratamento para ajudar as pessoas que sofreram um infarto ou uma isquemia a melhorar a saúde do coração. O sistema tradicional de cultivo e diferenciação de células-tronco humanas de pluripotência induzida (hiPSC) em cardiomiócitos é conhecido como ancoragem ou estático, mas há limitações a esta técnica quando se trata de escalonamento de processos.   

O sistema em suspensão é uma opção para ‘fabricar’ células cardíacas que está em estudo por meio de uma parceria entre a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e a startup PluriCell Biotech. A técnica foi escolhida como uma opção para contornar restrições e acelerar estudos pré-clínicos, clínicos e industriais, dada a possibilidade de produção rápida e a capacidade de suprir demandas laboratoriais e industriais.  

A mestranda Sirlene Rodrigues, do Programa de Pós-graduação Interunidades em Biotecnologia da Universidade de São Paulo sob a orientação da pesquisadora Patrícia Léo do IPT, está desenvolvendo um projeto para cultivar, expandir e diferenciar hiPSC em cardiomiócitos utilizando o sistema de frascos giratório (spinner flask) em plataformas magnéticas ou frascos Erlenmeyer em plataformas rotativas.   

Encontrar as condições ideias – mantendo as características já conhecidas de cultivo, expansão e diferenciação em sistemas estáticos – para os sistemas em suspensão são as metas do projeto de mestrado que está vinculado às necessidades da tecnologia para o prosseguimento dos estudos pré-clínicos e, posteriormente, clínicos de terapia celular. “A medicina regenerativa vem se apresentando como uma área promissora e é vista com otimismo pela comunidade cientifica; atualmente, a técnica empregada em tecidos cardíacos é um dos campos mais ativos, com diversas iniciativas acadêmicas e empresariais na busca de possíveis tratamentos aos pacientes”, ressalta Rodrigues.  

DESAFIOS DA ADESÃO – Apesar das facilidades do cultivo e da reprodutibilidade em pequena escala em laboratório, existem diversas limitações no tradicional sistema de adesão quando se trata de escalonamento de processos. O cultivo exige a utilização de substrato artificial para a manutenção das células em monocamada, o manuseio de recipientes durante todo o processo e o desprendimento de células da base de placas para a expansão do crescimento e, finalmente, a coleta de amostras.   

As condições aderidas a um substrato são conhecidas por induzir a formação de gradientes indesejados que incluem componentes dos meios de cultivo, resíduos metabólicos e gases. “Estes fatores tornam o escalonamento de produção trabalhoso, demorado e pode afetar a reprodutibilidade e a qualidade das culturas, com riscos de contaminação do sistema devido à excessiva manipulação dos materiais”, afirma Léo, responsável pelo Laboratório de Biotecnologia Industrial do IPT.  

Estas restrições tornam a técnica pouco adequada quando se lembra da grande quantidade de cardiomiócitos necessária para executar um tratamento. Pesquisadores afirmaram em 2006 que, em um evento de infarto, o paciente perde aproximadamente um bilhão de células cardíacas; uma revisão literária feita em 2009 trouxe evidências de que apenas 10% a 20% de células produzidas em laboratório sobreviveriam a um processo de injeção diretamente no coração em experimentos pré-clínicos.   

“Com base nestes dados, seriam necessários bilhões de células para substituir a perda de cardiomiócitos provocada por lesões cardiovasculares, o que inviabiliza o uso de sistemas de adesão”, afirma Rodrigues.  

VANTAGENS E DESAFIOS DA SUSPENSÃO – O sistema em suspensão é uma opção para contornar essas limitações, dada a possibilidade de produção rápida e a capacidade de suprir as demandas laboratoriais e industriais. O sistema de cultivo baseado na formação de agregados de células livre de matriz pode gerar um microambiente com correspondência ao natural, promover o controle da agregação das células, permitir a distribuição homogênea dos componentes da cultura e melhorar a transferência de gases e nutrientes para células, o que facilita o aumento de escala de cultura.   

Em sistemas em suspensão, a multiplicação celular pode ser continuada com trocas parciais de meios, sem a necessidade da remoção dos agregados de células do ambiente em que estão sendo cultivados. Outro ponto positivo é o controle de produção, adequando as células ao cumprimento de medidas regulatórias baseadas em diretrizes de boas práticas de fabricação GMP (sigla para Good manufacturing practices) para utilização de células em pesquisas.  

“Estas estratégias de condução de processo representam ganhos econômicos para a obtenção de grandes quantidades de células; entretanto, a adaptação e a diferenciação de hiPSC cultivadas em sistema de adesão para o sistema de suspensão são desafiadores”, explica Rodrigues. O sistema de cultivo em adesão é, na grande maioria, realizado de modo estático, enquanto o cultivo em sistema de suspensão tem a velocidade de rotação como um fator fundamental para a formação e não fusão de agregados de células.  

Fatores químicos e temporais precisam ser controlados no sistema em suspensão: a temperatura, o pH, a concentração de nutrientes, os metabólitos e os gases são parâmetros essenciais para a geração de um ambiente equilibrado e passível de diferenciação. O tempo de expansão e tamanho dos agregados devem ser bem definidos para não ocorrer a diferenciação espontânea, morte ou mesmo o não acesso de fatores químicos às células localizadas ao centro dos agregados. Todos os parâmetros necessitam ser reajustados a cada alteração no volume de meio e na densidade de células, exigindo esforços para alcançar bons resultados.  

TRIPLA PARCERIA – Para a realização do projeto, a PluriCell, startup que desenvolve terapias celulares baseadas em células-tronco pluripotentes, cedeu recursos financeiros e conhecimentos prévios dominados nos sistemas estáticos, enquanto a USP tem oferecido o suporte científico para a elaboração e a execução dos experimentos, e o IPT fornece a infraestrutura e a tecnologia.  

O IPT possui a infraestrutura e os conhecimentos sobre culturas de células de mamíferos em suspensão, com competência para acompanhamentos dos parâmetros do processo; este know-how é utilizado para traçar curvas cinéticas de crescimento celular, bem como para avaliar o consumo dos nutrientes e a geração de metabólicos críticos para a manutenção da viabilidade celular. “Com estes parâmetros em mãos, o IPT pode auxiliar em estratégias de melhorias para a obtenção de um grande número de cardiomiócitos que tenham viabilidade adequada às aplicações terapêuticas”, explica Léo.  

Conhecimento científico, desenvolvimento tecnológico e recursos materiais são requeridos por conta da complexidade de um projeto que demanda diversos testes e níveis de escalonamento de produção de células, finaliza Rodrigues: “A participação de três parceiros supre de maneira complementar todas as necessidades da pesquisa. As colaborações estão gerando a oportunidade de explorar as diferentes aplicações e os valores dos experimentos desenvolvidos”. O estudo, iniciado em janeiro de 2020, será concluído em janeiro de 2023. 

Como citar este texto: IPT. Biotecnologia do coração.  Saense. https://saense.com.br/2021/03/biotecnologia-do-coracao/. Publicado em 31 de março (2021).

Notícias do IPT     Home